Após vários dias cinzas e de muita chuva, o dilúvio parece que passou. Enfim saiu um pouco de sol no Rio Grande.
Só hoje podemos ver que o céu também é azul e que sua luz pode trazer um pouco de esperança e coragem para essa gente assolada pela maior enchente da história, fruto do colapso climático que nos encontramos.
Alguns dizem ser um evento natural, mas eu me nego a crer e adotar essa narrativa.
Não podemos naturalizar essas 90 mortes, os mais de cem desaparecidos e mais de 1,3 milhão de pessoas atingidas e com suas vidas devastadas. Já são 388 cidades em estado de calamidade pública, algumas completamente ilhadas ou destruídas (números da manhã de 7 de maio). Pessoas sem seus direitos básicos assegurados: teto, pão, água, luz, tudo negado.
Não é natural, trata-se de um desastre anunciado, fruto da omissão e ação dos atuais governantes. São décadas de destruição das políticas públicas e das legislações ambientais. Aprovaram as pressas as mudanças no código ambiental e na nossa lei de agrotóxicos. Desmantelaram as instituições de pesquisa, sucatearam os órgãos de fiscalização. São décadas do “libera geral nos licenciamentos”, que ao serem entregues formalmente aos municípios, se tornaram mera burocracia para atender os interesses dos financiadores de campanha.
Sim, deixaram a boiada passar, entregaram a preço de banana nossas empresas de água (Corsan), transporte (Carris) e energia (CEEE). Destruíram o Departamento de Água e Esgoto da capital do estado (Dmae), envenenaram nossos rios, alteraram os cursos d´água, ignoraram a necessidade de planos de prevenção, violaram a proteção das áreas de APP, as várzeas e áreas úmidas. Todas foram loteadas para mais lucro das construtoras que pagam suas campanhas ou nas áreas rurais para o agronegócio e as empresas transnacionais que seguem o saque colonial dos nossos bens comuns e extraem nossos minérios até não poder mais.
Sim, tudo isso tem um preço. Um preço alto por sinal, mas quem paga é o povo! Não os barões das bancadas do boi, da soja e da bala! Não os capachos, oligarcas e negacionistas!
Eles sabiam. Eles sabiam que o custo seria alto, mas preferiram lucrar! Preferiram acumular! Preferiram mentir! Sabemos que eles seguem andando em seus jatos, barcos ou helicópteros.
Na hora do caos, eles põem a culpa na natureza e fogem para bem longe. Ou fingem surpresa e espanto! As vezes até fazem uma pequena “caridade”, mandam mensagem de apoio, pedem tardiamente para a população evacuar áreas alagadas, etc.
Mas eles se esquecem que é nesses momentos, doloridos e tristes, que dialeticamente a solidariedade dos de baixo vai se tecendo e ficando forte.
Que é nesses momentos que vemos a energia coletiva transformadora de quem mais precisa e não tem tempo para chorar... que é nesses momentos que a faísca de um novo mundo emerge e se espraia.
Sim, apesar dos pesares é nessas horas duras e desafiantes que as ações de solidariedade, de apoio mútuo e de cuidado com os desabrigados e atingidos - como as cozinhas solidárias, as diversas redes de doações, brigada de voluntários, etc. - promovida diretamente pela sociedade, mobilizadas pelos mais diversos movimentos populares apontam que ainda é possível adotarmos rumos mais comunitários e ecológicos para a nossa sociedade.
Contudo, depois de meses, sigo com a mesma inquietação. Perguntas que não se calam em minha mente:
O que mais falta? O que mais precisa acontecer para que seja declarado Estado de Emergência Climática?! Será que vamos deixar que essa devastação seja vista como natural?! Espero que não.
Se mais de uma dezena de países e centenas de localidades já o declararam, por que isso não ocorre no Brasil? Por que o Rio Grande do Sul, que vive uma sequência de eventos climáticos extremos no último ano teima em ignorar a sociedade civil e a sociedade científica que alertaram diversas vezes sobre os riscos que corremos?
Quando será que a União e o estado do Rio Grande do Sul vão cumprir a Política Nacional de Mudanças do Clima (PNMC) e a Política Gaúcha de Mudanças Climáticas (PGMC)? Ou vamos seguir enxugando gelo? Ou só vamos lembrar da necessidade de investimentos público na defesa civil na hora dos desastres? Precisamos mais do que nunca de investimento em pesquisa que promovam tecnologias e saberes para a prevenção e mitigação dos riscos. Precisamos proteger os territórios dos povos originários, quilombolas e camponeses.
Nosso governo estadual não pode seguir negando o direito de participação da sociedade civil nos rumos e nas políticas relacionadas às questões climáticas e aos desastres. Deve e tem que reconhecer o papel da ciência, que vem nos alertando sobre a necessidade de nos prepararmos de forma urgente para mitigar os danos e reduzir a gravidade do caos que se avizinha? Ciência que poderia sim ter evitado muitas das mortes que ocorreram neste maio caótico de 2024.
Por isso para aqueles que repetem o coro da apolítica e do relativismo, digo e repito: Todos sabemos quem são os responsáveis! Sua hora vai chegar.
Urge uma mudança profunda em nossos de modos de vida e produção. Por isso, sempre é bom lembrar que não há saída para o colapso climático e a nossa crise civilizacional dentro do capitalismo.
Se não ficar claro isso, se continuarmos acreditando nas falsas soluções, no individualismo, no desenvolvimentismo, extrativismo ou nas falsas soluções verdes do capitalismo, infelizmente pode ser tarde demais.
Estamos vivendo a encruzilhada da nossa espécie. Ou rompemos os grilhões que nos aprisionam ao sistema de acumulação, opressão, exploração e destruição capitalista e passamos a construir algo novo e diferente na nossa casa comum chamada Terra, rumo a uma transição ecossocialista ou vivenciaremos reiteradamente situações apocalípticas e de “guerra” como as que estamos passando no Rio Grande do Sul nos últimos dias.
* Professor, pesquisador e advogado. Professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Pesquisador fundador do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap); da coordenação do Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul (CCM/RS) e da Campanha Permanente de Combate aos Agrotóxicos e Pela Vida.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira