Durante o ano de 2023, o primeiro deste mandato do presidente Lula (PT), houve uma diminuição em quase 34% dos assassinatos no campo. A quantidade de conflitos ligados à questão agrária, no entanto, bateu recorde: os 2.203 casos registrados representam o maior número desde que a Comissão Pastoral Terra (CPT) começou a fazer o levantamento, em 1985. Episódios de violência disputando, no total, 59 milhões de hectares em todo o Brasil, envolveram cerca de 950 mil pessoas.
Os dados constam no 38º Relatório Conflitos no Campo Brasil, lançado pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, da CPT, nesta segunda-feira (22). A maioria dos conflitos — que incluem despejos, ameaças de morte, intoxicação, destruição de casas e roçados, entre outros — são relacionados à disputa por terra (1.724), seguidos de 251 ocorrências de trabalho escravo rural e 225 episódios envolvendo a luta por água.
O maior número de casos foi registrado na Bahia, onde foi criado o grupo ruralista Invasão Zero, suspeito por atuar como milícia rural em âmbito nacional e investigado por envolvimento no assassinato de Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó.
Em seguida, estão Pará, Maranhão, Rondônia e Goiás. Apesar de o estado baiano despontar entre os entes federativos com mais episódios de violência na área rural, na escala das regiões o Nordeste fica atrás da Norte.
Desde a redemocratização do país, quando a CPT começou a fazer o monitoramento, o ano com a maior quantidade de conflitos era 2020, no contexto da chegada da pandemia de covid-19, sob o governo Bolsonaro. Agora, o primeiro lugar é de 2023.
“Há uma ação deliberada por parte dos governos estaduais e pela articulação no Congresso com latifundiários e fazendeiros diretamente nos territórios, que é o Invasão Zero. Esse movimento juridicamente formado, com uma ala muito forte no Congresso Nacional, em contraponto às ações de resistência das comunidades, em especial indígenas e do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]”, analisa Isolete Wichinieski, da coordenação nacional da CPT.
“Depois de mais de um ano de governo Lula, nós tivemos o anúncio, na semana passada, de um programa dito de reforma agrária que, na verdade, não ataca a questão principal que é a concentração fundiária”, afirma Isolete, se referindo ao Programa Terra da Gente.
“A gente também se pergunta com que orçamento que o governo federal pretende implementar essas políticas, já que há a contenção de gastos. Além de uma articulação no Congresso Nacional em que muitas vezes as pautas do campo, sejam indígenas, quilombolas ou camponesas, têm sido moeda de troca com a bancada ruralista para aprovação de leis consideradas caras ao governo”, considera a coordenadora da CPT.
Retirada à força dos territórios
Entre os conflitos por terra, as ocorrências mais comuns de violência em 2023 foram de invasões ou retirada forçada de comunidades dos seus territórios. Quase 75 mil famílias foram afetadas pela invasão de 359 áreas. Outras 2.163 foram expulsas de onde viviam.
Os casos de despejos com ordem judicial tiveram um aumento significativo, passando de 17 em 2022 para 50 no ano passado. O cenário coincide com o fim da vigência da ADPF 828, quando por pressão de movimentos populares, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu as remoções forçadas no Brasil por conta da pandemia. A CPT registrou, ainda, que em 2023 havia 183 comunidades no campo sob a iminência da reintegração de posse.
A pistolagem apareceu como a segunda forma mais frequente de violência contra territórios ocupados ou já de posse das comunidades. Em um ano, o número de casos saltou 45%.
Os principais alvos destas ações foram trabalhadores rurais sem-terra, seguidos por posseiros, indígenas e quilombolas.
Cresce em 50% violência causada por governos estaduais
Os principais perpetradores da violência nos conflitos por terra no Brasil são, segundo a CPT, fazendeiros, seguidos por empresários. Em terceiro lugar está o governo federal.
Neste caso, aponta o relatório, “mesmo com a pequena diminuição no total das violências causadas [pelo governo federal] e com a maior abertura de diálogo com os movimentos sociais, por meio da reestruturação de ministérios como o do Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos e Justiça, além da criação do Ministério dos Povos Indígenas, isto não se refletiu em avanços na conquista de direitos pelas populações camponesas e tradicionais, como a reforma agrária e a demarcação das terras indígenas”.
