“Hoje, a questão agrária é, sem dúvida, o fator de toda essa inquietação” disse o deputado federal Francisco Julião, há 60 anos. Julião era advogado e líder das Ligas Camponesas e fazia ali seu último discurso no Congresso Nacional como deputado. A “inquietação” à qual ele se referia era o golpe militar que se desenrolava no país naquele mesmo dia, ao que Julião prosseguiu:
“No fundamental, o que se discute no Brasil é a necessidade de se passar de um regime que desconhecia a existência desses 40 milhões de servos para um regime em que esses 40 milhões de servos participem da vida, tenham a sua opinião… [mas há] um grupo minoritário, que não quer que isso aconteça, mas isso acontecerá e se sucederá porque é uma necessidade histórica!”
Julião se referia aos 40 milhões de pobres e despossuídos camponeses e trabalhadores agrícolas do Brasil, os quais eram o centro da luta por reforma agrária no país. Rapidamente, após essa fala, Julião foi cassado, as Ligas Camponesas foram declaradas ilegais, e ele se escondeu na zona rural do estado de Goiás enquanto o país entrava num período muito sombrio de 21 anos de ditadura militar. Segundo um estudo realizado recentemente pelo pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) e ex-preso político Gilney Viana, no período da ditadura, incluindo até a promulgação da Constituição de 1988, 1.654 camponeses lutando pela terra foram mortos e desaparecidos.
No 60º aniversário do golpe civil-militar, precisamos analisar a luta pela reforma agrária no Brasil liderada pelas Ligas Camponesas e no período que antecedeu o golpe, e sua história interligada com a China e a Revolução Chinesa. Este ano marca também o quinquagésimo aniversário do estabelecimento de laços diplomáticos oficiais entre os dois países, mas as chamadas relações povo a povo precedem em muito o reconhecimento oficial. Foi no contexto da Guerra Fria, e da campanha anticomunista global liderada pelos Estados Unidos, que essas duas marés revolucionárias se encontraram, desde o interior do Nordeste brasileiro até Pequim.
Aqui, vamos tratar da construção da narrativa anticomunista pelos Estados Unidos e setores conservadores do Brasil no período que antecedeu o golpe — vinculando a luta brasileira pela reforma agrária à jovem República Popular da China (RPC); mas em seguida da tradição da “diplomacia popular” entre os povos e organizações do Brasil e da China, na qual a reforma agrária reaparece como fio condutor — uma luta contínua e inacabada no Brasil.
A “ameaça comunista” do Nordeste até a China: o temor da reforma agrária
Nas horas anteriores a Julião fazer esse discurso, o general Olímpio Mourão Filho já tinha mobilizado as tropas em Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro para derrubar o presidente de esquerda João Goulart, o Jango. O descontentamento dos setores conservadores e militares com o presidente havia escalado pouco antes, culminando com o comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, quando Jango anunciou os decretos das reformas de base.
O decreto de reforma agrária incluía a expropriação de terras improdutivas para a reforma agrária, mas havia ainda a estatização de refinarias de petróleo e a garantia de direitos iguais entre trabalhadores rurais e urbanos — como nos lembra o historiador Boris Fausto, no seu História do Brasil.
Isso tudo era demais para as elites governantes e, nos dias que se seguiram, todos os sinais de que um golpe seria posto em marcha, a partir de convocações massivas por um impeachment — liderado pela Igreja Católica — e, finalmente, as mobilizações das Forças Armadas tomaram as ruas em 31 de março a 1º de abril de 1964.
Sem qualquer amparo constitucional, o presidente do senado Auro de Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República, depondo Jango para, assim, empossar um novo presidente, Ranieri Mazzilli. O presidente americano Lyndon B. Johnson enviou “calorosos cumprimentos” a Mazzilli, apenas horas após sua posse e antes mesmo de Jango deixar o país — para se exilar no vizinho Uruguai.
O New York Times noticiou isso na sua primeira página do dia 03 de abril — no qual o correspondente latino-americano, Tad Szulc, narrou os eventos como “a remoção de uma ameaça comunista imediata”, culpando o “regime de Goulart” pelo endividamento do Brasil, a rejeição à Aliança pelo Progresso, proposta pelos Estados Unidos, e a suspensão da ajuda norte-americana ao país.
