Os últimos anos têm sido de profundas transformações em Cuba. As ruas de suas principais cidades parecem mudar de fisionomia de forma vertiginosa, novos lugares aparecem junto com tipos de consumo que antes não eram vistos. Na percepção popular, essas mudanças são muito palpáveis. Em qualquer conversa de rua, inevitavelmente surge o comentário "o país mudou".
E certamente o país está mudando. Na última década, Cuba vem passando por importantes debates sobre o que chama de "atualização do modelo econômico e social da Revolução Cubana". Um processo de transformações dentro da Revolução que, ao longo desse tempo, teve avanços e recuos.
No entanto, foi nos últimos três anos que as transformações mais importantes se ampliaram. A partir de 2021, as principais medidas de atualização começaram a se materializar.
Em janeiro daquele ano, foi realizado o "processo de reunificação monetária e cambial", mudança na moeda que implicou em forte desvalorização - com queda no poder de compra -. Ao mesmo tempo, em setembro de 2021, pequenas e médias empresas privadas, conhecidas como Mipymes, começaram a ser abertas.
No entanto, essas mudanças foram implementadas ao mesmo tempo em que Cuba estava passando por grave crise. A pandemia de covid-19 afetou em cheio uma das principais fontes de renda do país, o turismo.Durante 2020, a economia cubana havia sofrido queda de 10% no PIB, número do qual ainda não se recuperou totalmente. Naquela época, o governo de Donald Trump nos Estados Unidos aproveitou a pandemia para reforçar o bloqueio contra Cuba, causando mais dificuldades ainda para a ilha.
Dessa forma, muitos dos debates sobre a "atualização do modelo econômico e social da Revolução Cubana" ficaram em segundo plano, dada a necessidade de dar respostas urgentes à crise.
Um horizonte chamado socialismo
Até o triunfo da Revolução em 1959, Cuba sempre viveu sob o jugo de potências estrangeiras. O país foi a última colônia a conquistar independência do Império Espanhol. Entretanto, pouco antes de os combatentes cubanos vencerem a guerra de independência, os Estados Unidos ocuparam a ilha.
A partir desse momento, o imperialismo estadunidense implantou o neocolonialismo em Cuba. Embora houvesse um sistema formal de governo independente na ilha, todas as atividades econômicas e políticas eram monitoradas por Washington.
Foi somente com o triunfo da Revolução de 1959 que o país conquistou sua independência. Dois anos depois, em abril de 1961, Cuba declarou que começaria a se mover em direção à construção de uma sociedade socialista.
"Do ponto de vista econômico, o socialismo se baseia na propriedade social dos meios de produção. O que isso permite é que a apropriação da riqueza seja social e não privada", explica Ileana Díaz Fernández, doutora em Ciências Econômicas e professora do Centro de Estudos da Economia Cubana, ao Brasil de Fato.
A desinformação e a propaganda falsa sempre foram ferramentas para atacar as ideias socialistas. No entanto, Ileana enfatiza que o socialismo se baseia em uma ideia relativamente simples, "o fato de que os meios de produção que impulsionam a economia são propriedade de todas as pessoas".
Para isso, ela explica que "em primeiro lugar, é o Estado que, em nome de todas as pessoas, gerencia esses recursos de alguma forma. Mas, em última análise, são as pessoas que os possuem. Portanto, isso é algo que não deve ser privatizado. E há uma linha que deve ser preservada". Elucida em relação aos debates atuais em Cuba.
Planejar o futuro
A ideia de "Planejamento Econômico" está no centro da história do socialismo, apesar de desprezada pelos liberais, para os quais a economia deve estar sujeita apenas à livre concorrência e à busca do lucro privado. Mas para os defensores do "planejamento econômico", a produção de bens e serviços tem inevitavelmente função social que não pode ser delegada à anarquia das forças de mercado, cujo único objetivo é a acumulação de lucros.
Dessa forma, acredita-se que a economia deve ser dirigida de modo que seu funcionamento tenda à resolução de metas ou problemas sociais.
Durante o século 20, foi a União Soviética que, devido ao seu peso geopolítico, instalou sua forma particular de entender o planejamento econômico no campo socialista. Mas nunca houve apenas uma única maneira de entender como deveria ser este planejamento. Mesmo modelos diferentes que nem sequer poderiam ser vistos como socialistas, desde os governos populares latino-americanos de meados do século até os Estados de bem-estar social europeus, experimentaram algum grau de planejamento de suas economias.
Ileana Díaz Fernández argumenta que o socialismo cubano deve ter economia planejada. No entanto, ela ressalta que muitos dos debates pelos quais a ilha tem passado nos últimos anos estão centrados em como esse planejamento deve ser entendido.
Desde setembro de 2021, pequenas e médias empresas privadas, conhecidas como Mipymes, estão sendo abertas em Cuba como parte de várias medidas de "atualização econômica" em processo de implementação no país há uma década.
"O planejamento não significa necessariamente que um órgão do governo tome todas as decisões econômicas", diz ele, referindo-se ao antigo modelo soviético. Como alternativa, Ileana propõe entender o planejamento como "a maneira pela qual o Estado conduz a economia de acordo com determinadas metas, determinados objetivos estratégicos de acordo com sua visão do país ou com o que deseja alcançar."
A pesquisadora costuma ilustrar o significado de planejamento usando uma metáfora. Ela propõe pensar no planejamento econômico como uma estrada traçada pelo Estado. Nela, os atores econômicos seriam veículos, de diferentes tamanhos e que viajam em diferentes velocidades. Esses carros podem tomar as decisões que quiserem, mas sempre respeitando certas regras impostas pelo Estado.
"Cuba precisa continuar planejando, mas precisa melhorar a forma como administra seus agentes econômicos, todas as suas empresas privadas, estatais e cooperativas. E como, ao mesmo tempo, consegue tornar o Estado mais eficiente em seu funcionamento", afirma.
A Revolução Cubana enfrenta um grande desafio: gerar as mudanças necessárias que possam atualizar seu modelo e, ao mesmo tempo, lutar para preservar o coração do projeto, que é a justiça social e a defesa dos mais humildes.
Entretanto, além desses desafios, Cuba não enfrenta apenas os problemas internos de qualquer país, mas também a hostilidade constante da principal potência internacional, os Estados Unidos. Isto gera dificuldades extraordinárias em uma luta desigual.
"A justiça social é a alma do projeto socialista. E é o horizonte ao qual aspiramos", diz Ileana.
Ao longo desses 65 anos, vários esforços foram feitos para alcançar justiça social: distribuição de terras aos camponeses sem-terra; a extensão e universalização dos sistemas gratuitos de saúde e educação; a democratização do acesso ao esporte e à arte; etc. Entretanto, o horizonte da justiça social é desafio constante que precisa ser sempre atualizado. Nenhuma conquista, por mais importante que seja, é irreversível. Cada batalha submete as conquistas sociais a novos desafios.
"Quando falamos de justiça social, nem todo mundo tem as mesmas condições de vida, mesmo no socialismo. Por razões de origem ou pela própria vida. O objetivo é conseguir isso ao longo do tempo. Sempre pode haver pessoas que, por determinados motivos, estão em uma situação vulnerável. Portanto, essas pessoas precisam ser protegidas."
O bloqueio: entre o urgente e o importante
"Cuba está sujeita a uma asfixia econômica constante que não pode resolver apenas com seus próprios meios", reflete Ileana. A ideia de asfixia não é apenas uma metáfora, mas é exatamente o objetivo da política de bloqueio econômico: provocar o colapso da economia cubana.
O Estado cubano não pode realizar nenhuma operação comercial ou financeira de forma normal, como a maioria dos países faz. Isso ocorre porque Washington não apenas proíbe suas empresas de negociar com Cuba, mas também sanciona terceiros que tentam negociar com a ilha. Tratase de uma clara coerção extraterritorial.
