Utilitarismo travestido de otimismo reduz condição humana a um mero meio para se atingir seus fins
Além de nuvens de chuva, outra sombra se projetou sobre o céu do Rio Grande Sul nessa quinta-feira, 9 de maio. O bilionário Elon Musk anunciou em sua conta no X (antigo Twitter) que sua empresa de satélites, a Starlink, irá doar mil terminais para uso gratuito por socorristas que atuam na tragédia que acomete o estado gaúcho.
O singelo ato de solidariedade no contexto da catástrofe sul-rio-grandense se revela, na verdade, como oportunismo ao ser visto sob a luz do histórico pessoal do magnata e dos movimentos estratégicos do capital internacional no Brasil.
Caridade, pero no mucho
A Starlink tem autorização para operar no Brasil desde janeiro de 2022, trazida pelo governo Bolsonaro pelas mãos do seu ministro das Comunicações, Fábio Faria. Em maio do mesmo ano, o caridoso Musk veio ao país e anunciou que sua empresa iria conectar 19 mil escolas nas zonas rurais e monitorar a Amazônia.
Dois anos depois, porém, o Brasil de Fato apurou e publicou na última quinta-feira, 9, que há confirmação de apenas três escolas estaduais do Amazonas recebendo internet por meio de parceria com a empresa.
Por outro lado, diversos veículos vêm noticiando o crescimento vertiginoso do garimpo ilegal na floresta amazônica no período, tendo este utilizado o serviço da Starlink para, entre outras coisas, driblar a fiscalização. Esse setor avançou criminosamente sobre terras indígenas, destacadamente as yanomanis, causando um verdadeiro genocídio.
O que os mais otimistas poderiam considerar apenas como falta de talento filantrópico por parte de um desajeitado bilionário teve como contrapartida um enorme sucesso no que diz respeito à sua vocação monopolista. Nesses dois anos de operação, a Starlink alcançou o segundo lugar no mercado, com 37,6% de um total de 396 mil assinantes, segundo dados da Anatel publicados em matéria do portal G1 no dia 9 de abril.
De acordo com levantamento exclusivo noticiado pela BBC, na Amazônia, contudo, a empresa já é líder, cobrindo 90% dos municípios.
Exatamente uma semana antes de seu anúncio sobre a doação de terminais de internet para o Rio Grande do Sul, em 2 de maio, a Starlink anunciou – numa coincidência insuspeita – o início de suas operações no Uruguai (país vizinho dos gaúchos), com uma postagem no X em que destaca seu avanço sobre o mapa da América Latina.
Mesmo diante dessa voracidade observada para abocanhar e monopolizar mercados no continente, ainda soa muito mal rejeitar uma doação, não é? Ainda mais em um contexto de calamidade de grandes proporções como o que estamos vivendo. Esse fato inclusive já foi explorado estrategicamente pela indústria da desinformação nesta semana, que tentou emplacar o boato de que o governo federal teria recusado a ajuda oferecida pelo Uruguai.
Não foi com um presente, porém, que os gregos teriam destruído Tróia? Ou melhor, tomando como exemplo um fato específico sobre nosso tema, quanto tempo os brigadistas no Rio Grande do Sul têm desperdiçado para separar roupas adequadas daquelas doadas apenas porque alguns doadores pensaram ser uma boa oportunidade para descartar peças de vestuário que já estão inutilizadas? Vemos, então, que vale, sim, analisar com cuidado a natureza de uma dádiva.
Um mediador com interesses e hostil à Justiça brasileira
Um sistema de acesso como o operado pela Starlink é um mediador entre usuários de internet. Qualquer pessoa que estuda o básico de redes de telecomunicação sabe que o operador tem total acesso ao conteúdo que media, podendo interferir no fluxo e mesmo acessar dados.
A criptografia é uma forma de tentar garantir alguma proteção nesse cenário, mas ela costuma cobrir apenas uma parte muito específica das mensagens trocadas. Já o princípio da neutralidade de rede, disposto pelo Marco Civil da Internet, é um dispositivo legal que visa garantir que o controlador da rede não irá, por qualquer interesse particular, intervir no tráfego de dados.
