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Desenhar para não esquecer: histórias em quadrinhos na ditadura

Os quadrinhos, como meio de divulgação e formação de ideias, tem muito a contribuir na manutenção da memória brasileira

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Henfil foi um dos mais contundentes críticos da ditadura nos quadrinhos e segue sendo inspiração para quadrinistas - Iolanda Depizzol

A consolidação de um mercado de histórias em quadrinhos no Brasil acontece progressivamente durante a primeira metade do século 20. Com essa popularização crescente, já nas décadas de 1930 e 1940 começam tentativas de censura a essas produções.

Havia uma visão ascendente, em diversos países, de que os quadrinhos representavam um perigo para o desenvolvimento infantojuvenil, causando preguiça mental e a corrupção. "Quando vem a ditadura, a gente já tinha tido dezenove tentativas de criar leis de censura aos quadrinhos no Brasil. Dezenove", afirma o jornalista e pesquisador Gonçalo Junior, autor de diversos livros sobre a ditadura e a censura nos quadrinhos.

Com a instauração da ditadura militar, o olhar censor ganha novas nuances: a Constituição de 1967 centraliza em nível nacional os órgãos de censura. Um ano depois, com o Ato Institucional Nº5, o AI-5, a perseguição aos considerados subversivos se acirra. Em 1970 é aprovado o Decreto-Lei Nº 1.077, conhecido como Decreto Leila Diniz, instituído pelo presidente Emílio Garrastazu Médici. O alvo era censurar obras que atentassem contra a "moral e os bons costumes". Entretanto, ao mesmo tempo em que havia repressão, a produção gráfica florescia no país.


Gonçalo Júnior / Iolanda Depizzol

Desenhar na censura

Na década de 1970 houve uma grande profusão de publicações independentes, como fanzines, sobretudo em Universidades; eles representavam uma alternativa para que muitos pudessem criar, publicar e circular trabalhos de diferentes naturezas, inclusive em quadrinhos. Entre incontáveis produções, uma das mais notórias foi a Revista Balão. Criada por alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1972, a Balão trouxe visibilidade a uma série de artistas que se tornaram célebres nos quadrinhos brasileiros, como Chico e Paulo Caruso, Angeli, Laerte e Luiz Gê.

Entre as suas muitas atuações, como ilustrador, cartunista, quadrinista, designer e desenhista, o paulistano Luiz Gê relembra os tempos da Balão. "Essa revista praticamente deu origem a todo o quadrinho moderno brasileiro por várias razões. pelo número de participantes que depois foi pro mercado e ficou famoso, pelo número de exemplares, foi até um movimento. E nessa época era muito barra pesada. A gente estava em plena era Médici, que foi a época em que a guerrilha estava sendo desbaratada. Muita repressão, muita censura. E a gente veio com uma revista que, com tiragem pequena dentro da universidade, dava condições de a gente criar e fazer trabalhos com um teor político maior do que o que se poderia encontrar na imprensa", afirma.


Luiz Gê/Iolanda Depizzol

Ao ingressar na grande imprensa, Luiz Gê passa a produzir mais charges políticas. A censura era muito presente, trazendo o sentimento constante de incertezas no dia a dia de trabalho, a ponto de uma auto censura dos próprios veículos para não chamar a atenção, como Luiz pontua: "Todo mundo acaba introjetando um pouco sobre essa questão do censor. Quando você tem uma censura de baixo para cima tão forte como era no Brasil, você mesmo fala 'acho que isso daqui eu não posso falar'. 'Isso aqui eu vou falar, eu vou falar disso daqui', quer dizer, se tomava atitude, mas ficava com medo", conta.

A censura não operava de modo homogêneo. A chargista e quadrinista paulistana Laerte Coutinho, outro importante nome que participou da revista Balão junto de Luiz Gê, relembra: "Durante uns dez anos eu fiquei fazendo jornal sindical e trabalhando a noite no (jornal) dos patrões, na Gazeta Mercantil. Então eu não tinha tempo para ser censurada, eu não tinha espaço para ser censurada. O Jornal dos patrões não era censurado, a imprensa sindical também não era censurada. Então a censura carregava no espaço do meio, que era imprensa comercial, a 'imprensa nanica' como se chamava, ou O Pasquim", lembra.