Em seguida, estão os grileiros e os governo estaduais. Estes últimos, destaca o relatório, “têm agido com repressão policial intensa contra acampamentos e assentamentos, comunidades quilombolas e terras indígenas”.
Os casos de violência praticados por governos estaduais saltaram 50% de 2022 para 2023. Os destaques são para os estados de Goiás, governado por Ronaldo Caiado (União Brasil); Bahia, por Jerônimo Rodrigues (PT) e Mato Grosso do Sul, por Eduardo Riedel (PSDB).
Indígenas são os mais assassinados
Já entre as 31 pessoas assassinadas por conflitos no campo em 2023 (uma redução em relação às 47 do ano anterior), 14 eram indígenas. “Nos deparamos com um cenário de muita violência”, denuncia Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“Grupos como o Invasão Zero têm atuado não só na Bahia, mas se instalado em outros estados e trazem muita preocupação pelo modus operandi que têm praticado. Resultado da morte da Pajé Nega”, destaca em entrevista ao Central do Brasil, ao contar que esteve no seu sepultamento. “O nosso temor é que esse grupo se fortaleça, aumentando os conflitos socioambientais dentro dos territórios indígenas”, ressalta Dinamam Tuxá.
Apesar de os povos originários terem sido os que mais tiveram de enterrar os seus na luta por terra no ano passado, na última década a maior parte das vítimas fatais (151 de um total de 420) foram sem-terra.
Não por coincidência, foram também esses setores os que protagonizaram as ações diretas de resistência à concentração fundiária no Brasil. Em 2023 aconteceram 22 retomadas de territórios ancestrais por indígenas, três por quilombolas e 94 ocupações de terra por movimentos camponeses. Houve um aumento de 60% em relação a ações do tipo feitas em 2022. Esta curva vem crescendo de 2021 para cá, mas os números são ainda bastante inferiores à média da última década.
Contaminação por agrotóxico lidera casos de violência contra pessoas
Com 336 pessoas contaminadas por agrotóxicos em 2023, foi este o tipo de violência contra indivíduos mais comum no campo brasileiro, de acordo com a CPT. Logo atrás, vêm as ameaças de morte, intimidações, criminalizações, detenções e agressões.
Um caso em especial puxou o número para cima. Em janeiro do ano passado, uma escola na cidade de Belterra, no interior do Pará, teve as aulas interrompidas depois de uma máquina agrícola, que já pulverizava agrotóxico na área constantemente, intoxicar quase 300 alunos de forma mais severa durante a aula. O vídeo feito pela professora viralizou.
Casos como esse, segundo Alan Tygel, da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos, têm sido comuns. “Escolas rurais que ficam praticamente dentro de plantações de soja e, nesse caso, mostra o avanço da soja em plena Amazônia, sem nenhum tipo de proteção”, descreve.
“Desde os anos 2000, praticamente todos os anos houve um aumento do uso de agrotóxicos no Brasil. O que isso significa? Que os lucros das empresas de agrotóxico a cada ano aumentam, assim como os conflitos relacionados ao uso”, observa Tygel.
Para ele, este crescimento tem relação com “a desregulamentação que vem sendo feita ao longo dos anos e que foi coroada no fim do ano passado com a aprovação do PL do Veneno”. Ele se refere ao Projeto de Lei 1459/22, sancionado com vetos parciais por Lula no apagar das luzes de 2023. A legislação, proposta pelo empresário ruralista Blairo Maggi (PP-MT), afrouxa a regulamentação do uso destes produtos e retira poder de órgãos fiscalizadores.
“Mas [faz parte de um processo] que já vinha, a partir de várias resoluções da Anvisa, por exemplo até tirando a caveira do rótulo de alguns agrotóxicos. Um fator que vai gerar, com certeza, um aumento dos conflitos”, avalia Tygel.
“A Campanha contra os Agrotóxicos e outras organizações que estão nessa luta vem fazendo um trabalho de longo prazo de formação de comunidades para que possam, em primeiro lugar, identificar e saber como lidar com essas violações. E um trabalho de judicialização, de aumento das denúncias sobre agrotóxicos”, conta.
“A gente também vem batalhando nos níveis federal, estaduais e locais, para a concessão de leis que restrinjam o uso de agrotóxicos”, relata Tygel, citando que neste mês de abril os movimentos comemoram a proibição da pulverização aérea na cidade de Caxias, no Maranhão.
Edição: Matheus Alves de Almeida