A escalada entre Israel e Irã no Oriente Médio não gerou um aumento drástico de ataques entre os países, mas criou um novo momento de tensão na região. A crise também se insere em um contexto geopolítico mais amplo que contrasta interesses do Ocidente e do Sul Global.
Na noite de 14 de abril, o Irã lançou cerca de 300 mísseis e drones contra Israel. Esta operação foi uma retaliação a uma ataque israelense ao consulado iraniano em Damasco, na Síria, que gerou a morte de cinco militares iranianos. As Forças de Defesa de Israel relataram que 99% dos alvos do ataque iraniano foram interceptados.
Houve um grande temor de que a crise na região do Oriente Médio poderia escalar para uma guerra. As partes, no entanto, não realizaram mais ações agressivas diretas e a tensão foi atenuada.
O processo teve mediação diplomática tanto dos Estados Unidos como da Rússia para não agravar a situação. Apesar de uma escalada mais drástica entre Israel e Irã ter sido evitada, a situação entre os dois países entrou em um novo momento de tensão.
Na última quarta-feira (24), o presidente iraniano, Ibrahim Raisi, fez uma dura ameaça a Israel no caso de qualquer ato de agressão contra o território iraniano. "Se o regime israelense cometer um erro novamente e atacar a terra sagrada do Irã, a situação será diferente e não está claro se restará alguma coisa deste regime", disse Ibrahim Raisi.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor de Relações Internacionais da UFRJ, Fernando Brancoli, entende a crise como uma "movimentação dupla". Segundo ele, há uma clara escalada que coloca a situação no Oriente Médio em um novo momento. Por outro lado, o pesquisador entende que houve um pragmatismo entre as partes de que não seria interessante para Israel e Irã continuar escalando.
"A escalada aconteceu, a gente está em um novo momento de relação conflituosa entre Israel e o Irã, mas ambos os países chegaram à conclusão de que essa escalada ‘pode parar por aqui’, de que não é interessante um próximo movimento. Agora, eu sempre reforço é que conflitos armados não são ciências exatas. A gente pode imaginar que as lideranças neste momento não têm interesse em um conflito aberto entre Israel e Irã, mas a gente está falando de um conflito que pode escalonar dependendo de um cálculo errado", observa.
A tensão no Oriente Médio se insere em um contexto geopolítico em que, por um lado, Israel tem amplo apoio do Ocidente, sobretudo dos Estados Unidos, e por outro, o Irã vem alimentando importantes parcerias na cooperação com a Rússia e com a China.
No caso de Pequim, Brancoli lembra que o país asiático vem aumentando consideravelmente o investimento no Irã no âmbito da nova Rota da Seda, grande projeto de internacional da China ligado à construção de infraestrutura como rodovias, ferrovias e portos, além de obras no setor energético, como oleodutos e gasodutos ligando a Ásia à Europa. O projeto faz a ligação entre Ásia e Europa através do Irã, da Arábia Saudita e da Turquia, ou seja, três importantes antagonistas de Israel no Oriente Médio.
Já a Rússia alavancou as relações com o Irã sobretudo após o início da guerra da Ucrânia. Com as sanções sem precedentes do Ocidente por conta da invasão, Moscou foi obrigada a reorientar a sua dinâmica de exportações para fontes alternativas à Europa.
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'A Rússia, desde o início das ações na Ucrânia, teve que reformatar a maneira como vende, por exemplo, o seu gás e petróleo. O Irã entra como elemento-chave nesse contexto russo na medida em que Moscou vem inaugurando plataformas novas para escoar gás e petróleo pelo Irã em direção à Índia. Então o Irã aparece como estrutura geopolítica alternativa por uma Rússia que agora tem que encontrar novos compradores dos seus produtos", analisa Fernanco Brancoli.
O professor de Relações Internacionais lembra também que, em uma geopolítica mais ampla, a Rússia depende também do Irã para uma série de utensílios bélicos na sua frente contra a Ucrânia "na medida em que a guerra vem se estendendo mais tempo que a gente imaginava, e provavelmente não vai acabar tão cedo".
