Nas primeiras horas do dia 25 de abril de 1974 forças armadas progressistas derrubaram a ditadura salazarista que governou Portugal por mais de quatro décadas. O movimento conhecido como Revolução dos Cravos não apenas instituiu a democracia no país, mas também levou à independência de ex-colônias na África - cujas lutas de independência foram cruciais para que ela ocorresse - e deu esperança para povos que ainda ansiavam por liberdade, como o nosso. O Brasil de Fato preparou algumas reportagens para contar a história e marcar o aniversário de 50 anos da Revolução dos Cravos. Clique aqui para acessá-las.
Por todo mundo, processos revolucionários são associados a músicas e artistas. No Brasil, por exemplo, a simples citação dos versos “vem vamos embora, esperar não é saber” já é o suficiente para associar com os movimentos de resistência e combate à ditadura militar.
No entanto, Portugal tem um caso particular. Na opinião do historiador Ivan Lima, a Revolução dos Cravos é um exemplo único.
Este 25 de abril marcam 50 anos do início do processo revolucionário, que teve como “senha” de mobilização a canção Grândola, Vila Morena, composição de José Afonso.
“Ele virou o grande símbolo da composição portuguesa, foi preso várias vezes. E é com a música de José Afonso que se desenha de fato, que se executa o processo revolucionário. Foi decidido um mês antes da revolução, numa apresentação do Coliseu de Lisboa, que a canção Grândola Vila Morena, uma marcha lentejana gravada em 1971, seria a senha revolucionária”, explica Ivan Lima, em entrevista ao programa Bem Viver desta quinta-feira (25).
Em 25 de abril de 1974 forças armadas progressistas derrubaram a ditadura salazarista que estava no poder em Portugal por mais de quatro décadas. O movimento conhecido como Revolução dos Cravos não apenas instituiu a democracia no país, mas também levou à independência de ex-colônias na África.
Morando em Portugal há anos, Lima é doutorando em História Contemporânea na Universidade do Porto e atua no Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM).
“Ele [José Afonso] seria o nosso Chico Buarque”, compara o historiador com uma ponderação.
“Os cantores de protesto no Brasil não tiveram uma ligação massiva com os movimentos sociais. Isso é muito importante a gente frisar. Porque uma coisa é você fazer música para o povo, outra é fazer música para o povo, com o povo, dentro do povo, sabe?”, defende.
Lima é dono da página música O que cresci ouvindo, onde compartilha histórias, análises, além de entrevistas com importantes figuras da música, principalmente, brasileira.
Confira a entrevista na íntegra
Brasil de Fato: Qual foi a importância de Grândola, Vila Morena para a Revolução dos Cravos?
Ivan Lima: Eu sou um entusiasta da Revolução dos Cravos, também sou entusiasta da música, da história do Brasil, que é onde eu comecei os meus estudos relacionando esses dois temas. Há e alguns anos eu me debruço a estudar a música de protesto em Portugal e o Brasil, a relação entre elas.
Curiosamente aqui em Portugal, esse termo, música de protesto, tem um sinônimo chamado música de intervenção. É por muitos contestados, mas a palavra intervenção ficou muito associada ao protesto da canção portuguesa no final dos anos 1960, início dos anos 1970.
Talvez seja o único país do mundo onde a trilha sonora da Revolução não é como os demais países. Na França, depois que se conquistou, se cantou tal canção no Brasil também. Aqui não, a música de fato foi uma senha para a Revolução.
Ou seja, a partir da música, especificamente, o movimento revolucionário que estava pré acordado se deu. Então, na verdade, foram duas senha, uma antes da meia-noite e uma depois da meia-noite, do 24 para o 25 de abril.
É uma pena que agora que se completam 50 anos a esquerda, por tanto tempo no poder, perdeu as eleições, então a gente vai ter a centro-direita governando Portugal, justamente nos 50 anos da Revolução dos Cravos.
Mas, voltando à questão da música, existiu aqui um compositor super famoso e talvez seja uma o ícone da música de resistência chamado José Afonso, para alguns, Zeca Afonso, um cantor que nasceu no norte, Portugal, em Aveiro, e que durante a sua infância acabou indo para a África, durante a Guerra Colonial com os pais. Depois, voltou a Portugal e se formou em história.