Para ter efetividade, porém, é necessário que a prestadora de serviço se disponha ou seja obrigada a se submeter a essa norma. Elon Musk, todavia, já deu demonstrações suficientes sobre o seu desprezo por determinações da Justiça brasileira.
Em abril, o bilionário anunciou que não iria obedecer às ordens da suprema corte do Brasil, que determinavam restrições a contas na plataforma X, da qual Musk é dono, envolvidas na promoção de desinformação, discurso de ódio e na tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023.
Além de se alinhar, desta forma, com o setor golpista, o neopaladino da liberdade abraçou a campanha bolsonarista de difamação contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e contra o presidente Lula, postando no X mensagens criticando duramente ambos. Ao mesmo tempo, o bolsonarismo mobilizava setores ultrarreacionários do congresso estadunidense para lançar um movimento que pede sanções a uma suposta ditadura no Brasil.
Um mês depois, Musk é então alertado para uma casual tragédia que, com um mesmo movimento estratégico, poderia lhe servir como oportunidade para promover a si e a sua empresa, aprofundar sua penetração no mercado ou, ao menos, constranger os adversários a terem que se pronunciar com uma posição impopular sobre uma suposta doação sua, fortalecendo, assim, os seus defensores no país.
Cabe destacar também que o já mencionado Fábio Faria, autor da célebre carta “Dear Mr. Musk” e aquele que não poupa teclado em tecer elogios ao amado bilionário em sua conta no X, é apontado pelo colunista d'O Globo Lauro Jardim como o intermediário do pedido de ajuda ao magnata.
O ex-ministro das Comunicações de Bolsonaro, coincidentemente, é também genro de Sílvio Santos, dono do SBT, a mesma emissora de TV que nesta semana veiculou a notícia falsa de que caminhões de doações para o Rio Grande do Sul estariam sendo barrados nas estradas e multados por falta de nota fiscal.
A Starlink não é a primeira no setor de telecomunicações brasileiro a se valer de uma postura supostamente filantrópica para esconder uma armadilha de mercado e constranger os seus críticos. É o caso da Internet.org, por exemplo, com a qual o Facebook, em 2015, anunciou que levaria conexão a populações pobres e de áreas isoladas, mas que de fato propunha a restrição do acesso de seu usuários aos conteúdos dispostos pela própria plataforma.
O mesmo vale para o zero rating das operadoras de celular, que se travestem de internet grátis e que, na verdade, restringem o número de serviços disponíveis, mutilando a experiência do usuário e catalisando ondas de desinformação.
Soberania
Entregar um setor estratégico de telecomunicações, com acesso a conteúdo e a fluxo de dados de usuários brasileiros, a um personagem com voracidade monopolista, com explícita determinação de desobedecer à Justiça e alinhado com setores que tentaram implementar um golpe de Estado no Brasil é, em termos ingênuos, uma trapalhada contra a soberania nacional.
O fato de essa iniciativa surgir no contexto de crise e comoção social só revela o tamanho do perigo, haja vista que os personagens dessa ofensiva tentam se aproveitar do sofrimento humano para conquistar posições no mercado e no controle dos dados.
Além disso, já imaginaram se alguns desses mil terminais de internet que supostamente serão doados para os brigadistas do sul desaparecessem em meio a tantos desencontros, característicos de uma situação de calamidade, e (surpresa!) fossem encontrados em alguns garimpos ilegais na Amazônia profunda?
É fácil perceber que, onde vemos uma tragédia, o bilionário capitalista vê uma oportunidade. Este é o mantra do empreendedorismo que ressoa na boca dos coaches e influencers por todo o planeta e que, utilitarismo travestido de otimismo, reduz a condição humana a um mero meio para se atingir os seus fins.
*Bruno Marinoni é integrante do DiraCom, jornalista e doutor em sociologia.
Edição: Matheus Alves de Almeida