São aproximadamente 750 mil perfis do Instagram que têm acesso, todos os dias, uma aula de letramento racial ou debates de gênero. São os seguidores de Triscilla Oliveira, roteirista e influenciadora digital que nos últimos três anos vem se especializando na construção de histórias em quadrinhos.
Ela assina, junto com Leonardo Assis, os livros Os Santos e Confinada, obras que retratam a desigualdade social com enfoque na relação entre patrão e empregada doméstica no país.
Sua obra mais recente é uma versão em quadrinhos do livro consagrado de Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo.
"Eu já tinha lido o Quarto de Despejo várias vezes, como estudo, mas também dentro de um processo terapêutico de entender o que ela o enfrentou nos anos 1950, eu enfrentei nos anos 1990 e ainda existem milhões de Carolinas por aí no Brasil afora", relata em entrevista ao programa Bem Viver.
A adaptação da obra contou também com a ilustradora Vanessa Ferreira e as arte-finalistas Hely de Brito e Emanuelly Araujo (@vulgoafronauta).
Triscilla Oliveira é de Niteroi, mas está em São Paulo para participar do Festival Serrote, organizado pelo Instituto Moreira Salles (IMS).
Nos dias 3 e 4 de maio ela participa do evento, de entrada gratuita, que reúne escritores e ativistas para falar sobre sobre literatura periférica e narrativas de experiência negras.
A programação conta ainda com o escritor chileno Alejandro Zambra. No sábado (4), Triscilla Oliveira participa de uma mesa junto com Mário Augusto Medeiros da Silva, professor de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A mediação será de Juliana Borges.
Confira a entrevista na íntegra
Você participa este final de semana do Festival Serrote e vai estar em uma mesa que discute periferia e literatura. Como você vê hoje o mercado editorial? Está abrindo espaço para publicações de escritores e escritoras fora do "centro"?
A gente está vivendo um momento muito ímpar na literatura brasileira, onde a gente tem dezenas de autores negros, periféricos, indígenas, pessoas nordestinas falando de suas histórias e de suas diferentes realidades e todas essas camadas diferentes e atravessamentos que moldam a experiência de vida das pessoas.
Porque a gente tem aquela foto, icônica daquele prédio em São Paulo que tem a favela no fundo, e gente sabe que existem dois Brasis
Existe um Brasil de pessoas que estão acordando às quatro horas da manhã todos os dias para sobreviver, e um Brasil de pessoas que não se importam com essas pessoas que estão sobrevivendo todo dia e movimentando esse país.
A força de trabalho desse país parte das periferias e existe muita potência, muita criatividade, muita cultura nessas pessoas também, que estão às margens, estão longe das oportunidades, estão sobrevivendo da forma que podem nas periferias do Brasil. Existe muita potência também nas periferias, então fala-se muito em dar voz, mas a gente sempre tem o voz. A gente só precisa de escuta. A gente só precisa de uma palavra mágica chamada oportunidade.
Foi a oportunidade que me trouxe até aqui hoje, de trabalhar com a minha intelectualidade na coautoria desses dois livros. Falando de vivências, de realidades que não são tão diferentes assim.
Elas são o outro lado de uma mesma moeda. É o modelo de sociedade que a gente tem hoje no Brasil, que foi construído em cima da escravização de pessoas. O Brasil não seria o que ele é hoje se não fosse pelo povo negro, pelo povo periférico, por toda a cultura, por toda a resistência, por toda a nossa tecnologia, de continuar de pé, apesar de tudo que a gente enfrenta.
Hoje você tem quase 800 mil seguidores nas redes sociais. Como foi essa decisão de virar uma influenciadora digital?
Em 2015 eu estava enfrentando uma depressão muito profunda e eu não sabia como eu poderia trabalhar, processar tudo que eu estava sentindo e o que eu não estava sentindo e todas as angústias que eu tinha. Então, eu comecei a pesquisar na internet e descobri um Instagram que, lá em 2015, ainda era uma novidade, ainda era uma rede nova. E quando eu entrei no Instagram, vi que tinham pessoas falando de antirracismo, de feminismo, de direitos, de justiça social, enfrentando tudo isso.
E eu pensei, eu acho que eu consigo falar do que eu estou passando, da minha visão de mundo, do que tenho, do que eu enfrento também aqui.
E eu comecei a escrever na internet, e esses textos começaram a viralizar o que era o viral naquela época. E as pessoas começaram a se identificar e a trazer mais vivências e a se sentirem acolhidas pelo que eu compartilhava ali com elas.
Foi aí que eu entendi que o que eu passava, eu não estava sozinha. É uma vivência coletiva, muitas outras pessoas também passam pelo que eu passo e me ajudou muito no meu processo terapêutico de enfrentamento à depressão.
De 2015 para cá, eu estudei muito questões de gênero, raça, classe, para embasar tudo que eu falo na internet, minha construção de conteúdo na internet. Porque, infelizmente, eu não tenho o privilégio da credibilidade. Eu preciso embasar tudo que eu falo na internet, uma vírgula fora do lugar é imperdoável para muita gente, quando você tem a pele igual a minha.
Então, eu venho estudando sempre e a internet não foi exatamente uma escolha, mas foi o único lugar que eu poderia construir um espaço para falar. Então, de lá para cá eu venho trabalhando na internet, construindo conteúdo, mas também trabalhando nos bastidores, no marketing de influência, como social media.
Eu comecei a estudar todo esse fenômeno comportamental das redes sociais que hoje a gente não vive mais sem, não tem como, eu não consigo vislumbrar um futuro que a gente não tenha o telefone como uma extensão de nosso corpo.
Eu acho muito importante a gente usar, sim, esse canhão das redes sociais para levantar questionamentos, para debater coisas urgentes e importantes, como a gente vem fazendo ao longo de todo esse tempo e todas as plataformas.
E como foi sua chegada nos quadrinhos?
Então, Os Santos é uma criação do Leandro Assis. Ele criou no final de 2019 como um desabafo, né? Eu acredito que todo artista parte dessa inquietação, dessa revolta, dessa indignação com algo que ele está vendo na realidade que não deveria estar ali.
Então, é uma criação dele e ele percebeu dentro da limitação, da branquitude dele, que em algum momento ele precisaria de uma pessoa para ser o outro lado da moeda, para contar como é a realidade, uma realidade que ele não vive, uma realidade que ele só conhece como terceira pessoa.
E foi aí que ele começou a buscar as pessoas que estavam comentando ali, nas tirinhas, alguém que tivesse essa vivência, que tivesse esse conhecimento, e eu deixei um comentário despretensioso em uma das tirinhas e ele me chamou para a coautoria de Os Santos e Confinada.
A gente injeta muito de nós mesmos na história. Tem duas famílias na história [Os Santos]. O Leandro estruturou parte do roteiro que eu não conheço, que é a classe média alta, do Rio de Janeiro, zona sul, aquela coisa bem novela das oito. E eu estruturei o outro lado, que é a realidade periférica, favelada, preta das mulheres domésticas e negras que enfrentam tudo isso.
Então, nesse paralelo de realidade, a gente construiu essa história, tanto Os Santos como o Confinada, onde, infelizmente, é uma realidade colonial do Brasil que permanece intacta.
Como foi o processo para você fazer parte dessa adaptação do livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus?
Foi uma honra muito grande da Somos Educação, da coordenadora do projeto, a Laura [Vecchioli do Prado]. Ela me convidou para a adaptação de Quarto de Despejo para quadrinhos, porque, como a gente estava dizendo antes, essa união de imagem e texto, ela faz com que o leitor tenha uma imersão muito maior, uma imersão muito mais profunda dentro da história.
E, cara, infelizmente, muito, muito infelizmente, a realidade de Carolina é muito parecida com a minha, sabe? Muito parecida a mim mesmo.
Eu sou filha de mamãe sola, que ela sobreviveu na periferia aqui de Niterói, a gente carregou água… a gente já catou nossa comida por aí.
Eu já tinha lido o Quarto de Despejo várias vezes, como estudo, mas também dentro de um processo terapêutico de entender o que ela o enfrentou nos anos 1950 eu enfrentei nos anos 1990 e ainda existem milhões de Carolinas por aí no Brasil afora.
Já te surgiu essa inquietude a primeira vez que você teve contato com o livro? Você imaginava que um dia estaria fazendo uma adaptação?
A primeira vez que eu tive contato com o livro, eu acho que eu levei um ano para ler. Porque Quarto de Despejo é um diário, então cada dia que ela relatava a mesma coisa, a mesma brutalidade, as mesmas violências que ela sofria e os filhos dela também era muito duro para mim, me reconhecer naquela história, me ver naquela história ali.
Mas, nossa, nunca imaginei em algum momento que eu poderia roteirizar para quadrinhos, porque eu sou um roteirista iniciante, eu ainda não tive oportunidade de trabalhar com audiovisual. Eu caí de paraquedas nos quadrinhos há três anos, então eu ainda não tive essa oportunidade, não pensava de forma alguma que algum dia eu estaria roteirizando uma história tão parecida com a minha, tão potente, tão maravilhosa como o Quarto de Despejo, de Carolina.
E daqui pra frente, o que que você mais ou menos mapeado de próximo projetos?
Ah, eu tenho alguns projetos, eu tenho alguns rascunhos, mas algumas coisas que eu não não posso falar. Desculpa.
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Edição: Thalita Pires