A resposta rápida da Casa Branca, no entanto, não deveria surpreender, e desde então muito foi revelado e escrito sobre o envolvimento dos Estados Unidos na desestabilização do governo Goulart, levando à colaboração direta com os militares no golpe de estado.
Nos anos anteriores, os Estados Unidos prestaram muita atenção no Nordeste brasileiro, onde as Ligas Camponesas mobilizaram multidões de camponeses em resposta à extrema desigualdade. Maria Rita Kehl, em Camponeses e indígenas, aponta o esforço da mídia norte-americana em equiparar o “perigo da reforma agrária” à “ameaça comunista”, com foco para as Ligas Camponesas do Nordeste.
No artigo de outubro 1960 Northeast Brazil Poverty Breed Threat of Revolt [Pobreza no Nordeste do Brasil gera ameaça de revolta], Tad Szulc, que então cobria a região para o New York Times, escreveu que em algumas áreas do Nordeste, 75% dos residentes eram analfabetos, e homens e mulheres viviam, em média, 28 e 32 anos, respectivamente.
Naquele contexto de desespero, afirmou Szulc, “os camponeses são cortejados” não apenas pelas Ligas Camponesas, mas também pelos governos locais e políticos que foram apoiados ou influenciados pelos comunistas. Esse foi apenas um artigo, entre vários publicados na grande mídia dos Estados Unidos antes do golpe, soando o alarme sobre a ameaça comunista no Nordeste — e eles não podiam permitir outra Cuba no seu autoproclamado “quintal”.
As narrativas da mídia também tiveram impactos políticos reais. Na verdade, o presidente John F. Kennedy declarou o Nordeste do Brasil como uma prioridade máxima na Aliança para o Progresso, um programa de “cooperação econômica” de dez anos, proposto em 1961, para combater a influência da jovem Revolução Cubana na América Latina.
Em 15 de julho de 1961, Kennedy declarou que nenhuma área necessitava “de atenção mais urgente do que o vasto Nordeste brasileiro” e estabeleceu ali uma missão da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) no ano seguinte.
Em 1963, essa missão contava com mais de 133 técnicos norte-americanos empregados somente no Recife. Por sinal, a capital de Pernambuco, estado onde também nasceu Julião — no município de Bom Jardim, no Agreste — e onde foram fundadas as Ligas Camponesas, recebeu visitas de alto nível dos Estados Unidos, do diretor do Peace Corps, Sargent Shriver e, também, do então professor Henry Kissinger, do ex-candidato presidencial Adlai Stevenson e, ainda, do diretor do Food for Peace, e futuro candidato presidencial (1972) George McGovern.
Em 1961, a American Broadcasting Company (ABC) enviou a cineasta Helen Jean Rogers, que tinha ligações com a Agência Central de Inteligência (CIA), para produzir um documentário sobre as Ligas Camponesas, Brazil: The Troubled Land [Brasil: a terra conturbada] transmitido pela televisão pública em 1961 e lançado como filme em 1964, no ano do golpe.
Julião, seguidor de Fidel e Mao, inimigos dos EUA
Ao longo dessa cobertura midiática, a China e a Revolução Chinesa são espectros que pairavam sobre o Nordeste. Na cena de abertura do documentário em preto e branco, Francisco Julião faz um discurso apaixonado num comício, balançando o dedo junto a uma tocha acesa, então começa o narrador americano:
“Este é Francisco Julião do Brasil. Você pode não ter ouvido o nome dele, mas aprenda. Julião é o líder camponês mais importante da América Latina, e os camponeses são a grande maioria, mais de cem milhões. É seguidor de Fidel Castro e de Mao Zedong, inimigos dos Estados Unidos […] Essa é a história do Nordeste do Brasil, de Francisco Julião e dos camponeses que ele corteja na América Latina. Brasil, a terra conturbada.”
Como narrativa recorrente nas reportagens midiáticas, Julião é referido ao mesmo tempo que os líderes comunistas Fidel e Mao, que não só foram retratados como predadores dos camponeses pobres, mas também como “inimigos dos Estados Unidos”, tornando esta região árida e empobrecida — e a luta pela reforma agrária no Brasil — num problema de política externa dos Estados Unidos.
