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Lula, Bolsonaro, BBB e a cultura justiceira: por que o Brasil busca a 'redenção do injustiçado'

O povo brasileiro, em sua maioria, tem sede de justiça, e o tem, justamente pela falta dela

São Paulo (SP) |
A Justiça, escultura localizada em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF) - Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Todo ano o programa Big Brother Brasil exibe, de modo cristalino, uma característica cultural muito forte da população brasileira: a vontade de se fazer justiça. Em mais de 20 edições, há uma característica comum entre os vencedores do programa: todos, em algum momento, foram injustiçados e perseguidos por outros participantes da casa. Não importando muito qual posicionamento político, cor, origem social ou gênero deles, os que foram injustiçados, venceram. Essa condição fez vitoriosos desde Jean Willys, Gleice Damasceno e Juliette (figuras em aparência mais progressista), mas também Kléber Bambam, Marcelo Dourado, Maria Melilo e até Arthur Aguiar se tornaram vencedores por isso. E é o que acontece novamente em 2024, com o participante Davi Brito, apontado como favorito.

Essa mesma condição, de injustiçado e perseguido, fez parte da trajetória de dois outros líderes populares do Brasil, Lula e Bolsonaro, cada um a sua maneira. Lula, carrega em si sua história de vida, marcada pela extrema privação a que os pobres são submetidos no Brasil, por ser atacado como sindicalista e, posteriormente, pela perseguição ilegal da Lava-Jato. Já Bolsonaro, sempre se apresentou como um suposto outsider do “sistema político” que o perseguiria, um suposto militar rebelde e falastrão que consolidou a imagem de acossado,no episódio da facada em Juiz de Fora.

O povo brasileiro, em sua maioria, tem sede de justiça, e o tem, justamente pela falta dela. Ele, se puder, fará justiça com as próprias mãos. E é também por isso que programas como o Brasil Urgente, Cidade Alerta, entre muitos outros, fazem sucesso. E, além desses programas policialescos, faz sucesso o BBB. O brasileiro anseia por poder contribuir com a “redenção do injustiçado” em programas de TV. Faz isso votando alucinadamente nos tais “paredões”. Mas faz isso também na “vida real”. Pode-se dizer que uma parte dos eleitores dos últimos presidentes os elegeu também por isso: colaborar com a redenção de um injustiçado e/ou perseguido. Seja para o retirante metalúrgico, seja para o militar esfaqueado.

Essa característica cultural brasileira tem uma origem material e concreta, para além da injustiça histórica estrutural. Há muita dificuldade de acesso à justiça no país, que é cara e lenta. Além disso, os índices de investigação e julgamento são baixíssimos. Dados do Instituto Sou da Paz de 2023 apontam que a taxa de resolução de assassinatos no Brasil foi de 35% em 2021, contra uma média global de 63%. Estudos mais antigos apontavam números ainda mais graves. E piores ainda se esses crimes são cometidos contra os mais pobres. De modo geral se esclarece, via investigação, muito pouco no Brasil. E ainda assim, dos esclarecidos, há uma distância enorme entre julgamento e condenação. Aqui também com uma diferença de classe gritante, onde os ricos conseguem mais habeas corpus, interpor recursos e apelar a tribunais superiores, por um lado, ou tem seus algozes mais facilmente condenados, por outro.

Portanto, a prática cotidiana da injustiça impera, mas reside sobretudo na camada mais pobre da população, desde o celular roubado, racismo, inúmeros tipos de golpes contra idosos, até violência física, trabalhista e contra a mulher. Essa injustiça vivida fundamenta o sentimento de injustiça. E esse sentimento fundamenta a cultura por justiça que,de tempos em tempos, pode se transformar em justiçamento e até vingança, ou apoio a ela.

A indústria cultural, por sua vez, explora essa condição. E se faz isso em nível mundial, consagrando obras como Batman, Watchmen, Sin City e Tropa de Elite (filmes que exploram essencialmente a figura do justiceiro/vingador), no Brasil, quando essa produção ideológica se une ao dado real da injustiça, ela encontra terreno fértil para o desenvolvimento desse sentimento.

Esse “sentimento” que gera um caldo cultural justiceiro é trabalhado intensamente pelo discurso extremista de direita. A esquerda se esquiva do assunto, não cria uma narrativa popular de punição e justiça para as camadas mais pobres, e se perde em discursos mais complexos (embora verdadeiros) sobre a produção da violência. Esse discurso não dá solução simbólica e imediata ao sentimento cotidiano de injustiça.

Essa cultura por justiça portanto atravessa toda a luta política. No plano eleitoral, multiplica candidatos que se vitimizam, forjam atentados e se vestem como antissistema, prontos para serem salvos pelo povo. Mas no sentido político mais amplo, essa cultura caracteriza uma vontade geral que precisa ser encarada seriamente, também em termos ideológicos. Na medida em que uma reforma profunda do sistema de justiça está muito longe do horizonte, é necessário ao menos desarmar a bomba cultural que ela gera, criando novos discursos simbólicos que exibam o classismo dessa condição e direcionem a justa sede de justiça popular que o Brasil possui.

* Guilherme Leite Cunha é produtor e crítico cultural. Criador da revista de crítica de arte DAZIBAO, é mestre em Estética e história da arte pela Universidade de São Paulo, e pesquisa as relações entre cultura e política.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Matheus Alves de Almeida