Depois da morte dos filhos, uma das coisas mais difíceis para as famílias é a falta de justiça
Em fevereiro deste ano completaram-se cinco anos da tragédia no Ninho do Urubu, o centro de treinamento de jogadores do Clube de Regatas Flamengo, que vitimou 10 jovens da base flamenguista. As instalações utilizadas como dormitório pelo clube, na zona oeste do Rio de Janeiro, foram tomadas por um incêndio de grandes proporções durante a madrugada, pegando de surpresa os atletas que dormiam em contêineres improvisados.
Para investigar os detalhes do incidente e dar voz às famílias, a premiada jornalista Daniela Arbex lançou o livro Longe do Ninho. Ela entrevistou familiares e encontrou vasta documentação para contar as histórias das vítimas e mostrar como a morosidade da Justiça tem impactado seus pais. Ao todo, oito pessoas foram indiciadas mas, até o momento, nenhum responsável foi condenado.
O clube, que desde o início se eximiu de culpa, aponta a empresa que realizou as instalações dos contêineres, a NHJ, como responsável pela tragédia. O Flamengo firmou acordos individuais para indenizar nove das 10 famílias atingidas pela tragédia.
"Eu acho que o sistema de Justiça precisa urgentemente ser revisto", aponta Arbex. "Se a gente pensar que em 2014 o Ministério Público propôs uma assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta, e o Flamengo se recusou a assinar esse termo. E em 2015, o Ministério Público instaura uma ação civil pública, e se a gente pensar que em 2019, quando o incêndio acontece, esta ação ainda tramitava, a gente vê que o tempo da Justiça definitivamente não é o mesmo tempo de quem precisa dela", explica a jornalista.
No livro, Arbex revela que desde a instalação dos contêineres, o Ministério Público do Rio de Janeiro apontava que as estruturas estavam sujeitas a acidentes. Quatro dias antes da tragédia, os jogadores profissionais do clube mudaram do CT1 para o CT2 do Ninho do Urubu. O novo centro de treinamento era maior e mais moderno e abriria espaço para que os jogadores da base deixassem os contêineres, migrando para as instalações antigas. A mudança, no entanto, não aconteceu no tempo previsto.
"Eu acho que tem uma pergunta que ainda não foi respondida até hoje: porque os meninos não foram transferidos, como foi prometido publicamente, para o centro de treinamento que já estava pronto e que antes era ocupado pelos profissionais, quando eles deixaram esse CT1?”, comenta Arbex.
A jornalista, que acumula livros e obras seriadas sobre algumas grandes tragédias brasileiras dos últimos anos, é a convidada desta semana no BdF Entrevista. Na conversa, Arbex fala também sobre a crise do jornalismo brasileiro, que está no centro do debate da polarização no Brasil.
"Eu acho que a cura para isso é fazer jornalismo de qualidade. Porque existiu, principalmente no último governo, um projeto de poder para descredibilizar a imprensa. E quando você enfraquece a imprensa de um país, você enfraquece a democracia. E qual é a saída? Continuar fazendo jornalismo de qualidade. A melhor resposta é essa, a gente continuar cumprindo o nosso papel”, diz.
Confira a entrevista na íntegra no vídeo. Abaixo, leia trechos da conversa:
Brasil de Fato: Você está lançando o livro Longe do Ninho, sobre a tragédia que matou 10 jovens no centro de treinamento do Flamengo, em 2019. Eu estava lendo o livro, é uma ótima narrativa, como costumam ser os teus livros, com personagens impressionantes, depoimentos importantíssimos e carregado de muita emoção. Como surgiu a ideia do livro, Daniela?
Daniela Arbex: Eu brinco que nem sempre é o jornalista que escolhe a história que ele vai contar. Muitas vezes ele é escolhido pela história. E isso aconteceu tanto nesse livro, o Longe do Ninho, quanto nos outros livros. Em 2022, eu tinha acabado de lançar o Arrastados, livro que narra o rompimento da barragem de Brumadinho. Eu tinha dado uma entrevista em rede nacional e uma mãe de um dos meninos vítimas do incêndio no Ninho do Urubu me mandou uma mensagem se apresentando como a mãe do goleiro Bernardo.
Eu fiquei atravessada por essa mensagem e surpresa pelo fato de que só quando ela me mandou essa mensagem que eu me dei conta de que eu não sabia nem o nome dos meninos. Eu, então, respondi a ela imediatamente e nós começamos a conversar ao longo do tempo. Mas eu falo que eram conversas de mãe para mãe, sem nenhuma intenção de livro, nem tinha passado pela minha cabeça, porque futebol é algo que eu nunca cobri nos meus 30 anos de carreira.
Só que um dia, nessas conversas, ela me mandou várias fotos do Bernardo e uma em especial me atravessou, que foi a foto dele dormindo com a bola. E ela me explicou que o pai, que era goleiro, sempre falou que para ser um bom goleiro, tinha que ter intimidade com a bola. Então ele passa a dormir com a bola.
Ah, aquilo ali realmente fez meu mundo virar de cabeça para baixo e ter o desejo de contar essa história, de entender quem eram todos esses meninos, de que sonhos a gente estava falando, que paixão é essa que faz com que um menino saia de casa aos 10 anos, fique muito longe da proteção das suas famílias, do seu verdadeiro ninho, para viver esse sonho.
No último mês de fevereiro completaram-se cinco anos da tragédia. Quem eram os Meninos do Ninho?
Os Meninos do Ninho eram muito apaixonados pelo futebol desde crianças, sonhadores, que tinham, sim, o desejo de se tornarem ídolos no país do futebol, que representavam a esperança. Por isso que eu digo no livro que ninguém está preparado para a morte da esperança, muito menos para enterrar o futuro, porque esses meninos simbolizavam isso. Simbolizavam vida, raça, simbolizavam um esporte coletivo capaz de promover uma profunda mobilização social.
Eles simbolizavam a luta das famílias, não porque eles eram, como muita gente diz, equivocadamente, que eles eram a galinha de ouro da sua família, a chance da família enriquecer, nada disso. É porque eles eram a esperança da família de que esse filho realizasse esse sonho, é um sonho do filho, não é um sonho do pai e da mãe, pelo contrário.
Muitas famílias tiveram dificuldades para manter seus filhos no Rio de Janeiro, exatamente porque elas tinham uma situação familiar muito precária e tinham que abrir mão de muita coisa pra conseguir manter o menino lá. Porque antes dele ir para o CT (Centro de Treinamento), o menino está por sua conta. Eram despesas muito altas para esses pais, que às vezes gastavam com uma chuteira o salário do mês. Não é sobre isso que a gente está falando, mas a gente está falando também de muito afeto. A gente está falando de muita solidariedade que existia.
E a gente sempre acha que é um ambiente de muita competitividade. De fato é, mas quando esses meninos acabam indo para um centro de treinamento, a família deles são os outros meninos. Então, essa irmandade que existia entre eles, esse afeto que em alguns momentos do incêndio vence até o medo da morte, também impressiona.
São oito indiciados pela tragédia, entre funcionários do clube e de empresas ligadas às instalações dos contêineres, que ainda não foram, de fato, condenados. Porque essa morosidade da Justiça?
Eu acho que o sistema de Justiça precisa urgentemente ser revisto. Se a gente pensar que em 2014, o Ministério Público propôs uma assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta e o Flamengo se recusa a assinar esse termo. E aí em 2015, o Ministério Público ajuíza uma ação, isso é judicializado e é instaurada uma ação civil pública... Se a gente pensar que em 2019, quando o incêndio acontece, esta ação ainda tramitava, a gente vê que o tempo da Justiça definitivamente não é o mesmo tempo de quem precisa dela.
E isso é extremamente doloroso, porque eu percebo que depois da morte dos filhos, uma das coisas mais difíceis para as famílias é a falta de justiça. E a gente precisa de um sistema de Justiça que seja capaz de dar respostas. Porque se a gente pensar bem nas tragédias recentes da história do Brasil – a gente está falando da Boate Kiss, Mariana, Brumadinho, o Ninho do Urubu – todas elas têm em comum o fato da impunidade. E essa cultura da impunidade fortalece as omissões que causam tragédias.
Hoje [terça-feira, 13 de março] acabou de sair o resultado de um pedido de habeas corpus, que foi ajuizado pela defesa do ex-presidente da Vale, o Fábio Schvartsman, para que ele não vá a julgamento. Não é para recorrer de uma sentença, é para impedir que ele vá a julgamento. E isso foi deferido, o habeas corpus foi concedido. Quer dizer, ele não vai ser sequer julgado nesse momento – porque vai ter recurso e talvez isso possa ser revertido.
