Mudanças climátias

Rio Branco seca e moradores ficam sem água por horas em Boa Vista

Incêndios, desmatamento, drenos de lavoura e garimpos favorecem estiagem e enchentes em Roraima, explicam pesquisadores

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Rio Branco seca e moradores ficam sem água por horas em Boa Vista - Tony Will/PMBV/SEMUC

O rio Branco secou a ponto de a população agora conseguir caminhar pelo leito do principal manancial de Roraima. Da plataforma superior da Orla Taumanan é possível ver filetes de água e poças de lama. Com o recuo da praia do Parque de Boa Vista, vê-se uma imensa faixa de areia e barcos encalhados. No dia 27 de março, o curso d’água registrou a segunda maior seca, com a marca de -39 centímetros, conforme o Boletim Hidrológico de Seca Extrema da Bacia, divulgado pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB). O recorde é de -58,5 centímetros, em 2016. Na primeira semana de abril e mesmo com algumas pancadas de chuva, o rio continua com marcas negativas. Na noite de segunda-feira (8), o monitoramento da Companhia de Águas e Esgotos (Caer) apontava -0,08 centímetros.

O repórter cinematográfico Roque Neto, de 42 anos, acostumado a registrar as notícias do Estado, diz nunca ter visto o rio Branco seco desta forma. “Pelo menos desde quando cheguei aqui [em Boa Vista, 1989] nunca tinha visto”, afirma, deixando escapar de sua memória a seca ainda mais severa de 8 anos atrás. Para ele é um momento histórico e preocupante. “Eu levei meu filho para bater uma foto no meio do rio.”

Com a foz na margem esquerda do rio Negro, o rio Branco é o responsável pelo abastecimento das cidades de Boa Vista e Mucajaí, além de inúmeras comunidades indígenas e ribeirinhas. Com a expansão da capital, a Caer recorre a 98 poços artesianos espalhados pelos bairros. Esses, assim como o rio, também secaram e as autoridades precisaram aumentar a profundidade de alguns para que voltassem a ter vazão. Atualmente são 310 poços no Estado. A previsão é que mais 30 sejam cavados. O governo gastou 14 milhões de reais para perfurar o último lote (50 poços).

Os impactos de uma seca severa provocada por um dos fenômenos El Niño mais intensos escancarou o racismo ambiental dos moradores do estado mais ao Norte do Brasil. José Alves, de 25 anos, é morador do bairro Senador Hélio Campos, zona oeste da capital Boa Vista. Uma região com nome de militar político da década de 1990, mas que não traz nenhuma pompa para quem vive por lá. “Desde que eu me mudei pra cá, em 2018, aqui sempre faltou muita água. Por volta das 10, 11 horas todo dia falta água nesse horário. Aí vai voltar lá pras 4, 5 horas da manhã”, disse o jovem negro morador da períferia e estudante de biologia na Universidade Federal de Roraima (UFRR).

José, que vive com a mãe e mais um casal de inquilinos, contou à Amazônia Real que, este ano, a situação ficou ainda pior. “Tem alguns finais de semana, principalmente no domingo, que passamos o dia inteiro sem água”. Para driblar a escassez e tentar manter a rotina, a família armazena o líquido durante a madrugada. “A gente sempre armazena. Tem um balde no meu banheiro e no da minha mãe.

Com a falta de água agravada pela estiagem em Boa Vista, baldes são utilizados para armazenar água para o consumo da família ( Foto: acervo pessoal/cedida).

O drama da seca também é vivido pela indígena do povo Macuxi, Tercinara Aguiar, de 48 anos, que mora no bairro Tancredo Neves, em Boa Vista, com os três filhos (de 28, 23 e 19 anos) e mais o marido. Ela relatou à reportagem a falta de água fora do “normal” para o período seco de Roraima. “Quando tem água, durante o dia só chega na torneirinha baixa, não sobe pro chuveiro”, disse a servidora pública que se mudou com a família da comunidade da Anta em Alto Alegre para a capital quando tinha 9 anos. “Eu nunca, nunca tinha passado por uma seca dessa. Ver o rio do jeito que ficou, essa falta de água é triste”, diz.

A família de Tercinara também armazena água para que possam fazer as atividades domésticas e cumprir os compromissos da semana. Tem sido assim desde o fim de 2023. “A gente sempre procura encher as vasilhas”, detalha. A funcionária da prefeitura reclama: “Eu me sinto prejudicada, porque, apesar de ser uma coisa da natureza, afeta a população”, disse a moradora da zona oeste da capital.

Os moradores de Boa Vista relatam sintomas como diarreia, dor de barriga e vômito, decorrentes da falta d’água. Geane Peixoto, de 55 anos, moradora do bairro Pérola, adoeceu no mês de março. “Está chegando (uma água) estranha ultimamente. Não sei se é mais cloro, mais produto químico que estão botando na água, porque ela estava saindo muito branca, a cor dela não era transparente, um cheiro estranho também, a gente tomava e sentia um cheiro de água sanitária”, disse a dona de casa que para minimizar o problema comprou um filtro.

Vladimir de Souza, o geólogo da UFRR e professor do mestrado profissional e colaborador da Agência Nacional de Águas, explicou que o assoreamento e outras interferências humanas fazem o rio Branco perder as características hidrológicas. “Quanto menor o volume de água, a concentração de elementos químicos do rio e de contaminantes se concentra e pode potencializar a sua toxicidade”, explicou o agravante provocado pela estiagem.

Vladimir de Souza, geólogo e colaborador da Agência Nacional de Águas (Foto: RCCaleffi/Arquivo-UFRR).

José e Tercinara também relataram à Amazônia Real episódios de diarreia e vômito entre seus parentes. Ambas as famílias bebem água direto da torneira. A reportagem questionou a prefeitura da capital se houve aumento de casos de pessoas com estes sintomas, mas a secretaria de comunicação informou que os dados ainda estão sendo coletados.

Para abastecer a cidade, neste período de seca, a captação de água ocorre por meio de uma balsa flutuante. O presidente da Caer, James Serrador, discorda do pesquisador. Segundo o chefe da estatal, não há uso de mais produtos químicos na água. “No verão, a gente reduz a quantidade de produtos químicos para o tratamento da água. Se usa mais no inverno quando fica mais barrenta”, diz.

A Caer informou ter entregado água potável em caminhões-pipa nos municípios do interior desabastecidos tanto pelo rio Branco quanto pelos poços que secaram. O órgão afirma ter distribuído também garrafões de água mineral, porém não detalhou a quantidade, nem a destinação exata. Segundo James Serrador, não há mais risco de Boa Vista ficar sem água, porém a normalização do abastecimento deve demorar devido o nível baixo dos lençóis freáticos dos poços artesianos.

Companhia de Águas e Esgotos de Roraima realiza a perfuração de poços em São João da Baliza para mitigar o impacto pela falta de água ( Foto: Reprodução redes sociais / Companhia de Águas e Esgotos de Roraima).

Haron Xaud, especialista em sensoriamento remoto e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e Fábio Wankler, professor de geologia da UFRR, afirmam que a recuperação do nível do rio Branco não será tão rápida, apesar das chuvas intensas que estão se aproximando. “Isso se explica porque o rio Branco é abastecido pelos rios Uraricoera e Tacutu, sendo este último o que mais contribui para o volume de água da bacia hidrográfica e o que perdeu volume hídrico”, afirma Wankler.

Para o pesquisador, estudos científicos mostram que os efeitos climáticos vieram para ficar. “Vários trabalhos têm mostrado que a temperatura média do planeta subiu. Outro recente trabalho, publicado na revista Nature, mostra que o nível freático dos poços no mundo, em muitas regiões, que eles mediram, diminuiu”, reforça Wankler.

Reflexos das ações do homem

Em Boa Vista, capital de Roraima, moradores sofrem com a presença de fumaça e a estiagem do rio (Foto: William Roth).

