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Enchentes no RS: somos, todos, Estado!

Não se iludam. Não é o mercado que salva. É o Estado. E somos, todos, Estado

Porto Alegre (RS) |
Ações de solidariedade, como a cozinha do MST em Viamão (RS), reforçam a necessária resposta do Estado em situações de calamidade - Tiago Giannichini/MST

Estamos vivendo a maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul e, quanto a isso não há divergências. A situação é realmente muito dramática. Grande parte do território do estado está embaixo d’água. Estradas interrompidas, pontes destruídas, cidades inteiras alagadas, milhões de pessoas desabrigadas, centenas de mortes... As perdas são incalculáveis. O estado foi engolido pelas águas.

Há, certamente, muitas razões para termos chegado nesta situação de calamidade, desde o descaso em relação aos incontáveis alertas que os cientistas vêm fazendo há muito tempo sobre o aquecimento global e sobre degradação ambiental, até a falta de manutenção dos equipamentos públicos mais simples de prevenção de enchentes. No entanto, não é hora de procurar culpados, pois eles já são conhecidos. O que eu quero aqui é ressaltar a importância da ação do Estado e da sociedade diante dessa situação trágica.

Em todas as grandes tragédias que vivemos, aparece sempre, em primeiro lugar, o Estado e seus servidores públicos, defesa civil, bombeiros, forças armadas, entre outros; depois vem a sociedade com aquilo que melhor lhe caracteriza, a solidariedade humana. Mas infelizmente, também aparecem, nestes momentos, os oportunistas, que veem nas tragédias oportunidades para lucrar, para saquear ou para impor suas ideologias.

Na hora de prestar socorro aos atingidos pelas calamidades, é do Estado que se espera as primeiras ações. Somente o Estado, com sua estrutura e com os recursos públicos, tem a capacidade e a responsabilidade de organizar os esforços de resgate, de ajuda e de reconstrução da vida de milhares de famílias. E é isso que de fato acontece, com maior ou menor amplitude, de acordo com as concepções de Estado de cada governo. 

Tivemos muitos exemplos recentes. Na pandemia da covid-19 foi assim. Nas tragédias de Mariana e Brumadinho, também. No incêndio da boate Kiss, da mesma forma. E agora, nas enchentes no RS, não é diferente. O que estamos presenciando é que o Estado não mede esforços, nem faz cálculos de custo-benefício, diante do desafio de salvar vidas. Nenhuma regra ou limite fiscal pode se sobrepor à urgência de atuação que a situação exige. Obviamente que, dependendo da concepção de cada governo, essa atuação será mais ou menos eficiente.

No episódio que estamos vivendo, toda a estrutura pública foi colocada a serviço da população atingida e ninguém está perguntando se a pessoa atendida é rica ou pobre, se tem recursos, ou se pagou em dia seus tributos. Essa é a natureza de um Estado social: "de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades".

A sociedade, por seu lado, ao ser chamada, ou mesmo de forma espontânea, faz também a sua parte, e, quando o faz, atua como extensão do próprio Estado. As doações de alimentos, de roupas e de tempo de trabalho voluntário nada mais são do que formas diferentes de pagar tributos, de acordo com a capacidade de cada um, para atender diretamente aos demais, segundo as suas necessidades. É o exercício direto da atribuição do Estado pelas mãos dos cidadãos.

Em momentos como esse, todos são Estado, e cada cidadão abdica da sua condição de indivíduo e passa agir como cidadão, ou seja, como alguém que coloca o interesse comum acima do seu próprio interesse individual. A participação da sociedade não reduz a importância do Estado, como alguns têm tentado pregar, mas a amplia. A lógica do Estado é que prevalece sobre a lógica do mercado e do individualismo. Os direitos à vida, à proteção social, à saúde, à alimentação se sobrepõem aos ganhos individuais e ao lucro.

Os oportunistas, ao contrário, querem maximizar seus ganhos privados, e colocam em marcha uma lógica contrária à ação cooperativa e coletiva, que caracteriza o Estado, ou seja, a lógica do lucro. O mercado quer cobrar para prestar socorro, quer aumentar preços em razão da escassez dos produtos, vender água a preços exorbitantes, aumentar preços dos combustíveis, quer esconder produtos para vendê-los a preços superiores quando estiverem em falta. O mercado impõe a lógica da vantagem.

Saqueadores de residências e de estabelecimentos abandonados, assaltantes e golpistas agem também pela lógica da vantagem individual, que é estimulada pelo mercado, e não pela lógica da cooperação, que caracteriza a ação do Estado. Os propagadores de fake News, da mesma forma, ao distorcerem a realidade dos fatos, tentam anular a importância do Estado para que prevaleça a ideologia do mercado.

São meros oportunistas que se aproveitam da desgraça alheia para fazerem apologia do Estado mínimo, justamente quando a população mais precisa do Estado de proteção social. Aliás, a distorção da realidade tem sido um instrumento recorrente dos negacionistas. O Estado mínimo é aquele em que o presidente da República tira férias, em Santa Catarina, quando o estado da Bahia era vítima de calamidade climática, ou aquele, em que o presidente negava a importância das ações de prevenção contra a pandemia da covid-19. 

No Estado social, ao contrário, todas as estruturas do governo federal se mobilizam e colocam todos os seus recursos para atuar diretamente no local dos acontecimentos com o objetivo de proteger as pessoas. Mas, antes que me entendam mal, preciso dizer que mercado não é sinônimo de empresas. Muitas empresas e empresários, deixando de lado seus interesses privados, também estão empenhados em ajudar o Estado neste momento, tanto fazendo doações e cedendo espaços físicos, quanto prestando serviços relevantes à sociedade.

Não se iludam. Não é o mercado que salva. É o Estado. E somos, todos, Estado. Quando saio de casa para ajudar em algum abrigo; quando levo alimentos, roupas, calçados; quando faço contribuições para as cozinhas solidárias; quando ajudo a retirar famílias de áreas alagadas, sou Estado. Me junto aos milhares de servidores públicos, civis e militares, socorristas, e aos milhares de voluntários, numa grande ação de Estado para salvar vidas e superar rapidamente a tragédia.

Dão Real Pereira dos Santos é presidente do Instituto Justiça Fiscal (IJF) e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Nicolau Soares