Além disso, o bloqueio impede que Cuba tenha acesso a créditos internacionais para financiar grandes projetos de infraestrutura que poderiam melhorar sua capacidade produtiva: desde a construção de uma estrada até a modernização de uma usina de energia. Muitos dos problemas de energia de Cuba podem ser explicados por esses fatores.
O bloqueio contra Cuba é um dos grandes exemplos da violação sistemática e constante do direito internacional. Todos os anos, desde 1992, a Assembleia Geral da ONU tem se pronunciado, por esmagadora maioria, contra o bloqueio mantido pelos Estados Unidos. Argumentando que se trata de uma política que viola "a igualdade soberana dos Estados, a não intervenção e a não interferência em seus assuntos internos e a liberdade de comércio e navegação internacionais". No entanto, ao longo dessas mais de três décadas, Washington manteve sua política autoritária com impunidade.
De acordo com as últimas estimativas da ONU, o bloqueio gerou perdas de US$ 13 milhões de dólares (R$ 66 bi) por dia para o Estado cubano somente no ano passado. Uma quantidade gigantesca de recursos que o país está impedido de usar para melhorar a qualidade de vida de sua população.
Essas dificuldades significam que "o que pode não ser uma crise para outro país é uma crise para Cuba", diz Ileana. "Estamos sob bloqueio há 60 anos e não há sinal de que isso vá mudar. Portanto, como país, temos que pensar que isso não vai mudar. Pode piorar ou melhorar um pouco, mas no momento não vai mudar", observa.
Durante as eleições presidenciais de 2020 nos EUA, o candidato democrata Joe Biden prometeu reverter algumas das medidas que seu oponente Donald Trump havia adotado para reforçar ainda mais o bloqueio em meio à pandemia de Covid-19.
No entanto, ao chegar ao fim de seu mandato, nenhuma dessas promessas foi cumprida. Não parece provável que em um ano eleitoral, apesar das pressões internas, Biden cumpra suas promessas. Enquanto um eventual triunfo do ultradireitista Trump nas eleições deste ano poderia, mais uma vez, reforçar ainda mais o estrangulamento contra Cuba.
Ileana argumenta que o bloqueio deve ser pensado como doença crônica. "Você sabe que vai ter para o resto da vida e é muito perigosa porque pode piorar. As condições excepcionais impostas pelo bloqueio são sufocantes. E elas também exigem que você esteja constantemente procurando maneiras criativas de escapar desse sufocamento."
Mas todos esses esforços para mitigar os efeitos corrosivos do bloqueio exigem uma enorme mobilização de recursos, tempo e energia. Uma frente de batalha constantemente aberta que piora qualquer crise. O desafio é que "as outras causas da crise devem ser minimizadas, olhando para o futuro. E é claro que isso não é fácil, porque constantemente temos emergências decorrentes do bloqueio".
Certamente, nem todos os problemas de Cuba são resultado do embargo. Mas também é verdade que todos os problemas são agravados pelo bloqueio.
O bloqueio impõe uma lógica em que as emergências devem ser atendidas constantemente. As compras feitas pelo país são canceladas pelas empresas vendedoras no último minuto devido à pressão dos Estados Unidos. Fornecedores que não podem chegar ao país devido às sanções que podem sofrer. Pagamentos feitos pelo Estado cubano e retidos pelos bancos. E assim por diante, uma longa lista de dificuldades que precisam ser superadas diariamente.
São alimentos, energia e suprimentos médicos que o país precisa obter para seu funcionamento e que estão sendo constantemente bloqueados. Isso afeta diretamente o povo cubano, inclusive os setores mais vulneráveis.
A necessidade constante de resolver emergências dificulta o fornecimento de soluções para as importantes mudanças de longo prazo. Ileana diz que esse é o principal desafio "olhar para o futuro, para o futuro e para o futuro".
Edição: Rodrigo Durão Coelho