Nas primeiras horas do dia 25 de abril de 1974 forças armadas progressistas derrubaram a ditadura salazarista que governou Portugal por mais de quatro décadas. O movimento conhecido como Revolução dos Cravos não apenas instituiu a democracia no país, mas também levou à independência de ex-colônias na África - cujas lutas de independência foram cruciais para que ela ocorresse - e deu esperança para povos que ainda ansiavam por liberdade, como o nosso. O Brasil de Fato preparou algumas reportagens para contar a história e marcar o aniversário de 50 anos da Revolução dos Cravos. Clique aqui para acessá-las.
O insurreição de militares de esquerda que derrubou a ditadura fascista de Antonio Salazar (1933-1968), continuada por seu sucessor Marcello Caetano (1968-1074), no dia 25 de abril de 1974, completa 50 anos nesta quinta-feira (25). A data - considerada pelos portugueses como a principal do país - será celebrada na Avenida da Liberdade em Lisboa, onde milhares de portugueses da capital e outras regiões do país, descem a avenida com cravos vermelhos nas mãos, símbolo do evento.
A Revolução dos Cravos, como ficou conhecida, ganhou esse nome graças à funcionária pública Celeste Martins Caeiro, que naquele dia distribuiu cravos vermelhos para os militares que derrubaram o governo de Marcello Caetano. Na ocasião, ela trabalhava em uma empresa que havia organizado uma festa naquele dia.
Com a movimentação das tropas nas ruas de Lisboa, porém, decidiram cancelar o evento. Celeste ficou com os cravos, comprados para a festividade e, ao sair na rua e ver os soldados sendo saudados pela população portuguesa, começou a distribuir para os militares.
“Ela vê aquilo e dá um cravo para um dos militares e ele coloca no cano da arma. Aí ela começa a distribuir os cravos para outros. Você tem então uma imagem linda, que são militares armados, mas essas armas não estão dando tiros, elas estão com flores, com cravos. É uma imagem forte”, aponta João Gabriel de Lima, pesquisador do Observatório da Qualidade da Democracia, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
A derrubada da ditadura salazarista foi sucedida por uma grande manifestação popular nas ruas de Lisboa, celebrada anualmente desde então. “É um momento que mostra o quanto a ditadura estava impopular em Portugal, principalmente por causa das guerras contra as colônias. Então virou uma grande manifestação popular, com as pessoas apoiando os militares”, aponta Lima.
Campanhas injustas na África inspiram militares de esquerda a derrubarem ditadura fascista
Um fator central para a derrubada da ditadura fascista em Portugal foram as campanhas militares iniciadas em 1961 por Salazar, com a eclosão de movimentos armados pela independência de Angola, seguidos por Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde, que se estenderam até a derrubada da ditadura fascista em Portugal.
Calcula-se que o saldo desses conflitos foi de 100 mil vítimas fatais entre os civis que viviam nas colônias e a morte de 10 mil soldados portugueses, além dos 20 mil que retornaram ao país incapacitados, após ferimentos nas batalhas. O alto número de vítimas provocou uma reação popular em Portugal, que ganhou alas de esquerda do Exército português.
"Um dos fatores dessa rebelião dos militares foram as guerras coloniais. Grande parte do Exército português via que eram guerras absurdas, sem esperança de vitória e começaram a se rebelar contra o governo. Foi uma guerra sangrenta, na contramão da história, utilizada até o fim para manter o regime ditatorial", aponta João Gabriel de Lima.
Para o historiador Rodrigo Pezzonia, autor do livro Guarda um cravo para mim (Alameda, 2019), as lutas pela independência na África desempenharam “papel crucial” no contexto da Revolução dos Cravos.
Além de agravarem os problemas econômicos que a ditadura já enfrentava, devido ao alto custo das operações militares portuguesas, que mobilizou 90% da população jovem masculina do país, as guerras nas colônias também deterioraram as relações entre o governo e as Forças Armadas, “que viram seu apoio e prestígio diminuírem sob o governo salazarista”.
“Este cenário, aliado à intensa propaganda dos movimentos de oposição que denunciavam a guerra colonial como injusta e insustentável, alimentou o descontentamento entre os militares. Especificamente, oficiais de patente média e baixa sentiram-se desiludidos e desvalorizados pelo regime. Esse descontentamento, combinado com o crescente apoio popular à causa da mudança, motivou esses grupos militares a liderarem a Revolução dos Cravos, buscando assim uma nova direção para Portugal.”
E nasce uma democracia forte
“Foi um golpe militar, literalmente, dentro de uma ditadura. Os militares deram um golpe para derrubar uma ditadura, com um discurso democrático e alguns efeitos democráticos logo no início, como por exemplo, o fim da censura à imprensa. Houve todo um trabalho de construção democrática posterior ao 25 de Abril, que levou um tempo, teve uma Constituição no 25 de abril de 1976 e aos poucos foi se construindo uma democracia com instituições em Portugal, que hoje é uma democracia forte.”
Guerras de independência
A historiadora Patrícia Teixeira Santos, docente na Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora de Estudos Africanos na Universidade de Bordeaux na França e do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Dehli ( Índia) destaca que essa visão sobre a influência das lutas de independência na África na consolidação da Revolução dos Cravos é fruto de mudança recente nos estudos sobre o período.
"Sempre se ensina essa história do ponto de vista de Portugal, de que o enfraquecimento da ditadura teria favorecido o avanço das lutas de libertação nacionais. Mas cada vez mais, a gente percebe que são os movimentos de libertação, de união de diferentes povos, no sentido de terminar essa ordem colonial, que vão fragilizar ainda mais a ditadura portuguesa. Em 1961, você tem várias ações de guerrilha em Angola, em Moçambique, para que esse domínio português fosse expulso desses locais."
Foi a luta pela libertação de Angola, junto aos movimentos de sublevação pela colônia, que efetivamente deflagrou a guerra contra Portugal. Iniciado em fevereiro de 1961 pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), liderado por Agostinho Neto, com adesão de outras frentes por libertação, como a União dos Povos de Angola (UPA).
A Guerra da África, como ficou popularmente conhecida em Portugal, já estava sendo preparada por Salazar antes de 1961. Após a independência da Guiné francesa (Outubro de 1958) e do Congo belga (junho de 1960), a ditadura fascista começou a se preparar para combater uma possível “sublevação da população negra” nas colônias portuguesas, investida chamada de “guerras ultramarinas” pela ditadura salazarista.
Em 1959, um massacre contra trabalhadores em greve no Porto de Bissau que resultou na morte de entre 70 e 100 estivadores pela Pide - Polícia Internacional e de Defesa do Estado, da ditadura salazarista, fez com que o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), liderado por Amílcar Cabral, decidisse pela luta armada contra a colônia portuguesa com ataques armados de guerrilha iniciados em 1961, que dariam lugar efetivamente à guerra em janeiro de 1963.
Em 25 de setembro de 1964, foi a vez de Moçambique entrar em guerra contra Portugal, com um ataque da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) ao posto administrativo de Chai, no então distrito de de Cabo Delgado.
A Guerra da Independência de Moçambique, também conhecida (em Moçambique) como Luta Armada de Libertação Nacional, bem como Guerra Colonial Portuguesa foi um conflito armado entre as forças da guerrilha da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e as Forças Armadas de Portugal. Oficialmente, a guerra teve início a 25 de setembro de 1964, com um ataque ao posto administrativo de Chai no então distrito (atual província) de Cabo Delgado, e terminou com um cessar-fogo a 8 de Setembro de 1974, resultando na independência em 1975.
Em 25 de setembro de 1973, sete meses antes da Revolução dos Cravos, a Guiné-Bissau já havia declarado unilateralmente a independência de Portugal, que seria oficializada após a derrubada do regime fascista português em setembro de 1974, mês em que foi declarado também o cessar-fogo em relação a Moçambique. O fim da guerra com Angola foi determinado no dia da Revolução dos Cravos. A negociação do processo de independência de Angola, Moçambique e Cabo Verde, iniciados após a revolução, foram concluídos em 1975.
Apoio socialistas às lutas africanas
Patrícia Teixeira Santos aponta que a luta de independência das colônias africanas precisa ser vista da perspectiva da Guerra Fria. Com a ditadura portuguesa aliada aos Estados Unidos e à África do Sul, sob o regime de apartheid, as lutas por independência nas colônias receberam apoio dos países do bloco socialista: União Soviética, China e Cuba.
"Os Estados Unidos e Europa Ocidental vão entender que esses movimentos são desafiadores porque se alinham a uma perspectiva de construção de socialismo real nesses países após a independência. Na Europa, havia essa sombra do colonialismo de que nada mudaria, que as estruturas continuariam sendo as mesmas. Essa sombra neocolonial é decisiva, a meu ver, na orientação desses movimentos de libertação para o apoio soviético, chinês e cubano."
Apesar de desproporcionalidade entre as forças do exército português, numericamente superior em relação às guerrilhas, o fornecimento de armas pelos países do bloco socialista tornam os combates mais equilibrados e decisivos para a vitória das ex-colônias, aponta a historiadora.
"É por isso que a gente diz que a queda da ditadura em Portugal tem um papel importante, mas ela não é decisiva para as independências africanas, porque já havia todo um movimento de expulsão dos portugueses e de fragilidade da presença portuguesa nesses espaços."
Edição: Rodrigo Durão Coelho