Ele virou o grande símbolo da composição portuguesa, foi preso várias vezes. E é com a música de José Afonso que se desenha de fato, que se executa o processo revolucionário. Foi decidido um mês antes da revolução, numa apresentação do Coliseu de Lisboa, que a canção Grândola Vila Morena, uma marcha lentejana gravada em 1971, seria a senha revolucionária.
A princípio ela não seria a música da revolução, mas várias músicas que foram apresentadas nesse concerto foram censuradas. Portanto, dentre as canções apresentadas no concerto mês antes da revolução, os próprios militares, os capitães, decidiram que Grândola, pela forma como era executada, é uma marcha, que lembra de alguma forma a marcha militar e tem algumas frases de efeito.
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola é uma vizinhança ao sul de Portugal, com uma grande tradição operária de esquerda. Essa música tinha sido feita exatamente em homenagem a esses trabalhadores, mas muito antes da evolução
Essa música não foi pensada para ser senha, mas virou. E ela foi justamente a senha que disse pronto, agora podemos seguir para a Revolução.
E antes dela, antes da meia noite do dia 25, teve a canção Depois do Adeus, do Paulo de Carvalho, que tinha sido vencedor do Festival da canção. Foi a primeira senha. Na verdade foi um aviso que a senha chegaria. Se desse tudo certo, viria senha para ser executada.
Então são as duas canções que fazem parte. Eu como historiador não reconheço outro caso da música ser de fato uma senha revolucionária.
Normalmente um tiro é uma senha revolucionária, normalmente uma carta é uma senha revolucionária, um discurso é uma senha revolucionária.
Nesse caso, foi de fato a canção Grândola, Vila Morena, executada aí na Rádio Renascença.
E é uma revolução que a gente vai lembrar aqui, que recebeu o nome dos cravos, pelos cravos que foram amarrados, inicialmente por uma, depois por várias vendedores de cravos ali na primavera Lisboeta.
Quando os capitães chegaram em Lisboa, tomaram a capital basicamente e as pessoas resolveram amarrar cravos às espingardas, revólveres, armas.
E também vale lembrar que foi uma revolução do baixo clero militar, uma revolução de capitães, não é uma revolução de generais. O que de certa forma aproximou o povo desses militares de baixa patente.
Portanto, só para resumir a música, a Revolução dos Cravos, ou a Revolução do 25 de Abril, como é mais falado aqui em Portugal, tem esse elemento crucial, essa ligação com a música. Quando você pensa em 25 de Abril, se pensa sempre em uma música, que é Grândola, Vila Morena.
Que paralelos podemos fazer com a história do Brasil? Com o combate à ditadura militar, por exemplo. Você acha que tivemos algum tipo de canção-senha? Seria Pra Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré?
Engraçado você falar do Geraldo Vandré, porque ele acabou tendo uma ligação com a música de protesto em Portugal.
Antes de falar sobre o Brasil especificamente, ainda falando de Grândola, meses depois que a Grândola virou a senha revolucionária, no Brasil ela foi gravada por Nara Leão.
Eu acho que a ideia de Nara Leão que era uma cantora associada próximo à esquerda, era tentar, de certa forma, dizer assim: “Olha, a gente também pode fazer a nossa revolução”. E essa canção foi censurada meses depois. A gente está falando de setembro de outubro [de 1974], no Rio Grande do Sul ela foi a proibida de ser tocada.
Já em 1975, Chico Buarque fez a canção, a famosa canção Tanto Mar. E essa música era uma exaltação à Revolução dos Cravos. Era dizer assim: “Olha, um cheiro de alecrim para a gente também, uma esperança”.
Vale lembrar que essa música do Chico tem duas versões. A de 1975 e a de 1979. Uma vez que a Revolução dos Cravos não se tornou aquele comunismo que quem fez, imagina. Um ano depois, a sociodemocracia tomou conta de Portugal.
Mas a primeira versão de Tanto Mar é muito emblemática no sentido de comemorar a Revolução dos Cravos no Brasil. Foi gravado aqui e foi um sucesso quando Chico gravou.
No caso do Brasil é curioso, porque o Zeca Afonso, eu costumo fazer essa equivalência, está equiparado aqui a Chico Buarque. O [Geraldo] Vandré talvez tenha sido mais enfático, mais popular, mas o Chico teve mais canções conhecidas em esse universo da canção política.
Inclusive eu tenho um áudio aqui que é engraçado, que é o Chico Buarque falando clandestinamente em mandar uma fita para um jornalista de Portugal dizendo que quer lançar a canção Tanto Mar em um single, já que no Brasil aquilo seria proibido. E ele fala: “Que tal eu gravar a canção de um lado e do outro lado ser uma canção do Zeca Afonso”.
Quer dizer, ele queria se relacionar, queria ser associado justamente ao Zeca. Esse áudio ilustra como ele sabia que estava para o Brasil como Zeca Afonso estava para Portugal. Então nesse aspecto acho que sim, se a gente fosse fazer um paralelo de uma canção seria uma música do Chico Buarque. Mas não seria uma música previsível, porque Grândola não era uma música previsível. Não é uma música que foi pensada para isso. O José Afonso tem músicas muito mais duras, muito mais firmes.
Agora, eu acho muito difícil que o Brasil tivesse passado por isso, porque os cantores de protesto no Brasil não tiveram uma ligação massiva com os movimentos sociais. Isso é muito importante a gente frisar.
Porque uma coisa é você fazer música para o povo, outra música é você fazer música para o povo, com o povo, dentro do povo, sabe?
Então aqui em Portugal aconteceu um movimento muito bonito, que é, esses cantores nunca ficaram ricos, muitos não cobravam por shows em toda a sua vida. Eram cantores que de fato estavam ligados a movimentos sociais e terminaram a vida dessa forma, continuaram dando aula, continuaram vendendo em lojas e tal. E antes da Revolução eles iam a sindicatos, cantar de graça, fazer reuniões trabalhistas, trocar luz. Um show por um prato de comida.
O José Afonso trocava um show por três ou quatro galinhas, porque a preocupação não era com o próprio bolso nem com o mainstream. Era estar com os movimentos sociais. Havia uma ligação muito mais umbilical dos movimentos sociais com os partidos de esquerda, com a revolução agrária, com a reforma agrária.
No Brasil eu não consigo enxergar isso em larga escala. A gente tem as exceções, tem vários cantores que fizeram isso, mas assim, em larga escala não. Os cantores não estavam envolvidos nos movimentos sociais. Eu falo do próprio Chico Buarque, Caetano. Os cantores não passaram dez, quinze anos fazendo show de graça, indo para sindicato, em praças, sabe?
Alguns foram para o exílio. Então, eu acho que estruturalmente a música portuguesa entrou mais nos argumentos de base e por por isso se criou uma relação popular e de identidade muito maior do que no Brasil.
Os cantores como Chico, Caetano, Gil e tal são populares para mim, que acessei a universidade, que consigo destrinchar determinados conceitos, mas não são populares no sentido da massa do povo.
Cantar para o povo, mas com o povo e para o povo.. O Gilberto Gil talvez tenha feito esse movimento, Geraldo Vandré também, né? Cantava de uma forma mais acessível, alguns cantores do samba e tal.
Por isso que eu acho que a música, no Brasil, dificilmente, seria a senha a revolucionária.
Mas não é tirando mérito de jeito em um. Acho que a música brasileira é fantástica e foi muito importante. Mas a gente precisa enquadrar também as dimensões que aquilo teve nos movimentos sociais.
Claro, Portugal é um país menor, é mais fácil circular aqui. Mas assim, é o objetivo ideológico que cada um dos artistas teve para aquele momento.
Você estava comentando um pouquinho do Gil e do Caetano… Eles estiveram nesse período na Europa, no exílio justamente, como você estava comentando. Teve alguma influência para eles, ou eles exerceram uma influência nesse movimento?
Eu acho que sim. O Gil e o Caetano exerceram uma influência muito grande em Portugal. Os portugueses têm uma referência muito grande no Brasil.
O Brasil sempre foi um país que irradiou muita a influência para Portugal. Primeiro, pelo tamanho do Brasil numérico, em relação às pessoas Segundo, pela vasta produção que a gente tem musical no Brasil e plural, porque se você chega no norte, você tem o boi, a guitarrada, vai no sul, tem a milonga, um país que tem um samba ali no Rio, Bahia, frevo, maracatu…
Portugal é um país que consome muito o Brasil e sempre consumiu. Tanto é que eles nos entendem a falar em tudo. A gente não entende eles porque eles assistem a nossa novela há muito tempo, eles escutam a nossa música há muito tempo e a gente não faz a mesma coisa.
