Análise

Honduras se retira do Centro Internacional de Resolução de Disputas: assimetrias e lawfare econômico

Operações do CIADI na América Latina são exemplo da assimetria dos marcos regulatórios impostos após Bretton Woods

Observatório do Lawfare | Buenos Aires (Argentina) |
Xiomara Castro iniciou o processo de desvinculação do CIADI - Luis Acosta / AFP

Em 24 de fevereiro passado, o governo da presidenta Xiomara Castro iniciou o processo de desvinculação de Honduras do Centro Internacional de Resolução de Disputas sobre Investimentos (CIADI). Nesse dia, o Banco Mundial recebeu a notificação de denúncia ao Convênio do CIADI por parte da República de Honduras, que pretende tornar efetiva a partir de 25 de agosto de 2024. Trata-se de uma das principais batalhas políticas e econômicas que a presidente hondurenha está levando adiante, que assumiu seu cargo há dois anos e dois meses, no âmbito do complexo e árduo processo que impulsiona para reinstaurar a institucionalidade democrática e a paz social em seu país.

O CIADI é uma instância do Banco Mundial encarregada da resolução de diferenças relativas a investimentos internacionais, que arbitra entre Estados e o setor privado. Suas operações na América Latina e no Caribe são um exemplo da assimetria dos marcos regulatórios impostos pelas Instituições Financeiras Internacionais (IFI) surgidas do acordo de Bretton Woods, após a Segunda Guerra Mundial. Refletem o uso da legalidade como uma arma do setor privado, em uma “guerra por outros meios” contra a soberania dos Estados da periferia, que poderíamos identificar como “lawfare econômico”.

Processos contra Honduras no CIADI

Em 2023, Honduras foi o segundo país mais processado, com nove processos que envolvem setores estratégicos como energia, construção, finanças e transporte. A principal demanda que enfrenta é a dos investidores da ZEDE Próspera, por US$ 10,7 milhões, o equivalente a dois terços do orçamento nacional de 2023 e com possível impacto em políticas de estabilidade/instabilidade governamental. Há outra demanda da empresa mexicana JLL Capital, por US$ 380 milhões, onde se alega que Honduras violou as proteções ao investimento estrangeiro.

As ZEDE são Zonas Econômicas em grande medida autônomas que colidem com princípios constitucionais fundamentais para a soberania hondurenha. Operam desde 2013, criadas pelo Congresso por meio de uma Reforma Constitucional ratificada no Decreto 9-2013. Foram criadas por governos irregulares pós-golpe de 2009. No contexto do governo de Castro, em abril de 2022 o Congresso revogou por unanimidade a Lei Orgânica das ZEDE. No mesmo momento, o Congresso aprovou por unanimidade a revogação da Reforma Constitucional do ano 2013 que habilitou as ZEDE (Decreto 9-2013), por meio do Decreto 32-2022.

No entanto, por mandato constitucional, toda reforma à Constituição deve ser aprovada em sessões ordinárias, com dois terços dos deputados e, ratificada na subsequente legislatura ordinária pelo mesmo número de votos, para que entre em vigor. Neste caso, o decreto foi aprovado por unanimidade em 2022 e não chegou a ser ratificado antes do fim da legislatura de 2023. O último dia para ratificar o Decreto 32-2022 era 31 de outubro passado. Entende-se que, ao não ratificar esse decreto, não se aperfeiçoou o procedimento de reforma constitucional e, consequentemente, a figura das ZEDE continua sendo reconhecida pela Constituição, embora a Lei Orgânica das ZEDE esteja revogada, pois só requeria a maioria dos votos para isso.

Portanto, não se podem instalar novas ZEDE e ao mesmo tempo não é possível sustentar que as ZEDE tenham sido eliminadas da Constituição hondurenha. O argumento do governo de Castro para anular as ZEDE reside no fato de que se trata de uma proposta inconstitucional, pois lesa diretamente a soberania e funções do Estado hondurenho, direitos trabalhistas e proteção do meio ambiente.

Próspera processou o governo de Honduras perante o CIADI por suposto descumprimento dos capítulos 10 e 20 da normativa do Tratado de Livre Comércio entre Estados Unidos, América Central e República Dominicana (CAFTA-DR). Segundo a empresa Próspera, estariam sendo violados os pontos de tratamento não discriminatório, limites aos requisitos de desempenho, livre transferência de fundos relacionados a um investimento, proteção contra expropriação que não se ajuste ao direito internacional e a capacidade de contratar pessoal diretivo-chave, independentemente de sua nacionalidade.

De acordo com o governo hondurenho, o CIADI registrou a demanda do grupo Próspera de maneira incorreta. O artigo 26 do convênio estabelece a possibilidade de os Estados aprovarem sua adesão ao CIADI com reservas. A Convenção de Viena sobre o direito dos tratados internacionais também estabelece essa prerrogativa dos Estados de apresentar reservas. No Decreto 41 - 88 de 1988, ratificado em 2000, o governo de Honduras deixou claro que não se pode recorrer ao CIADI se não tiverem sido previamente esgotadas todas as vias administrativas e judiciais nacionais. O governo hondurenho afirma que não faz sentido nomear um árbitro na controvérsia com Próspera, pois não reconhece a jurisdição do CIADI, até que essas instâncias sejam esgotadas.

Outro é o caso das demandas das empresas norueguesas Scatec e Norfund que dão conta das pressões que Honduras está recebendo em várias frentes, e principalmente no tema energético. As empresas, envolvidas em projetos de geração de energia fotovoltaica no departamento de Choluteca (Agua Fria e Los Prados), processaram Honduras perante o CIADI em abril de 2023, um ano depois de o Congresso Nacional aprovar a Lei Especial para garantir o serviço de energia elétrica como um bem público, baixar preços de compra e remover privilégios financeiros, pelo qual as empresas fornecedoras de energia são obrigadas a renegociar seus contratos com a Empresa Nacional de Energia Elétrica (ENEE). Além disso, a ENEE tem uma dívida superior a US$ 462 mil por fornecimento de energia com empresas privadas, situação que é aproveitada para condicionar as políticas públicas do governo.

Demandas contra países latino-americanos

A América Latina concentra três de cada dez demandas feitas ao CIADI desde 1972 até 2023. A busca por uma aliança ou estratégia comum dos países da região para defender seus interesses e litigar em instâncias diferentes das do CIADI é uma das vias que outros países sul-americanos tentaram, como o marco criado na UNASUL, lembrando que em 2016 o bloco de integração regional avançou em rascunhos para a constituição de um Centro de Solução de Controvérsias em matéria de investimentos; ou também o caso do Brasil, que não é parte integrante no CIADI e apesar das mudanças de governos manteve essa posição soberana. A partir da Celac, neste momento mais vital que a debilitada UNASUL, poderia ser retomada a possibilidade de gerar alternativas ao CIADI, considerando que é precisamente o governo de Honduras, que detém a presidência pro-tempore do bloco regional a partir de março de 2024.

Segundo dados do CIADI, desde 1974 até 2023 existem 334 demandas apresentadas contra Estados da América Latina. Os cinco Estados mais demandados são: Argentina (59), Venezuela (55), México (46), Peru (43) e Colômbia (20). Estes países concentram 67% das demandas totais. É notável que nos primeiros 23 anos do século 21 foram interpostas 313 demandas, quando nos 26 anos anteriores foram apenas 21 demandas. Este aumento sustentado de reclamações, podemos explicar, em parte, como um resultado do processo neoliberal que prevaleceu nas décadas de 1980 e 1990 e que entra em crise na primeira década do século 21. Esta disputa de modelos continua vigente.

Este modelo é precisamente uma amostra das assimetrias atuais, pois de todas as demandas, os Estados só ganharam em 76 casos. As empresas que mais demandam países da região têm sua matriz nos EUA (104), Espanha (56), Países Baixos (29), Canadá (26) Reino Unido (24). As demandas mais altas foram Conoco Phillips vs Venezuela (US$ 8,3 bilhões) em 2019; Repsol vs Argentina (US$ 5 bilhões) em 2012, para citar alguns.

A necessidade de relançar o projeto regional de integração, como demonstrado neste caso, é imperativa e retomar e atualizar os projetos regionais de integração, com base nas necessidades concretas e urgentes dos povos latino-americanos, entre as quais está indubitavelmente a formação de tribunais arbitrais de investimento que não respondam a uma lógica centro-periferia em relação à ordem global, uma vez que essa visão resultou em má qualidade dos serviços públicos, altos graus de endividamento em moeda estrangeira nos estados da América Latina e uma grave perda de soberania.

* Anibal García Fernández, Tamara Lajtman, Marcelo Maisonnave e Silvina Romano são membros do Observatório do Lawfare, grupo de pesquisa do Centro Estratégico Latino-americano de Geopolítica (CELAG).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Lucas Estanislau