Laerte Coutinho / Juliano Vieira/BdF

O cerceamento da criação artística pela censura também influenciou o modo como se faziam quadrinhos. Muitos artistas sentiam que não havia espaço para obras maiores voltadas para as bancas de jornal, por exemplo, ou a possibilidade de trabalhos com temáticas mais diversas, pois havia uma urgência maior. "Era como se fosse uma prisão. Eu era obrigado a estar falando da questão da ditadura, porque a ditadura precisava acabar", relembra Luiz Gê. 

Com um enfraquecimento do regime ditatorial nos anos 1980 e a crescente abertura democrática, o sentimento criador represado durante os anos de chumbo deu vazão a uma série de publicações que se tornaram importantes referências na formação do quadrinho brasileiro como conhecemos hoje em dia. Encabeçada pelo editor Toninho Mendes, junto de nomes como Laerte, Luiz Gê, Glauco e Angeli, em 1984 nasce a Circo Editorial, editora com foco na publicação de quadrinhos, cartuns e charges que utilizavam do humor como mecanismo de sátira e crítica à política brasileira. Publicou títulos como Chiclete com Banana (Angeli), Níquel Náusea (Fernando Gonsales), Geraldão (Glauco), Piratas do Tietê (Laerte), Quadrinhos em Fúria (Luiz Gê), entre outros. 

A Revista Circo alcançou grande popularidade, chegando a vender 150 mil exemplares por edição, segundo Gonçalo Júnior. Sua influência, para além dos quadrinhos, foi tamanha, que "a Circo planta o humor da redemocratização, ela abre caminho para o Casseta e Planeta, para o Planeta Diário, para a TV Pirata e outros programas de humor que foram surgindo", como reforça Gonçalo.


Capa da revista Circo / Divulgação/Guia dos Quadrinhos

Preservação de legados

Infelizmente, muitos artistas que marcaram a produção gráfica no período da ditadura já nos deixaram. Recentemente, o mineiro Ziraldo foi um deles. Jornalista, escritor e cartunista, Ziraldo é célebre por criações como A Turma do Pererê e O Menino Maluquinho. Mas em sua larga produção, que contemplou design, literatura e, claro, quadrinhos, o artista teve grande atuação na criação de charges e cartuns contra a ditadura. Ele foi um dos fundadores, em 1969, do jornal O Pasquim, um dos principais veículos na luta pela liberdade durante os anos de chumbo. Outro importante nome que contribuiu para o semanário foi o mineiro Henfil.

Nascido na periferia de Belo Horizonte, Henrique de Souza Filho, o Henfil, foi jornalista, desenhista e escritor. O ativismo e luta pela liberdade e democracia sempre vibrou em Henfil, não sendo diferente em suas produções. Criou personagens emblemáticos nas charges e quadrinhos, como a Graúna, os Fradinhos, Ubaldo e Capitão Zeferino, que também foram importantes para um processo de consolidação de personagens tipicamente brasileiros, em contraponto ao quadrinho norte americano e europeu que dominava o mercado nacional na década de 1970. Sobre o cartunista, Gonçalo Júnior comenta: "Henfil morreu em 1988. Foi o maior cartunista da história brasileira. Era um cartunista hemofílico que peitou a ditadura de uma forma que ele poderia ter sido preso e um único soco que levasse poderia provocar hemorragia morrer. E ele era o cara que mais confrontava a ditadura. Virou um símbolo da luta, do humor e dos quadrinhos contra a ditadura militar", afirma.


Henrique de Souza Filho, o Henfil / Reprodução

O legado de Henfil para o quadrinho brasileiro é tamanho que o artista dá nome à Gibiteca de São Paulo: a Gibiteca Henfil. Fundada em 1991, é localizada dentro do conjunto de bibliotecas do Centro Cultural São Paulo, e é uma das maiores da América Latina. Seu acervo conta com mais de 130 mil exemplares, que incluem histórias em quadrinhos em diferentes formatos, livros teóricos, revistas especializadas, publicações em outros idiomas, e claro, quadrinhos de autoria de Henfil. Além de quadrinhos variados, o equipamento possui um rico conjunto de materiais históricos, como números do jornal O Pasquim, revistas das décadas de 1950 e 1960, títulos de editoras como a EBAL, Rio Gráfica e Adolfo Aizen e publicações já fora de circulação.