Gil e Caetano passaram por aqui em 1969, quando eles saíram [do Brasil]. Antes de ir pra França e Inglaterra, para onde eles foram, eles passaram para Lisboa, se apresentaram no principal programa de TV, que apresentou muitos desses cantores de protesto, chamado Zip Zip, foi um programa que durou seis meses, mas teve uma importância muito grande na canção de protesto em Portugal.
Gil e Caetano foram na casa de um importante compositor José Cid, que tem uma banda conhecida como Quarteto 1111. Uma das bandas que eu mais gosta da música portuguesa, uma coisa meio psicodélica, sabe? O próprio Gil fala que foi uma referência para ele naquele momento.
O Quarteto 1111 era uma espécie de banda de contracultura. Nessa brincadeira de corporações, algo como os Mutantes. E o José Afonso era um Chico Buarque. Então, são duas coisas distintas, sabe?
José Cid chegou a gravar uma música do Gilberto Gil, Volkswagen Blues:
Além de Nara Leão, outros compositores gravam Grândola, Vila Morena no Brasil. Mas anos depois, já nos anos 1980 por grupos de punk rock, né?
É engraçado essas gravações que tiveram de Grândola tardiamente. Eu acho que não foi só no Brasil, na Espanha também foi gravado depois dos anos 1980, sabe?
Nos anos 2000 também teve uma gravação de uma música que foi muito importante na canção do protesto, não Grândola, mas uma música chamada A Cantiga é uma arma, que foi uma música apresentada pelo José Mário Branco, que é tipo um espécie de, entre aspas, Caetano Veloso deles, porque ele viveu no exílio na França. E uma banda carioca, El Efecto, que é uma banda muito legal, gravou essa música.
Essa música é uma música muito, muito emblemática. O José Mário Branca era do Partido Comunista, e quando cantou isso na França, no exílio, para a comunidade portuguesa, ele ia vencer o festival, mas o diretor do festival era do Partido Comunista, e ele disse assim: "Olha, você não vai vencer o festival por um motivo, você foi o voto unanime dos jurados". Aí ele disse: "Por quê?"
“Porque um comunista nunca pode dizer que não sabe, e você diz que na música que 'a cantiga é arma, e eu não sabia', e um comunista tem que dizer sempre 'eu sei”’.
O próprio Sérgio Godinho, que é um cantor também de protesto, e que o Caetano fez parcerias, o Chico fez parcerias, o Milton [Nascimento]. O Sérgio é um cantor aí nos anos 1970, e que foi regravado no Brasil
O Sérgio, por acaso, é dos cantores de protesto vivos, assim, dos grandes. Foi muito sucesso aqui e foi preso no Brasil. Isso é curioso falar também, porque em 1972 ele tinha ido para o Brasil, que ele era do teatro, e foi com o grupo famoso, o The Living Theater. E ele foi preso com um grupo lá em Minas Gerais, torturado.
E o grupo era famoso, então rolou até um abaixo assinado mundial para aqueles cantores fossem soltos, Yoko Ono, John Lennon e tal, foi uma repercussão gigante.
E o Sérgio Godinho nunca foi preso no país dele, porque ele não morava em Portugal, morava no exílio, mas foi preso no nosso e torturado. Depois ele voltou ao Brasil para fazer um disco com os brasileiros, com o Milton.
O Milton até gravou um disco com a música dele, título do disco que é Barca dos Amantes.
E o Sérgio Godinho foi preso de novo, em 1982, no Brasil quando voltou, e torturado de novo.
Ah, então uma coisa interessante que é o Secos e Molhado, que é um fenômeno no Brasil. Eu acho que isso talvez seja a coisa mais curiosa. Os Secos e Molhados é uma banda que tem o DNA português. O fundador da banda é um português.
O Ney Matogrosso entrou depois que a banda já existia. O fundador, João Ricardo, português, foi para o Brasil com 9 anos. E o pai, o João Apolinário, que era um poeta muito famoso de Portugal, foi para o Brasil fugindo da ditadura.
E quando chegou no Brasil, o Secos e Molhados implementou ali a poesia musicada. O Brasil não tinha muito esse hábito de você pegar uma poesia e musicar. E depois dos Secos e Molhados, o João Ricardo pegou a poesia do pai e de outros poetas, da Vinicius Morais, do Solano Trindade, musicou e criou um dos maiores fenômenos da música brasileira, que é o grupo Secos e Molhados.
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Edição: Matheus Alves de Almeida