A chegada da estação chuvosa, em princípio, será um alento para a população. Mas os pesquisadores explicam que a tendência é os fenômenos El Niño e La Niña serem mais frequentes e intensos, com consequências piores afetando a disponibilidade de água para consumo humano. E tudo isso será validado pela ação inconsequente do homem. Além da seca extrema, Roraima foi vítima de incêndios florestais criminosos, que provocaram uma camada de fumaça que encobriu a atmosfera da capital e de outros municípios. Xaud e Wankler receberam na primeira semana de abril a reportagem da Amazônia Real para fazer uma análise aprofundada das mudanças climáticas em Roraima.

Conforme explicou Xaud, quanto mais o homem destrói o meio ambiente, maior é a quantidade de sedimentos que chegam ao rio Branco. “Garimpo, drenos de lavoura, maior quantidade de áreas desmatadas desprotegidas na camada superficial do solo fazem aumentar a sedimentação. A preocupação não é essa queimada perto do rio, porque essas, de certa forma, têm uma certa convivência com o fogo, que é um elemento formador da nossa paisagem de lavrado. Estamos falando do incêndio em grandes áreas que atingem as serras, o conjunto florestal”, alerta.

Haron Xaud durante audiência pública na ALE-RR sobre mudanças climáticas em setembro de 2023 (Foto: SupCom ALE-RR).

Segundo ele, o impacto é muito maior porque as queimadas formam no solo uma camada que é hidrofóbica. “Se jogar uma gota de água numa cinza, não infiltra, ela escorre”, comparou. “Quanto menor a infiltração, maior escorrimento e maior erosão do solo”, explicou. O pesquisador reforça que tanto nas serras quanto nas áreas sem vegetação por conta das queimadas a tendência é que as chuvas causem barrancadas, levando aos rios mais sedimentos.

“O assoreamento deixa esse rio menos profundo”, afirma Xaud ao esclarecer que recentes medições feitas em uma área degradada já apontam “que mais de um milhão de hectares foram atingidos em Roraima”. Como o período chuvoso que se aproxima estará sob efeito do La Niña, lembrou o pesquisador, há probabilidade de ter maior efeito de inundação, uma vez que os rios estarão mais rasos. É um efeito cascata que pode prejudicar todas as bacias hidrográficas de Roraima.

“Quando se joga muita água numa planta, empossa e não infiltra, e, às vezes, transborda do vaso. Chuvas muito intensas e muito concentradas tendem a ter mais escoamento superficial e menos infiltração, e a água desembocará para fora do Estado”, afirma Wankler.

Fábio Wankler, professor de geologia da UFRR (Foto: RCCaleffi/UFRR).

Wankler destaca que todos esses eventos ligados à água vão interferir não somente na escassez ou na inundação, mas na trafegabilidade, seja por via terrestre ou fluvial. Na ponta, pode resultar no isolamento geográfico de algumas comunidades. “Isso ocorreu em 2021 e 2022 com o rompimento de diversos bueiros por esse excesso de água”, lembra Xaud.

As chuvas, explica Wankler, vão garantir volume de água significativo, por volta de junho, para o problema de risco de falta hídrica, mas o impacto no futuro será visível. Para ele, os incêndios provocaram uma grande perda da biodiversidade. “Os efeitos econômicos dos agricultores familiares, que perderam quantidade significativa das fontes de renda e das áreas de produção, não vão se recuperar tão facilmente com a volta das chuvas”, analisa, ao acrescentar que isso também impactará a vida dos povos originários.

A solução para amenizar esse saldo negativo da estiagem, explica Xaud, será políticas públicas ambientais não somente para a recuperação das áreas degradadas, mas, sobretudo, de conservação do bioma. “É preciso, urgente, programas governamentais de recuperação de áreas degradadas, restauração florestal, incentivando o plantio de árvores, espalhamento de sementes peletizadas nas serras, para que a degradação seja paralisada e se tenha um retorno da vegetação florestal.”

