A situação do governo Lula, difícil desde o primeiro dia, parece ter sofrido alguma deterioração nos meses recentes. Não chega a ser surpreendente. Sempre há uma lua de mel e ela sempre acaba. Mais importante, a herança recebida dos governos anteriores é pesada, são muitas as dificuldades de recuperar a máquina pública e – ponto de quero tratar hoje – são poderosos os adversários políticos do governo.
Cheguei a pensar em intitular o artigo “Governo sitiado”, mas me pareceu pesado e sombrio demais. Aí pensei em amenizar colocando um ponto de interrogação, mas isso também não resolveu. Não cabe espalhar pessimismo e desânimo. Os adversários são poderosos, mas o governo Lula tem seus recursos e pode prevalecer.
Antes de entrar no assunto, porém, faço uma advertência. As questões de política e economia política são sempre pantanosas, obscuras, sujeitas a incertezas radicais. Quem se aventura a escrever ou falar sobre isso precisa avisar o leitor ou a leitora de que o que se diz ou coloca no papel fica sempre no terreno das conjecturas e hipóteses. Muitos dos que se aventuram não o fazem e, pior, se deixam embalar pela própria retórica e cometem não só afirmações taxativas sobre o presente e o passado, como se lançam em previsões, adotando às vezes um tom profético. E a história mostra que mesmo os grandes profetas se enganam.
Os cinco blocos de poder
Mas vamos ao assunto. O objetivo fundamental dos adversários do governo Lula é claro e cristalino: enfraquecê-lo para que chegue derrotável à eleição de 2026. Derrotável significa para eles não apenas a possiblidade de ganhar a eleição. Caso isso não seja possível, desejariam encontrar um Lula fragilizado, suscetível a fazer concessões importantes.
Obviamente, os adversários formam um grupo bem heterogêneo, o que facilita o seu enfrentamento. Lula, com sua vasta experiência e grande habilidade, sabe aproveitar-se dessas diferenças para avançar.
Para facilitar a exposição, vou distinguir quatro grandes blocos políticos, ou cinco se incluirmos a centro esquerda liderada pelo Presidente da República. Os adversários principais são:
A extrema direita, que emerge depois de 2018 com a eleição de Bolsonaro.
A direita tradicional ou centro-direita, isto é, o establishment, os donos do poder e do capital, cuja fração hegemônica é o capital financeiro, o chamado “mercado”.
A direita fisiológica, o chamado “Centrão”, que não tem ideologia definida, mas controla o Congresso e age de maneira consistente, sempre procurando abocanhar pedaços de poder e recursos orçamentários.
Os militares, quase sempre hostis à esquerda e historicamente propensos a golpes de Estado.
Com exceção da direita fisiológica, todos esses blocos de poder têm importantes ramificações internacionais. A extrema direita bolsonarista encontra eco e apoio em Trump nos Estados Unidos, em Milei, na Argentina, e em diversos países da Europa, onde a extrema direita governa ou cresce em popularidade e ameaça vencer eleições.
A direita tradicional sempre teve ligações umbilicais com os EUA e encontra contrapartes influentes em todos os países desenvolvidos e no resto da América Latina.
Os militares, por sua vez, mantêm vínculos históricos com os militares americanos, sendo a sua formação muito influenciada pelas concepções políticas e estratégicas do Departamento de Defesa.
Qualquer taxonomia é sempre uma simplificação. As fronteiras entre os blocos políticos são fluidas. Há muitas figuras intermediárias, com os pés em mais de uma canoa. Com frequência, os blocos se misturam, estabelecendo diferentes alianças políticas e combinações variáveis ao longo do tempo. A própria palavra “bloco” talvez não seja a mais adequada, pois passa uma sensação enganosa de solidez e uniformidade.
A Arca de Noé
É imenso, portanto, o desafio para Lula. Quando se critica o governo atual, e eu mesmo o faço com alguma frequência, não se deve perder de vista esse contexto político — tanto mais que Lula e a centro esquerda, com todas as suas deficiências e limitações, são os únicos que oferecem uma perspectiva de desenvolvimento com justiça. Politicamente falando, recorde-se, não há nada significativo à esquerda de Lula. A extrema esquerda existe, mas não tem peso político real e também não oferece saídas convincentes para nossos problemas.
O melhor que se pode esperar nesse cenário tão complicado é que o governo Lula consiga negociar com alguns adversários, reforçando a sua posição — sem, contudo, transigir no essencial e sem se descaracterizar. Esse requisito é fundamental, como tento explicar na sequência.
A estratégia de Lula, desde 2021 ou 2022, tem sido isolar o principal adversário, a extrema direita. Foi assim que ele venceu a eleição. Compôs com a direita tradicional para derrotar Bolsonaro que, em busca da reeleição, contava com a máquina do governo e a fidelidade, ou pelo menos a simpatia, de uma parte muito expressiva do eleitorado. Lula ganhou por pequena margem, o que sugere que fez a escolha correta.
Note-se, a propósito, que os donos do poder têm sempre uma pequena dificuldade no Brasil: raramente ganham eleições presidenciais. Os seus candidatos não costumam ser competitivos e nem sempre fazem bonito nessas disputas. Historicamente, os donos do poder recorrem a dois expedientes tenebrosos. Apoiam candidatos caricatos, mas bons de voto (Jânio em 1960, Collor em 1989 e Bolsonaro em 2018). Se esta alternativa não está à mão, eles não se vexam em descartar suas supostas ”credenciais democráticas” para patrocinar golpes militares (como fizeram contra Getúlio, Juscelino e Jango) ou parlamentares (como fizeram contra Dilma).
No caso de Bolsonaro, assim como nos de Jânio e Collor, suponha-se que seria possível controlá-los depois da eleição. De 2019 em diante, entretanto, a desordem foi maior do que se esperava e a possibilidade de controlar Bolsonaro menor do que se esperava. O establishment brasileiro, ou uma parte significativa dele, parece ter se dado conta de que mais um mandato para Bolsonaro poderia ser desastroso para seus interesses. Tentaram uma terceira via, que não decolou. Lula foi percebido como alternativa, contanto que se mostrasse disposto a negociar com eles. Encontraram receptividade. Lula deixou claro que não seria revanchista nem radical. Formou-se então a Arca de Noé (expressão do próprio Lula), a ampla e heterogênea coligação que venceria as eleições em 2022.
Não querendo e nem podendo praticar um estelionato eleitoral, Lula teve que formar um governo heterogêneo, tão heterogêneo quanto a Arca de Noé. Na área econômica, a presença de neoliberais se faz sentir claramente. Não só no primeiro escalão, como no segundo escalão dos ministérios e do Banco Central.
Como a direita fisiológica controla o Congresso, Lula também teve que abrigá-la no ministério e até numa instituição financeira da importância estratégica da Caixa Econômica Federal. Assim, o primeiro e o segundo escalão do governo são uma mistura indigesta de quadros da centro-esquerda, da centro-direita e da direita fisiológica.
Ao mesmo tempo, Lula busca aplacar os militares. Não se dispõe a confrontá-los; ao contrário, deseja cooptá-los ou pelo menos neutralizá-los. Foi por isso que resolveu não patrocinar eventos de condenação do golpe militar de 1964, no seu aniversário de 60 anos. Parte da esquerda ficou revoltada, sem levar na devida conta, talvez, o quadro político adverso que tentei descrever acima.
A caminho das eleições de 2026
Prevalece no governo (ou assim me parece) a percepção de que a principal e mais destrutiva face da oposição continua sendo a extrema direita bolsonarista. Imagine, leitor ou leitora, que ela volte ao poder em 2027, seja com Bolsonaro, seja com alguém que ele indique. Não preciso falar mais nada.
O tempo dirá, mas os demais blocos não parecem ter força eleitoral para se contrapor à centro esquerda nas eleições de 2026. Será provavelmente tão difícil quanto foi em 2018 e 2022 construir uma terceira via competitiva.
Assim, a aliança constituída para as eleições de 2022 tende a se repetir em 2026. Não se deve esperar que Lula faça qualquer movimento para desalojar a direita tradicional de suas posições de poder no governo. Tampouco que tente romper com a direita fisiológica. Ou que descuide das sempre problemáticas relações com as Forças Armadas.
Confrontação nunca foi um traço da personalidade do Presidente da República. Ele chegou aonde chegou escolhendo suas batalhas e comendo pelas beiradas. Por que mexeria nesse time que está ganhando?
A máscara se apega ao rosto
Para terminar, um alerta que me parece importante. Apesar de tudo que escrevi acima, há um risco que não pode ser negligenciado: o de que o governo Lula e com ele toda a centro esquerda se descaracterize e perca o rumo estratégico. E esse risco é especialmente relevante na disputa com a extrema direita.
Onde reside a força política e eleitoral de figuras como Trump, Bolsonaro e Milei? Em grande parte, na difusão da ideia de que eles se opõem a um “sistema”, um conjunto de instituições e interesses viciados que exclui a grande massa da população, inclusive a classe média. Na Europa, por exemplo, os partidos socialistas e social democratas se confundiram com o establishment e patrocinaram nas últimas décadas políticas econômicas e sociais excludentes, a chamada agenda neoliberal. Assim, quem cresceu com a crise do neoliberalismo foi a extrema-direita. A centro-esquerda minguou, posto que foi vista como parte integrante desse maldito “sistema”.
O PT é a social-democracia brasileira e corre o risco de cair na mesma armadilha. Vou dizer uma coisa meio desagradável. No Brasil, de modo geral, há muito jogo de cintura e pouca espinha dorsal. A centro esquerda não foge a essa regra. Ela acredita, ou diz acreditar, que continua fiel a seus propósitos. Que todas as concessões são um preço a pagar nas circunstâncias. As medidas cautelosas e a retórica conformista seriam assim uma máscara, a ser retirada quando as condições forem mais favoráveis.
Compreendo. Mas não vamos esquecer o poema de Fernando Pessoa:
“Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.”
O poema caiu como uma luva, não é mesmo?
* Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. O seu livro mais recente em português é O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata, editora LeYa, segunda edição, atualizada e ampliada, 2021.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Matheus Alves de Almeida