Mas é assustador, as famílias estão desoladas, como aconteceu na Boate Kiss, quando os réus foram condenados em um julgamento que foi o maior da história do Brasil, de 10 dias, foi uma tortura para as famílias. Eles saem de lá com uma sensação de que a justiça foi feita e essa sensação de justiça é arrancada delas logo depois porque o julgamento foi anulado. É inacreditável.
Soma o número de mortes que essas tragédias recentes trouxeram. Mortes diretas e as indiretas. Em Mariana, nós tivemos 20 mortos, mas depois do rompimento da barragem, 59 pessoas da comunidade morreram. Na Kiss, 242 jovens morreram, mas depois da morte dos filhos, vários pais morreram ao longo desses 11 anos de luta por justiça. Está na hora da gente estancar isso, porque a gente continua sangrando.
De sua parte, o Flamengo acusa de negligência a empresa responsável pelos contêineres, a NHJ. Quais as peças que ainda não se encaixaram nesse quebra-cabeças?
Eu acho que o livro é muito revelador ao mostrar as verdadeiras condições em que o incêndio aconteceu. Eu costumo dizer que o incêndio não aconteceu na madrugada de 8 de fevereiro de 2019, ele começou a acontecer muito antes, quando o Flamengo passou a ser alertado e passou a ser fiscalizado pelo Ministério Público, entre 2012 e 2019, com apontamentos de necessidade de adequação do atendimento oferecido aos atletas em formação.
Em 2016, por exemplo, quando os meninos são levados para essa estrutura, para os módulos operacionais em contêiner, o Ministério Público passa a fiscalizar diretamente os contêineres. Diga-se de passagem, são feitos vários apontamentos de coisas que precisam melhorar, reconhecimento de que alguns apontamentos tinham sido atendidos.
Mas em junho de 2018, uma última fiscalização chamou muita atenção, porque ela confirma que foi uma tragédia anunciada. Quando o técnico do MP diz: "olha, os meninos estão numa estrutura provisória, e ainda que provisória, ela resta inadequada para o atendimento que é oferecido. Se houver uma emergência noturna, haverá grandes dificuldades". Eu acho que a pergunta que fica é: porque de 2012 a 2019, o Flamengo teve tantas oportunidades de se adequar e os meninos não tiveram nenhuma chance?
Eu acho que tem uma pergunta que ainda não foi respondida até hoje: porque os meninos não foram transferidos, como foi prometido publicamente, para o centro de treinamento que já estava pronto e que antes era ocupado pelos profissionais, quando eles deixaram esse CT1, para ocupar um outro ainda maior, ainda mais imponente, com uma estrutura e uma capacidade impressionantes, que coloca esse centro de treinamento equiparado aos grandes centros de treinamento do mundo? Quem deu a ordem para adiar essa transferência? Porque alguém deu. Alguém tomou essa decisão. Esse nome e quem está sendo protegido, a gente ainda não sabe.
Falando de jornalismo, a profissão vive uma grande crise, com parte do país desacreditando completamente na imprensa. Há uma cura para essa chaga?
Eu acho que a cura para isso é fazer jornalismo de qualidade. Porque existiu, principalmente no último governo, um projeto de poder para descredibilizar a imprensa. E quando você enfraquece a imprensa de um país, você enfraquece a democracia. E qual é a saída? Continuar fazendo jornalismo de qualidade. A melhor resposta é essa, a gente continuar cumprindo o nosso papel.
Porque não existe campanha de ódio por algo que não incomoda. E se a gente incomoda, é porque a gente está fazendo bem o nosso papel. Então, acho que a gente precisa entender a importância do lugar que a gente está e do que que a gente está fazendo.
As pessoas sempre falam: "Ah, você ganha tantos prêmios, que legal". Mas a vitória não é da Daniela, é do jornalismo de qualidade. Eu acho que a estrela sempre vai ser o jornalismo profissional de qualidade. A gente tem que cuidar muito disso, porque se não a gente também vai alimentar esse discurso, de que o jornalismo é desnecessário, de que é tanta superficialidade. E para quê existe o jornalismo? Para a gente continuar podendo viver numa democracia. Por isso que o jornalismo existe e vai continuar existindo, porque ele está vivo.
Edição: Thalita Pires