O pesquisador da Embrapa diz ser necessário também investir em serviços ambientais para manutenção da temperatura e umidade. “Em Roraima o fogo é vetor de transformação maior que o desmatamento. A água, daqui a pouco, será cada vez mais cara”, relata Xaud.

Pesca mais distante

A escassez do Rio Branco e dos seus afluentes também afetou a atividade pesqueira. “Para o pescador não foi bom e não está sendo bom.  Moro aqui desde 1986 e nunca tinha visto uma seca assim. Estamos no período do defeso [1º de março a 1º julho – pesca proibida], mas não está fácil para o setor pesqueiro”, avalia Raimundo José Gomes Sobrinho, presidente da Colônia de Pescadores Z1 de Boa Vista, que representa 947 pescadores.

O representante da categoria afirma que está em tratativas com os governos de Roraima e Federal “para ver se pagam pelo menos dois meses de salário aos pescadores porque uma seca dessa ninguém esperava”. A “criação de peixe em cativeiro”, afirma Sobrinho, é o que salvou o Estado para que não faltasse o pescado e nem o preço se elevasse. Os locais de pesca, conforme detalhou, são os rios Uraricoera, Tacutu e principalmente no Baixo rio Branco, onde há muitos lagos. 

Sobrinho faz uma conta para atestar o drama dos que dependem das águas. Em janeiro dos anos anteriores, em uma semana ele e os companheiros conseguiam pescar 300 quilos de peixe. Este ano foi preciso irem para mais longe e levaram o dobro do tempo para ter a mesma quantidade de pescado, o que gerou mais despesas. “Prejudicou muito o trabalho dos pescadores, sentimos na pele.” 

Wladimir Souza avalia os prejuízos para as comunidades ribeirinhas e os indígenas que utilizam o rio Branco para a sobrevivência. “No Baixo Rio Branco todas as comunidades utilizam dessa água e vivem em torno do rio. Eles são os que mais se ressentem”. O professor da UFRR ainda ressalta os impactos na navegabilidade de Caracaraí porque “os barcos, com calado um pouquinho maior, não passam na região que vai de Santa Maria do Boiaçú, no Baixo do Branco, até Caracaraí”.

Para reduzir esses impactos no futuro, o pesquisador aconselha a população “a evitar as queimadas, pois todo fogo no Estado é causado pela ação humana”. Ele afirma que a redução de 10% a 20% diminuirá a exposição do solo à erosão. “O processo de evapotranspiração com a queimada desaparece, fazendo com que os raios solares cheguem mais fortemente ao solo, aumentando a temperatura e o efeito da estiagem”, adianta Souza.

Municípios de Roraima sofrem com fumaça e seca dos rios, na foto acima rio Branco em sua pior estiagem (Foto: William Roth/ Março 2024)

Municípios de Roraima sofrem com fumaça e seca dos rios, na foto acima rio Branco em sua pior estiagem (Foto: William Roth/ Março 2024)

Ruas da capital Boa Vista (RR) tomada por fumaça em março de 2024 (Foto: Diane Sampaio/SEMUC)

Ruas da capital Boa Vista (RR) tomada por fumaça em março de 2024 (Foto: Diane Sampaio/SEMUC)

Boa Vista capital de Roraima encoberta por densa nuvens de fumaça (Foto: William Roth/ Março 2024).

Seca do rio Branco em Boa Vista(RR), com vista para a Ponte dos Macuxis, no dia 27 de março de 2024 (Foto: Tony Will / Prefeitura de Boa Vista).

Seca do rio Branco em Boa Vista(RR), com vista para a Ponte dos Macuxis, no dia 27 de março de 2024 (Foto: Tony Will / Prefeitura de Boa Vista).

Seca do rio Branco em Boa Vista(RR), com vistas para a Ponte dos Macuxis, no dia 27 de março de 2024 (Foto: Tony Will / Prefeitura de Boa Vista).

Seca do rio Branco em Boa Vista(RR), com vistas para as pilastras de sustentação da Ponte dos Macuxis, no dia 27 de março de 2024 (Foto: Tony Will / Prefeitura de Boa Vista).