Minorias na Rússia

Guerra e tensão migratória na Rússia: os dilemas do Kremlin após atentado em Moscou

Após ato terrorista, autoridades russas buscam endurecer leis migratórias e cresce risco de xenofobia no país

Brasil de Fato | São Petersburgo (Rússia) |
Muçulmanos fazem orações matinais em Moscou para iniciar o Eid al-Fitr, que marca o fim do mês sagrado de jejum do Ramadã, em 10 de abril de 2024. - Natalia Kolesnikova / AFP

As consequências do atentado terrorista realizado em Moscou, em 22 de março, prometem afetar a vida dos imigrantes da Ásia Central que vivem na Rússia.

Enquanto, no plano oficial, as autoridades buscam endurecer as políticas migratórias, internamente os cidadãos da Ásia Central ficam em alerta com o risco de aumento da discriminação contra etnias minoritárias na Rússia. Ao mesmo tempo, o contexto econômico do país e a guerra da Ucrânia impõem um dilema a Moscou em relação ao êxodo migratório no país. 

A versão oficial da Rússia sobre o atentado até o momento – a investigação ainda é inconclusiva  – é de que a execução do ataque foi de “radicais islâmicos” e o planejamento possui um “rastro ucraniano”. Apesar das acusações de envolvimento da Ucrânia – e a recusa das reivindicações do Estado Islâmico -, ainda não foram apresentadas quaisquer provas concretas de quem estaria por trás do financiamento e organização do ato. 

Mas o fato de que a maioria dos detidos acusados de realizar o ataque é de cidadãos do Tadjiquistão, impulsiona uma animosidade já presente na sociedade russa em relação a imigrantes da Ásia Central. 

Em termos de política interna, o combate a irregularidades migratórias foi a principal direção das autoridades russas enquanto reação ao atentado em Moscou de 22 de março. Em 2 de abril, o presidente russo, Vladimir Putin, declarou que a imigração ilegal “muitas vezes se torna um terreno fértil para atividades extremistas e a criminalidade”.

“Quando você começa a entender as circunstâncias de um determinado caso, de um crime específico, descobre-se que a pessoa chegou à Rússia sem grandes problemas, passou por todas as formalidades, recebeu um registro de trabalho, muitas vezes tendo uma série de violações da lei nas costas, às vezes odiosas. Então ele solicita a cidadania sem saber nem o básico do idioma russo. Isto requer bases modernas e eletrônicas de dados biométricos. Aquelas que estão funcionando agora, aparentemente, não são suficientes. Não nos permitem mitigar totalmente os riscos e as recaídas da migração ilegal”, declarou o presidente.

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Outros políticos sugeriram iniciativas anti-migratórias mais amplas. O deputado da Duma da Crimeia pelo partido governista Rússia Unida Mikhail Sheremet propôs limitar a entrada imigrantes na Rússia durante a realização “operação militar especial” (nome oficial usado pelas autoridades russas para a guerra da Ucrânia). De acordo com o parlamentar, os estrangeiros “tornam-se automaticamente um objeto de interesse para os serviços de inteligência ocidentais”. 

O Ministério das Relações Internas da Rússia também já preparou no início de abril projeto de lei para reforçar o controle sobre a entrada de estrangeiros no país. O projeto prevê a apresentação de dados biométricos, assinatura de acordo de fidelidade, limitação de estadia na Rússia a 90 dias por ano e inclusão em um registro unificado que permitirá às autoridades controlar a sua circulação e emprego. 

Além disso, em apenas uma semana após o ataque na casa de shows em Moscou, os tribunais da capital determinaram a deportação de mais de 400 estrangeiros. A maior parte dos casos diz respeito a cidadãos homens do Tadjiquistão e do Uzbequistão. Entre 25 e 29 de março, os tribunais de Moscou registraram mais de 1,5 mil violações da legislação migratória sobre as regras de entrada na Rússia ou do regime de permanência no país.

Também foi relatado aumento substancial de batidas policiais em locais de trabalho e habitação onde é significativa a presença de imigrantes da Ásia Central. No local do memorial em homenagem às vítimas do atentado na sala de concertos em Moscou, surgiu uma faixa com a frase “regime sem visto mata”.

O conjunto de casos e medidas referentes a imigrantes da Ásia Central nos primeiros dias após o atentado de 22 de março fez com que alguns países da região recomendassem que os seus cidadãos evitassem temporariamente viajar para a Rússia. 

Uma das principais lideranças da comunidade tadjique na Rússia, Farukh Mirzoev, confirmou que os cidadãos do Tadjiquistão na Rússia foram aconselhados a não comparecer a eventos de massa e a não sair de casa à noite devido ao desejo de prevenir possíveis conflitos por motivos étnicos devido à atual “situação difícil”.

Tensão migratória é constante na história recente da Rússia

De acordo com uma pesquisa de opinião pública do Centro Levada, realizada ainda no começo de 2022, estudos de longo prazo sobre xenofobia, racismo e anti-semitismo, desde 1989 indicam a persistência de preconceitos étnico-nacionais e raciais, que, sobretudo em momentos de crise, representam o desejo dos russos de se proteger de uma suposta “ameaça ao modo de vida dos russos, aos interesses materiais ou à perda da cultura da maioria étnica da Rússia". 

Hoje, quase 90% dos trabalhadores migrantes que entram na Rússia vêm de apenas três países, todos ex-repúblicas soviéticas : Uzbequistão, Tadjiquistão e Quirguistão. Estes trabalhadores migram para a Rússia em busca de melhores oportunidades de trabalho e, em grande medida, ocupam os empregos mais precarizados e, portanto, formam a parcela mais pobre e segregada da população. 

De acordo com o jornalista especializado em Oriente Médio, Ruslan Suleimanov, “a relação com os imigrantes da Ásia Central na Rússia, para dizer o mínimo, nunca foi fácil”. “Sempre houve um tratamento a eles como de pessoas de segunda classe, que exercem os trabalhos mais precários, que têm menos direitos”, diz ao Brasil de Fato.

O estudo do Centro Levada mostra que em um período de cinco anos, até o fim de 2021, a percentagem daqueles que acreditam que o governo russo deveria limitar o fluxo de migrantes aumentou de 58 para 68-73%. Um quarto dos russos (25%) respondeu que só permitiria a entrada de migrantes na Rússia temporariamente, e, em geral, 27% dos russos entrevistados não permitiriam a entrada de migrantes no país.


Muçulmanos fazem orações matinais em São Petersburgo para iniciar a celebração do Eid al-Fitr, que marca o fim do mês sagrado de jejum do Ramadã, em 10 de abril de 2024. / Olga Maltseva / AFP

Já o pesquisador do Centro Carnegie Berlim para Estudos Russos e Euroasiáticos, Temur Umarov, em entrevista ao Brasil de Fato, reforça que, mesmo antes da guerra, cerca de um quarto da população da Rússia apoiava a proibição total da vinda imigrantes na Rússia. 

“Ou seja, um nível de xenofobia já existia, há um número grande de notícias e histórias sobre as dificuldades que os migrantes sabem muito bem, de alugar apartamento, dificuldade de arranjar emprego. Um nível de xenofobia sempre existiu, mas agora, com certeza, aumentou por conta do atentado”, afirmou. 

Ameaça de xenofobia preocupa o Kremlin

Apesar da histórica tensão migratória que há na Rússia em relação a cidadãos da Ásia Central, o Kremlin sabe dos riscos da radicalização de discursos de ódio na sociedade e constantemente reforça o discurso de ressaltar a diversidade e o caráter multiétnico que há no país. Cerca de 20% da população que vive na Rússia é composta por cidadãos não russos. E há também uma grande população de muçulmanos, que compõem uma parcela cerca de 10 milhões de pessoas 

O receio com o aumento da discriminação ficou explícito na fala do presidente russo, Vladimir Putin, após o atentado em Moscou. Ele fez um alerta sobre os riscos de ser estabelecida uma conexão entre o atentado terrorista e a nacionalidade dos acusados.

“Quero destacar que é inaceitável usar os recentes acontecimentos trágicos para provocar o ódio nacional, a xenofobia, a islamofobia, e assim por diante. Inclusive esse era justamente o principal objetivo dos terroristas e, acima de tudo, dos mandantes, semear discórdia e pânico, conflitos e ódio no nosso país, para dividir a Rússia por dentro. Esta é a sua principal tarefa. Não devemos, em circunstância alguma, permitir que façam isso”, destacou Putin. 

O alerta do presidente tem lastro histórico. No começo dos anos 2000, a Rússia viveu onda de violência provocada por grupos nacionalistas de extrema direita. Não coincidentemente, o período foi precedido pela Guerra da Chechênia e marcado por inúmeros atentados terroristas provocados por radicais islâmicos ligados ao conflito. 

Segundo  a especialista do centro de investigação Sova, Vera Alperovich, citada pelo portal Moksvichmag, “na década de 2010, as autoridades combateram ativamente o discurso xenófobo anti-imigrante e praticamente erradicaram-no”. No entanto, houve aumento acentuado de casos de violência contra minorias em 2023, quando foram registrados 133 crimes deste tipo, sendo que no ano anterior este índice havia sido de apenas 30. Em 2024, em menos de três meses, 46 casos de violência contra migrantes e minorias foram registrados. 

Em 27 de março, o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que a Rússia é um país multinacional e multi-religioso, destacando que “a paz interétnica no Estado deve ser tratada com cuidado”. 

“Quando ouço patriotas chauvinistas - existem pessoas assim em todos os lugares, em qualquer sociedade - incluindo aqueles que dizem que a Rússia é apenas para os russos, fico com uma sensação de aflição”, declarou o chefe de Estado. 

O líder russo destacou que todos os representantes de todas as religiões, incluindo muçulmanos e judeus, são tratados com respeito na Rússia. “Assim que começarmos a implementar estes pensamentos destrutivos sobre o fato de todos os outros serem estranhos aqui, arruinaremos o país”, completou o presidente.

Economia e a guerra da Ucrânia

A narrativa da pluralidade na sociedade russa também tem uma importância estratégica para o país, que precisa da força de trabalho do êxodo migratório. Segundo o pesquisador do Centro Carnegie Berlin para Estudos Russos e Eurasiáticos, Temur Umarov, o peso do luxo migratório na Rússia está ligado tanto à crise demográfica na Rússia, quanto às necessidades de recursos humanos na guerra da Ucrânia.  

O analista observa que nos últimos anos, sobretudo após o início da guerra da Ucrânia, a vinda de imigrantes para ocupar postos de trabalho na Rússia foi incentivada e facilitada pelo governo. 

“Em primeiro lugar, a situação demográfica na Rússia começou a piorar gradativamente, o que demandou maior fluxo migratório para dar suporte à estabilidade econômica. E, para isso, o governo da Federação da Rússia fez com que imigrantes tivessem melhores condições de trabalho, que conseguissem encontrar trabalho ainda estando no seu país de origem, e então foram assinados acordos com os governos dos países da Ásia Central e abertos pontos de recrutamento em várias cidades da região”, explica. 

De acordo com um estudo do Instituto de Economia da Academia Russa de Ciências, a escassez de pessoal na Rússia em 2023 chegou  a quase 4,8 milhões de pessoas. Essa escassez de mão-de-obra, segundo analistas, persiste mesmo em condições de oferta estável no mercado de trabalho e já está abrandando o crescimento econômico do país.  

A mesma facilitação da incorporação de imigrantes à jurisdição russa está conectada com  o processo de reforço das tropas na guerra da Ucrânia. Muitos estrangeiros são recrutados para o front assim que ganham a nacionalidade russa. 

“Da mesma forma, as Forças Armadas precisaram usar de todas os recursos humanos possíveis para aumentar o exército russo, e para isso, os imigrantes também foram ativamente usados [...] foi facilitado o processo de recebimento da cidadania russa para atrair os imigrantes a assinar acordos com o Ministério da Defesa”,diz Temur Amurov. Ele aponta que esta prática foi ativamente usada por parte de empresas privadas militares, como no caso do grupo Wagner”, mas também através de contratos com o Ministério da Defesa. 

Em 4 de janeiro deste ano, Vladimir Putin assinou um decreto sobre a concessão da cidadania russa a estrangeiros que assinassem contrato para servir no exército ou em “formações militares” durante o período da “operação militar especial”. 


Ucrânia dispara contra posições russas, na região de Donetsk, em 20 de janeiro de 2024 / Roman Pilipey/AFP

Segundo o documento, a cidadania russa pode ser obtida não apenas pelos estrangeiros que assinaram o contrato, mas também pelos membros de suas famílias: cônjuges, filhos e pais do trabalhador contratado. Ao mesmo tempo, a cidadania russa é concedida apenas aos estrangeiros que celebram um contrato por um período de pelo menos um ano.

Toda a conjuntura envolvendo a guerra da Ucrânia, a situação econômica, humanitária, e o atentado em Moscou, impõe ao Kremlin um dilema paradoxal: ao mesmo tempo que a Rússia precisa enfrentar os riscos de radicalização xenófoba e promover a pluralidade multi-étnica, a continuidade da guerra, alimentada por uma retórica anti-Ocidente, reforça na sociedade justamente um patriotismo apropriado pela extrema-direita nacionalista do país. 

“Eu não acho que o governo russo esteja interessado em espalhar essa xenofobia, porque o próprio governo russo faz uso dos serviços provenientes da Ásia Central […] Mas no nível cotidiano, infelizmente, sim, nós vamos observar uma xenofobia, já podemos ver isso, há relatos de pessoas que se recusam a entrar em um táxi se percebem que o motorista é tadjique, por exemplo. Tudo isso irá acontecer”, afirma Ruslan Suleimanov. 

Já o pesquisador Temur Amurov aposta na integração como único caminho possível para conter os riscos de aumento da violência contra minorias no país. 

“Eu acredito que a integração é a única forma de realmente impedir a radicalização e diminuir os níveis de xenofobia. E, em geral, fazer da relação entre os imigrantes e os cidadãos da Rússia harmoniosa”, completa. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho