Desde a semana passada, a Flotilha da Liberdade - um conjunto de embarcações com 5,5 toneladas de ajuda humanitária para a Faixa de Gaza - vem sendo impedida de partir de Istambul, na Turquia. A pressão do governo israelense paralisou a iniciativa, pensada para mitigar o sofrimento dos palestinos, vítimas há mais de seis meses de um massacre initerrupto que já registrou a morte de quase 35 mil pessoas, a maioria delas mulheres e crianças.
Há 14 anos, outra Flotilha da Liberdade tentou furar o bloqueio que vinha sendo imposto por Israel à Faixa de Gaza desde 2007, como castigo por terem eleito o partido Hamas nas primeiras eleições democráticas ocorridas no território palestino, um ano antes. Assim como a atual, a flotilha de 2010 também teve como ponto de partida a cidade turca, mas em maio daquele ano o grupo de seis barcos foi emboscado e atacado pela Marinha israelense.
Nove tripulantes foram mortos e dezenas, feridos. Presente na ocasião, a cineasta e ativista brasileira Iara Lee conseguiu preservar as únicas imagens do ocorrido que foram publicadas. Em entrevista ao Brasil de Fato, ela comentou o incidente e a tentativa atual de levar ajuda ao território ocupado.
Leia a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Qual a diferença entre a atual Flotilha da Liberdade e a que você integrou?
Iara Lee: Alguns dos passageiros são os mesmos, muitos outros mudaram, as instituições também. Neste ano, agora tinha até o neto do Nelson Mandela que, por ter sofrido o apartheid, não queria a mesma coisa para Gaza. Em 2010, fui a única brasileira.
Nesse ano de 2024 me convidaram, mas eu já tinha compromissos assumidos, não consegui ir. Quando vi que Israel pressionou e conseguiu que a Guiné-Bissau tirasse sua bandeira do navio impedindo a entrada de mais de 5 mil toneladas de ajuda achei uma situação bem deja vu. É sempre a tentativa de romper o controle israelense, que responde com uma violência absurda.
Não muda nada: arma química, fósforo branco, bomba de fragmentação, drones, assassinatos de trabalhadores que prestam ajuda humanitária. Agora estão cometendo genocídio abertamente, na cara de pau, e o mundo não faz nada como nunca fez. A situação só piora.
Como foi a experiência em 2010 ao testemunhar de perto a violência de Israel?
Eles começaram simplesmente a matar as pessoas e jogar os corpos ao meu lado. Mais do que com medo, eu fiquei injuriada. A primeira coisa que eles fizeram foi cortar nossa comunicação por satélite, antes de invadirem nosso barco de forma ilegal, em águas internacionais com helicópteros, comandos, barcos.
E mataram mesmo. Miravam na cabeça e atiravam. Foram tão covardes que, depois de tirarem nossas câmeras, telefones, roubaram nossos cartões de crédito e foram fazer compras pessoais. Além de tudo são ladrões.
Quando vocês partiram de Istambul, qual era a expectativa?
Sabíamos que eles viriam, mas a aposta era a de que isso aconteceria quando entrássemos em águas territoriais de Gaza, não nas águas internacionais onde estávamos. A abordagem foi surpresa e totalmente ilegal.
Eu estava filmando havia vários dias, tinha falado com muita gente e me surpreendi em ver a capacidade do ser humano. Tinha gente do Líbano que havia tido toda a família morta por Israel e, ainda assim, estava lá se solidarizando com os palestinos.
Como aconteceram os assassinatos? Houve resistência à invasão?
Resistência com estilingues, pedaços de pau, cadeiras. Eles tinham uma listinha, encontramos um livro deles que caiu e havia orientação para poupar os tripulantes mais famosos, os chamados "vips". E liberava os soldados para atirarem nos outros, matarem quem quisessem, especialmente muçulmanos com barba. Foi isso que eles fizeram.
Foi também por isso que consegui retirar o material filmado, já que tinha contratado um câmera sérvio, branco de olho azul. Eu o tinha aconselhado a evitar usar um HD grande, mas sim um cartão SD pequeno. Lembro que, antes da invasão, ele brincava, dizendo: 'Mas Iara, como eles vão invadir isso aqui? São centenas de pessoas?' Ele achava impossível. Na sua ingenuidade, ele pensava que estava indo a uma aventura comigo, não à uma guerra.
Ele continuou filmando, mesmo com os soldados lá. Quando vimos a luz de uma mira lazer nele, caiu a ficha e ele parou de filmar. Posteriormente, já em terra firme, quando entendeu que estava comprando briga com o maior estado terrorista do planeta, bateu o pânico nele, pensou que seria retaliado, impedido de continuar nos Estados Unidos. Mas nada disso aconteceu.
Os israelenses então nos separaram e começaram a chegar os corpos dos mortos. Vi que eram basicamente trabalhadores da Turquia, muçulmanos. Depois nos levaram para uma prisão em Israel, 600 pessoas sem acesso a advogados, contato com embaixadas. Na época, o governo Lula foi muito prestativo e gentil, o [então chanceler e hoje assessor da Presidência Celso] Amorim chegou até a ligar pra mim. Sou cidadã dos EUA também e o tratamento não poderia ter sido mais diferente. O governo estadunidense nos aconselhou a acatar tudo o que os israelenses diziam, avisaram que não teriam tempo de fazer um acompanhamento muito próximo e nos deu uma lista de advogados pagos, se quiséssemos - com um custo de US$ 500 por hora - e só. Israel não quis pagar nem a deportação.
O presidente turco, Recep Tayip Erdogan, teve que mandar aviões para nos levar todos para Istambul e, depois, para os nossos países. A vida então seguiu, ninguém foi responsabilizado, Israel segue fazendo o que quer.
O que aconteceu depois, já que você tinha as únicas imagens do ataque?
Quase nada. Fiz uma conferencia de imprensa na ONU, em Nova York, o que deixou Israel injuriado, se perguntando como eu poderia ter as imagens. Na ocasião, fiquei surpresa em ver como a imprensa comercial não se interessou em divulgar. Diziam que já era uma história velha e, mesmo quando demonstravam interesse, as eventuais reportagens nunca iam para o ar. Entendi aí a força do lobby israelense na mídia norte-americana. Hoje sabemos o que acontece em Gaza porque todos têm um celular, sobem na internet sem mediação. Se fossemos contar com a grande mídia, teríamos apenas a versão de Israel.
Qual sua opinião sobre a flotilha atual, que não conseguiu zarpar da Turquia, e quais são suas expectativas para o futuro?
Chega uma hora que você esgota o ativismo de Instagram e precisa deixar o conforto do seu lar e colocar o próprio corpo em risco.
Só sei que Israel quer aquela terra e quanto mais tem, mais quer. Na Cisjordânia é a mesma coisa. Se fosse realmente combater o Hamas, não estariam matando tantos palestinos na Cisjordânia também, é ocupação, eles querem o domínio completo. É inacreditável pensar que psicopatas podem conduzir assim um país.
Eles contam com a conivência dos EUA e de tantos países europeus que têm sangue nas mãos. Muitos países que integram o sistema internacional de Justiça até tentam, mas não conseguem ir muito longe por não ter o poder. É uma grande pena que para que qualquer mínima mudança aconteça, tantas pessoas tenham que morrer. Nenhuma geração usufrui de direitos sem que uma geração anterior tenha sacrificado a vida de vários dos seus para estabelece-los. Acredito em ações individuais, resistência criativa, boicote à Israel, como o movimento BDS. Estou muito orgulhosa desses estudantes nos Estados Unidos e na Europa exigindo o corte de relações com Israel.
Edição: Lucas Estanislau