A presença e preservação da gibiteca Henfil e das demais gibitecas e bibliotecas públicas espalhadas pelo país é primordial, por representarem um importante instrumento na democratização ao acesso de leitores e pesquisadores de todas as idades aos quadrinhos - primeiro acesso que acontece, muitas vezes, nesses espaços.


Parte do Centro Cultural São Paulo, a Gibiteca Henfil tem um das maior acervos da América Latina / Iolanda Depizzol

Manutenção da memória 

O conjunto de obras desenvolvidas por tantos nomes brasileiros durante a ditadura - como Henfil, Luiz Gê, Laerte, Ciça Pinto, Angeli, Ziraldo, Júlio Shimamoto, Edgar Vasques e tantos outros -, formam um importante corpo de experiências sobre o período. Representam uma documentação de memórias que precisam ser preservadas, acessadas, lidas, para que todos os que não viveram o regime não tenham dúvidas de seu caráter golpista e truculento. "Os quadrinhos, eles têm essa possibilidade de dar, de criar memória para a nossa sociedade. E isso vai ser muito importante no futuro, porque você é capaz de se reportar aquilo.Vira um túnel do tempo, você consegue entrar naquela realidade, vivenciar", reforça Luiz Gê. 

Para Laerte Coutinho, "a ideia de um fascismo crescente não é brincadeira, não é uma fantasia". "Não é só no Brasil. Eu estou falando de Portugal, da Hungria. Em todos os lugares existe uma ideia crescendo que não é a direita, a direita dita civilizada, não é o Fernando Henrique. Nós estamos falando do Bolsonaro. É a selvageria, nós estamos lidando com feras", pontua. 

Confira a reportagem em vídeo:

Com um cenário mundial de ascensão da extrema direita e de pessoas pedindo, publicamente, por uma intervenção militar, além dos atos golpistas no congresso em 8 de janeiro de 2023, a importância da manutenção da memória da ditadura se mostra urgente."As pessoas propagam fake news, mas elas próprias querem transformar a história em fake news", afirma Gonçalo Júnior. O pesquisador também pontua como a opressão à minorias se calça em discursos herdados da ditadura. "A questão sexual, a repressão ao sexo, a opressão às minorias que a gente viu no Brasil nos últimos cinco anos, tinha por trás um regime de ideias extrema direita, autoritárias, totalitárias e favoráveis a um golpe e uma ditadura militar", diz.  

Luiz Gê publica, em 2014, o livro Ah Como era boa a ditadura, como uma resposta do aos pedidos de intervenção militar que emergiram. O trabalho compila diversas charges e tiras produzidas pelo artista durante o período de abertura democrática, retratando como era, de fato, viver sob um regime ditatorial.

Os quadrinhos, enquanto meio de divulgação e formação de ideias, tem muito em que contribuir na manutenção da memória social do Brasil. Tal qual outras linguagens, como a música, o cinema, a literatura e a pintura, as HQs possuem especificidades que só ela pode acessar. E a narrativa desenhada é uma delas. Para Luiz Gê, "O desenho é uma coisa bem interessante. Ele está muito ligado com a memória, porque o desenho não é como uma foto. A foto é meio parecida com o jeito que a gente enxerga, não tem muitos filtros; o que você enxerga ali vai depender da sua visão. Agora um desenho, ele tem que pegar os elementos essenciais. Um manual, por exemplo, muitas vezes é desenhado, tem essa simplificação, que está ligada à memória. Então, essa questão dessas linguagens ajudam a criar memória para para um povo", afirma. 
 
Conhecer os traços de quem desenhou importantes momentos da nossa história, em diversas expressões artísticas, reforça a importância de não deixar esquecer. Não só para não deixar com que episódios como o da ditadura não se repitam, mas também para pensarmos em novas formas de desenharmos um amanhã melhor, para além das páginas dos quadrinhos. Por isso, desenhar para não esquecer. 

Edição: Thalita Pires