Tião Galinha, o personagem de Renascer, está disposto a entregar a vida do seu filho para o Diabo, em troca de enriquecer – sua visão de riqueza é um pedaço de chão para plantar, e assim, deixar de ser um empregado que nunca consegue nada na vida. A trama da novela se parece com a realidade de muitos brasileiros, para quem o acesso à terra é algo quase impossível, e requer tamanho sacrifício. Por outro lado, para alguns poucos, as facilidades de acesso à terra são renovadas e perpetuam a estrutura fundiária patrimonialista e coronelista no país.
Segundo dados do governo federal, cerca de 80 mil famílias vivem em acampamentos e estão registradas nos cadastros da reforma agrária, sendo que o Estado brasileiro tem um grande volume de terras públicas não destinadas, ainda sem finalidade definida. Essas terras poderiam ser designadas para a criação de Unidades de Conservação, reforma agrária, reconhecimento de territórios tradicionais de uso comum ou, ainda, destinadas para regularização fundiária a privados.
A Constituição Federal garante como prioridade a destinação de terras públicas para regularização fundiária de territórios tradicionais, reforma agrária e a criação de Unidades de Conservação, mas nem sempre é isso o que acontece. O estado do Tocantins é um bom exemplo para entender como os interesses de poucos prevalecem sobre as prioridades constitucionais.
A Lei de Terras do Tocantins (Lei 3.525/2019) promove muitas facilidades para a regularização de terras estaduais que estão ocupadas por fazendeiros, permitindo que sejam convalidados títulos precários, que não poderiam ser considerados como propriedade.
Tudo isso é realizado em total discordância com as normas constitucionais que asseguram a prioridade de destinação das terras públicas. Os impactos socioambientais são evidentes: dados do Inpe mostram que o desmatamento no estado escalou a partir da aprovação dessa lei. Na prática, para regularizar imóveis, basta apresentar a matrícula no Cartório de Registro de Imóveis, e não é necessário provar que se tem a posse. Tampouco o Estado realiza análise in loco para comprovar se há outros posseiros, ou se o imóvel cumpre alguma função socioambiental.
Toda essa facilidade tem sido a principal causa de conflitos fundiários no Tocantins, pois o pretenso "proprietário" consegue o título do imóvel, passando por cima dos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais e outros posseiros que teriam prioridade na regularização da terra. A Lei de Terras do Tocantins não garante para a sociedade brasileira o direito de ver as terras públicas sob os cuidados de agricultores familiares ou povos e comunidades tradicionais que vivem e produzem de maneira sustentável. Vários estudos já evidenciam que os territórios tradicionalmente ocupados são os que mais conservam a natureza e a biodiversidade em todo o planeta.
Para piorar esse quadro, uma outra proposição legislativa está em discussão no Senado Federal, o Projeto de Lei 1.199/2023, de autoria do senador Eduardo Gomes (PL/TO) e com a senadora Dorinha Seabra (União/TO) como relatora. Esse PL prevê a transferência de terras públicas não destinadas da União para o estado do Tocantins, aumentando em cerca de 5 milhões de hectares o estoque de terras a serem regularizadas à luz desses normativos estaduais.
Embora trate de uma matéria extremamente relevante, não apenas para o Tocantins, mas para toda a sociedade brasileira, a proposta avançou rapidamente, sem passar por comissões temáticas relacionadas ao tema, como por exemplo da Comissão de Meio Ambiente, ou de Direitos Humanos, ou de Agricultura e Reforma Agrária e, sobretudo, sem debate algum com a sociedade.
Caso o projeto seja aprovado e sancionado, a gestão dessas áreas seguirá as diretrizes da legislação fundiária estadual, que, no caso do Tocantins, já está sendo contestada no Supremo Tribunal Federal por várias organizações socioambientais. É de suma importância, portanto, olhar com clareza para a complexidade das questões relacionadas à gestão de terras e dos recursos naturais no Brasil, sobretudo porque eventual repasse do patrimônio público, sem levar em consideração as normas constitucionais, agrava os conflitos fundiários e o desmatamento.
O Tocantins deve destinar suas terras em conformidade com a Constituição Federal, de modo a promover efetivamente o desenvolvimento com justiça social e ambiental. Parece que hoje, no estado, o sacrifício do Tião Galinha continua sendo necessário para as famílias que lutam por um pedaço de chão ou para as comunidades que aguardam há décadas a regularização fundiária de seus territórios tradicionalmente ocupados.
* Por Silvana Bastos (Instituto Sociedade, População e Natureza), Patricia Silva (Instituto Sociedade, População e Natureza) e Fátima Dourado (Coalizão Vozes do Tocantins por Justiça Climática)
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Matheus Alves de Almeida