Szulc, em seu artigo para o New York Times de outubro de 1960, escreveu ainda que “Fidel e Mao são aqui representados como heróis, imitados pelos trabalhadores camponeses e estudantes do Nordeste”, acrescentando que Julião está “atualmente visitando a China Comunista” e que “convites para visitar a China também estão sendo recebidos pelos líderes intelectuais, políticos e estudantes do Nordeste” — observação que não estava longe da realidade.
De João Goulart a Jorge Amado, passando pelo legado de Euclides da Cunha
Desde que a RPC foi criada em 1949, ela foi colocada sob pesados bloqueios diplomáticos e econômicos, liderados pelos Estados Unidos — uma tática que Washington continua a utilizar contra um quarto dos países do mundo hoje. Ao longo de uma década de existência da RPC, ela manteve relações formais com menos de três dezenas de países, sendo Cuba o único país nas Américas que a reconheceu, um ano após a sua própria revolução (1960).
Naquele contexto, a “diplomacia popular” [rénmín wàijiāo 人民外交] e a “diplomacia povo a povo” [mínjiān wàijiāo 民间外交] se tornaram a principal estratégia não oficial de relações internacionais da RPC.
Como relata Huang Zhiliang, em seu Zhou Enlai e a América Latina: a redescoberta do Novo Mundo [Zhōu Enlái yǔ Lādīngměizhōu – xīndàlù de zài fāxiàn 周恩来与拉丁美洲 – 新大陆的再发现], sob a orientação do icônico primeiro-ministro Zhou Enlai, a diplomacia popular visava construir relações com organizações amigas da China, principalmente através de intercâmbios comerciais e culturais que contornavam as sanções.
A construção de associações bilaterais de amizade foi fundamental para construir relações povo a povo. Na América Latina, a primeira associação de amizade foi fundada em 1952 no Chile, apoiada por figuras importantes como o futuro presidente Salvador Allende. Esses movimentos organizaram eventos e facilitaram viagens em ambos os lados do Pacífico, incluindo delegações de jornalistas, artistas, intelectuais, trupes acrobáticas e especialistas comerciais, entre outros.
No Brasil, a Associação de Amizade Brasil-China foi fundada no Rio de Janeiro e em São Paulo em 1953 e 1954, respectivamente. Entre as muitas atividades, as primeiras delegações chinesas ao Brasil incluíram uma em 1955 que visava estabelecer o comércio direto entre a China e os países latino-americanos e outra, em 1956, de uma trupe de performance de arte popular chinesa – como nos conta Huang Zhiliang em seu livro. Contrariamente às tentativas do Ocidente de isolar o recém-fundado Estado socialista, a RPC estabeleceu uma vibrante diplomacia popular com os povos e países do Terceiro Mundo.
De acordo com relatos dos Estados Unidos, entre 1949 e 1960, mais de 1.500 latino-americanos visitaram a China, incluindo centenas de pessoas do Brasil. Entre os notáveis visitantes comunistas brasileiros estavam Jorge Amado (1952, 1957), Zélia Gattai (1952), Carlos Marighella (1953-1954), Diógenes Arruda Câmara (1956) e Luís Carlos Prestes (1959), entre outros. No final da década, a Revolução Cubana permitiu uma nova maré nas relações China-América Latina e Caribe.
Em Havana, a China estabeleceu a sua primeira embaixada no hemisfério ocidental em 1960, o que facilitou as comunicações na região. Segundo observou Cecil Johnson, no seu Communist China & Latin America, 1959-1967, entre 1959 e 1960, a China recebeu mais de 200 delegações de 21 países da América Latina e Caribe, enviando mais de 24 delegações a 15 países da região. Foi no contexto do aumento dos intercâmbios políticos, econômicos e culturais que Jango, então vice-presidente do Brasil, bem como Francisco Julião, foram convidados a visitar a China.
Jango chegou a Pequim em 13 de agosto de 1961, menos de um mês depois que o presidente dos Estados Unidos à época, John Kennedy, declarou o Nordeste do Brasil como sua principal prioridade na América Latina. Liderando uma delegação comercial brasileira, Jango foi recebido com as mais altas honras pelos mais altos líderes chineses do período, Mao Zedong, Zhou Enlai e Liu Shaoqi — e visitou Pequim, Hangzhou e a província de Guangdong (Cantão).
O vice-presidente brasileiro foi a primeira autoridade de alto escalão da América Latina a visitar a RPC desde a sua criação, o que atraiu a atenção não só do povo chinês, mas também dos Estados Unidos. Ao contrário das afirmações do governo norte-americano, da direita e dos militares brasileiros, Jango estava longe de ser um comunista. No entanto, recebeu amplo apoio de sindicatos, partidos políticos e movimentos sociais de massa, como as Ligas Camponesas, e estava aberto a estabelecer laços mais fortes com os países socialistas.
Em reportagem sobre a viagem do vice-presidente brasileiro à China, o New York Times publicou a manchete “Goulart admira Mao da China Vermelha” e citou-o dizendo:
“Não esperamos que as comunas do povo chinês entrem em colapso. Pelo contrário, esperamos que prosperem, porque a prosperidade das comunas populares significa a prosperidade da República Popular Chinesa. Esperamos que os imperialistas fiquem desapontados, pois sua decepção é o que mais gostamos.”
O Times, como voz-chave da burguesia norte-americana, estava preocupado com o que esta visita assinalava, uma vez que Jango estava prestes a se tornar o próximo chefe de Estado. Na verdade, foi durante a sua viagem de 31 dias à RPC, bem como à União Soviética e a outras nações asiáticas, que o presidente brasileiro Jânio Quadros renunciou após sete curtos meses no cargo.
Ao regressar da sua viagem à Ásia, Jango assumiu a presidência, mas com poderes limitados, conforme definidos por um novo sistema parlamentar — um compromisso imposto pelos setores conservadores e os militares, que já estavam nervosos com as tendências de esquerda de Jango. Como conta o documentário Jango (1984), de Silvio Tendler, havia planos da Força Aérea para abater o avião do vice-presidente, assim que ele entrasse no espaço aéreo brasileiro, para impedi-lo de tomar posse como presidente.
Entre os acordos culturais firmados na visita de Goulart à China, estava o envio de três jornalistas chineses ao Brasil, culminando com a instalação dos escritórios brasileiros da a0gência de notícias Xinhua no Rio de Janeiro e em São Paulo nos próximos dois anos – como narra Celiane Ferreira da Costa, ao analisar o caso dos nove chineses presos em 1964, após o golpe militar, dois deles, jornalistas.
A discussão comercial se centrou na situação agrícola do Brasil, que estava estruturada em torno da produção de monoculturas orientada para a exportação — como forma de acesso a divisas — e vendida a preços desfavoráveis fixados pelos mercados dos Estados Unidos.
Estabelecer relações comerciais mais justas com os países socialistas foi visto como uma forma de o Brasil superar esta dependência, um problema que tem atormentado muitos países da América Latina e do resto do Terceiro Mundo à medida que emergiram do colonialismo.
Cecil Johnson, em seu livro sobre as relações da China e a América Latina, conta que Jango, em um comício em Pequim no dia 17 de agosto, disse: “A China sob a liderança do grande líder Mao Zedong é uma realidade e um exemplo que mostra como um povo, desprezado pelos outros durante séculos passados, pode emancipar-se da jugo de seus exploradores.”
A emancipação da exploração colonial, feudal e capitalista foram os fios que uniram os povos chinês e brasileiro, e talvez em nenhum lugar a ligação tenha sido mais clara do que com as lutas camponesas do Nordeste brasileiro. O Nordeste é conhecido pela tradição da cultura camponesa, local de passagem de artistas e músicos folclóricos itinerantes — sanfoneiros, escritores de cordéis e cantadores.
Tal como o Partido Comunista da China fez durante os anos que antecederam a Revolução, as Ligas Camponesas colaboraram estreitamente com estes trabalhadores culturais para conscientizar os camponeses e construir a organização, muitas vezes adicionando conteúdo político às formas tradicionais locais.
Em suas investigações na região, Tad Szulc escreveu outro artigo para o New York Times, este de novembro de 1960, Marxists are Organizing Peasants in Brazil [Marxistas estão organizando camponeses no Brasil], “os cantores nômades do Nordeste, que antes cantavam os amores e os ódios do povo orgulhoso daqui, agora cantam sobre a reforma agrária e temas políticos”.
Os cancioneiros populares e de luta ajudaram a criar um sentimento de afinidade cultural e política entre a revolução chinesa e a mobilização das Ligas Camponesas e a produção agrícola do campesinato brasileiro. Da mesma forma, o intercâmbio cultural e literário ajudou a trazer as lutas do campo brasileiro para a China.
O Nordeste brasileiro entrou no imaginário do povo chinês logo após a criação da RPC, como parte dos esforços para construir o entendimento e a solidariedade entre os povos da África, da Ásia e da América Latina. Como parte da diplomacia popular da China, a literatura e os intercâmbios literários foram vistos como fundamentais na construção de uma luta unida contra o imperialismo, e o novo país socialista fez enormes esforços para traduzir a literatura do Terceiro Mundo.
Nesse contexto, as obras de Jorge Amado, o escritor comunista e baiano que ganhou o Prêmio Lênin da Paz em 1951, começaram a ser traduzidas para o chinês, gerando um grande efeito nas relações culturais entre os dois países, como analisou detidamente Fan Xing.
O escritor baiano visitou a China três vezes em 1952, 1957 e 1987. Foi o escritor latino-americano mais publicado na China daquele período até hoje. Os romances de Jorge Amado Terras do Sem Fim (1943) e São Jorge do Ilhéus (1944) foram traduzidos para o mandarim em 1953 e 1954, respectivamente, trazendo a história das lutas pela terra nas plantações de cacau da Bahia.
Jorge Amado também foi responsável por levar, e até mesmo traduzir — indiretamente, por meio de línguas europeias —, romances chineses ao público brasileiro, com destaque para a publicação em 1955 de O sol brilha sobre o rio Sangkan [Tàiyáng zhào zài Sānggàn hé shàng 太阳照在桑干河上 ] de Ding Ling, cujo original é de 1948, pela Coleção Romances do Povo, que ele dirigia.
O sol brilha sobre o rio Sangkan, por sinal, recebeu a maior premiação literária da União Soviética em 1951, e foi fruto dos oito anos que a autora passou trabalhando ao lado dos camponeses, na luta pela reforma agrária na província de Shaanxi, durante o período que antecedeu a Revolução Chinesa.
A Coleção Romances do Povo, como analisado por Vinícius Jubarte, foi organizada, sob a direção de Jorge Amado pela Editora Vitória, editora filiada ao então Partido Comunista do Brasil (PCB) — o nome e a sigla se explicam, uma vez que ainda não havia acontecido o racha que gerou o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e o PCB. Lembrando que Jorge Amado era militante de longa data do PCB e chegou a ser eleito deputado federal por São Paulo em 1946, pouco antes do partido ser novamente declarado ilegal.
Além dos romances de Jorge Amado, outra obra literária importante na construção do imaginário do Nordeste brasileiro foi Os Sertões de Euclides da Cunha, ele também socialista. Em sua aclamada obra de reportagens de 1902, Euclides documentou o sangrento Massacre de Canudos (1896-1897), no qual o Exército da jovem República Brasileira foi enviado para destruir um assentamento e matar cerca de 25 mil sertanejos pobres – compostos por camponeses brancos pobres, negros recentemente libertados da escravidão e indígenas do Nordeste.
Esta história ressoou com a própria história sangrenta, de violência no campo e imperialista, sofrida pelas massas camponesas pobres na China. Como lembra Wang Siwei, em 1959, no cinquentenário da morte de Cunha, o romance foi traduzido para o chinês — sob o título de Fùdì 腹地, isto é, “terra interior (ventre)”, uma tradução possível para “sertão” — e uma grande conferência memorial foi realizada na China, com a presença de escritores chineses e brasileiros.
Apesar das limitações dos tradutores e críticos chineses na compreensão da realidade brasileira, Os Sertões ajudou a construir um imaginário do Nordeste revolucionário do Brasil, que foi lido ao lado da Revolução da China. Da mesma forma, romances como o de Ding Ling ajudaram a introduzir novos entendimentos da reforma agrária e do processo revolucionário chinês no Brasil, mas as interpretações brasileiras também careciam de compreensão histórica ou cultural adequada.
Sem dúvida, as traduções literárias de Jorge Amado e Ding Ling, além dos intercâmbios políticos e culturais de Julião e Jango e foram essenciais para fortalecer as relações povo a povo — e posicionaram as lutas pela reforma agrária e o protagonismo do campesinato como fios centrais de ligação desses distantes países, terras e povos.
* Tings Chak é diretora de arte e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e co-fundadora do Dongsheng News. Atualmente, ela faz doutorado na Universidade Tsinghua e vive em Pequim.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Matheus Alves de Almeida