Segundo Brancoli, a Rússia depende de parceiros alternativos para garantir que tenha material para continuar com sua operação militar. Para o pesquisador, Irã e Rússia, ao sofrerem um isolamento do Ocidente, encontram "elementos de complementaridade".
Aliança militar
Outro aspecto que une os interesses da Rússia e do Irã é a cooperação na esfera militar, o que foi reforçado nesta sexta-feira (26), com a reunião do ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, e o seu homólogo iraniano, Mohammad Ashtiani. Ainda ontem, o Irã foi adicionado à lista de sanções dos EUA, Grã-Bretanha e Canadá, justamente por sua parceria militar com a Rússia, atingindo uma série de empresas iranianas que fornecem drones à Rússia usados na guerra da Ucrânia.
A Rússia, por sua vez, fornece ao Irã modernas aeronaves e sistemas de defesa aérea. Em setembro, o Irã recebeu o primeiro lote de aeronaves de treinamento de combate Yak-130 da Rússia. Eles podem ser usados para treinar pilotos do Su-35. Dois meses depois, o vice-ministro da Defesa iraniano anunciou que os acordos sobre o fornecimento desses caças haviam sido concluídos.
Teerã também tem interesse em adquirir submarinos russos e os sistemas de defesa S-400, que é capaz de combater aeronaves como o F-35. Assim, a aliança militar de Moscou com Teerã levanta sérias preocupações para Israel.
A recente escalada entre Irã e Israel também pode ter alterado a rota que a política externa russa vinha traçando nos últimos anos, de buscar uma posição equilibrada e de uma certa mediação no Oriente Médio. É o que afirma o pesquisador do Instituto de Pesquisa de Política Aplicada da Armênia e do Instituto de Estudos Orientais de Moscou, Serguei Melkonian.
Ao Brasil de Fato, o analista destaca que há muitos anos a Rússia esforça-se por manter uma posição consistente e equilibrada sobre a questão da escalada entre Irã e Israel, buscando 'desempenhar o papel de mediador no confronto indireto entre Irã e Israel na Síria".
"Nesse sentido, a Rússia acumulou experiência. O ataque ao consulado em Damasco poderia ter levado a uma expansão da geografia da escalada, desestabilizando a situação na Síria, em particular nas províncias do sul. Tal desenvolvimento contradiz o rumo de Moscou de manter o status quo e a paz frágil no território da República Árabe", argumenta.
Vale lembrar que o Irã é um dos países que recentemente se juntaram ao grupo dos BRICS, originalmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Assim, a Rússia enxerga o Irã como um importante parceiro em uma aliança do Sul Global como contestação à hegemonia do Ocidente no cenário internacional.
"Definitivamente, a cooperação entre a Rússia e o Irã está atingindo um nível qualitativamente novo. Está prevista a assinatura de documentos estratégicos. Existe um processo ativo de cooperação nos domínios econômico, espacial, militar e técnico-militar. Moscou e Teerã partilham abordagens relativas à futura ordem mundial, razão pela qual o Irã está entre os novos Estados que aderiram aos BRICS", completa Melkonian.
A convergência de Rússia e Irã no que diz respeito à abordagem da ordem internacional reproduz um choque de visões de mundo, que tem, por um lado, o eixo Moscou-Teerã-Pequim, e, por outro, Israel como eco do Ocidente no Oriente Médio.
"Me parece que o conflito entre Irã e Israel materializa de certa forma um novo momento internacional, um momento em que a gente tem potências como a Rússia e a China articulando alianças, premissas e visões de mundo que são muito distintas do Ocidente, e que de certa forma têm capacidade de mudar o sistema internacional", afirma Fernando Brancoli.
"Para além da tragédia humanitária, esses conflitos no Oriente Médio são sim muito representativos de um novo momento da multipolaridade, de um novo momento em que países do chamado Sul Global querem ter mais voz, de alguma maneira querem ter uma articulação mais ampla, e embaralham um pouco o jogo", completa.
Edição: Rodrigo Durão Coelho