Desenho, implementação e financiamento desses projetos devem obedecer a critérios rigorosos
Por Ricardo Carlos Gaspar
O que as eleições municipais do final de 2024 projetam para as cidades e o país? Sabemos que, a par da retórica de mudança e solução dos problemas econômicos e sociais da comunidade, típica da narrativa eleitoreira, em termos concretos a alteração na correlação de forças regionais e nacionais no Brasil talvez seja um dos efeitos mais importantes da disputa, de olho no pleito presidencial de 2026. Do ponto de vista da democracia, isolar as tendências protofascistas, e afirmar práticas inclusivas e um projeto nacional de desenvolvimento já seria um resultado auspicioso. Nos pequenos municípios, as forças políticas são em geral indiferenciadas nos seus efeitos sobre a gestão pública, normalmente vinculadas aos poderosos da localidade. Já nas médias e, sobretudo, grandes cidades, os resultados são sem dúvida mais significativos, afetando o bem-estar coletivo, a destinação dos investimentos governamentais, os usos da terra, a participação democrática e o universo cultural.
Aqui, sim, os grandes projetos urbanos (GPUs) podem potencializar vocações produtivas e ambientais, atraindo investimentos e desencadeando externalidades de alcance metropolitano. Grandes centros urbanos no Brasil têm um potencial ainda pouco explorado nesse campo de amplas requalificações urbanísticas. O requisito para atingir aquelas finalidades é que seu desenho, implementação e esquema de financiamento obedeçam a rigorosos critérios técnicos e políticos, com amplo grau de discussão e envolvimento públicos, minimizando efeitos disruptivos sobre a malha urbana tradicional e maximizando ações geradoras de emprego e renda. Estratégias de puro marketing e empreendedorismo urbano, contudo, têm sido uma constante, perpassando administrações de esquerda e de direita no país. Isso, por si só, revela a encruzilhada das administrações municipais, premidas por urgências sociais, bem como pela carência de recursos financeiros e de meios de poder efetivo. É mister ressaltar que tais estratégias de empreendedorismo urbano (assim como a guerra fiscal) usualmente resultam num jogo de soma zero, quando não acarretam prejuízos irreversíveis de longo prazo às cidades envolvidas em projetos que privilegiam o capital, provocam segregação e especulação imobiliária, destroem o ambiente e o patrimônio histórico. Exemplos disso são propiciados pela herança dos megaeventos esportivos e a atração do turismo predatório.
Admitir o potencial dos GPUs para superar o mero interesse imobiliário e do grande capital e fomentar a atratividade turístico-cultural de espaços urbanos de grandes cidades não significa menosprezar o fato de que tais intervenções exigem o envolvimento do setor empresarial para lograr viabilidade e consolidar sua marca. Tal como ocorre com as Operações Urbanas Consorciadas. São parcerias público-privadas complexas, sujeitas a grande pressão política, que incidem fortemente sobre o preço da terra. Assim, por mais que a adoção desses projetos de larga escala territorial sejam justificáveis em certos casos e capazes de propiciar receitas extraorçamentárias significativas para o setor público, eles se situam dentro dos marcos do status quo vigente, não tendo, em princípio, o condão de mudar relações socioeconômicas prevalecentes. Mesmo assim, as dinâmicas desencadeadas por GPUs bem concebidos podem gerar resultados inovadores no espaço, cujos efeitos os vinculam diretamente à economia urbana propriamente dita, com implicações políticas variadas no âmbito das coalizões locais de poder.
Já as ações reativas a processos históricos excludentes não têm sido suficientes para neutralizar os poderosos impulsos hegemônicos concentradores de renda e riqueza. No plano diretamente político, os pleitos locais e regionais pela Reforma Urbana e o Direito a Cidade – e o conjunto dos planos e políticas afins – constituem uma base programática para consignas mais gerais e abrangentes, quando vinculadas às bandeiras de reivindicações nacionais, de cunho transversal e pluralísticas, pelo desenvolvimento e a reindustrialização do país, por ações ambientais, culturais, de inclusão digital, de recuperação da infraestrutura e de redistribuição regional e coletiva dos frutos do crescimento. Tal é a condição para que processos de reformas urbanas, por mais bem conduzidos e intencionados que forem, não frustrem expectativas.
Abrigadas nesse contexto político mais amplo, as plataformas locais e projetos urbanos ganham força, capacidade de mobilização e poder multiplicador. Enraízam nos impulsos dinâmicos das comunidades as estratégias gerais de transformação social. Compõem um arco dialético de alimentação recíproca. Uma totalidade concreta de múltiplas determinações.
* Ricardo Carlos Gaspar é professor do Departamento de Economia da FEA – PUC-SP e pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo São Paulo.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires