ENTREVISTA

'Luta pela abolição da escravatura se faz todos os dias', diz rainha da Guarda 13 de Maio

Isabel Casimira, rainha do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, fala sobre racismo e religiosidade

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
"A proclamação da Lei Áurea é um assunto que a gente tem que debater sempre entre os nossos", diz Belinha - Foto: Lucas Wilker

A história, se deixar de ser contada, corre grande risco de ser repetida
 

"32. e o racismo continua". É o que diz a rainha do Reinado de Nossa Senhora do Rosário de Belo Horizonte, Isabel Casimira, mais conhecida como Belinha. 

Neste 13 de maio, acontece o tradicional cortejo da Guarda 13 de Maio, no bairro Concórdia, na região Nordeste de BH. O festejo dura cerca de dez horas e faz um "cinturão de força ao redor da cidade", nas palavras de Belinha. 

Em 2024, o reinado completa 80 anos, e a celebração provoca um conjunto de reflexões sobre a preservação de um pilar da cultura afro-brasileira, e também sobre os desafios cotidianos impostos pelo racismo e pela intolerância religiosa. 

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui :: 

Para marcar essa importante data e dialogar sobre o assunto, o Brasil de Fato MG entrevistou a Rainha Belinha, coroada Princesa de Moçambique da Guarda 13 de Maio com apenas um mês de idade. 


 Foto: Lucas Wilker

Brasil de Fato MG: O Reinado 13 de Maio de Nossa Senhora do Rosário completa 80 anos em 2024. Qual a importância desse marco? 

Isabel Casimira: A importância é a continuidade. A gente conseguiu fazer o que foi proposto pelos nossos tatas. Nós priorizamos muito a tradição e a fé, que é a fé que foi ensinada pelos nossos avós, pelos nossos tatas, nossos pais, e é isso que os 80 anos representam: fé. 

Fé em Nossa Senhora do Rosário, fé e certeza no que está por vir, no que já passou, no que que a gente tem que focar: saber com que armas a gente pode se defender do preconceito religioso, preconceito racial, preconceito institucional, preconceito moral, o preconceito invisível daquelas pessoas que não sabem que são preconceituosas. 

Em sua visão, neste dia 13 de maio, dia da "abolição da escravatura", quais são os principais problemas enfrentados pela população negra no Brasil?

Esse país foi construído em cima do sangue negro, e muitas cidades, como Belo Horizonte, foi projetada para ser uma capital branca, elitista, masculina. E essas pessoas pensam que só o que elas fazem é cultura, só o que elas fazem é religiosidade, só a religião delas é real, tudo deles é melhor do que do outro.

A proclamação da lei Áurea é um assunto que a gente tem que debater sempre entre os nossos, nas escolas, para entender como se deu essa abolição, se ela é real ou não, se ela teve benefício ou malefício. Tem que ir trabalhando isso, porque o racismo é aprendido. 

E também temos que preparar os guerreiros que vão ficar aí, porque a luta não vai acabar. Em 136 anos de abolição da escravatura, pouco se caminhou, o racismo continua, o preconceito continua. A abolição é feita todos os dias. E a história, se deixar de ser contada, corre grande risco de ser repetida. 

Como as guardas são organizadas em Belo Horizonte?

São duas guardas: uma Guarda de Moçambique e uma Guarda do Congo. A primeira que foi criada foi a de Moçambique, em 1944. A Guarda de Congo foi criada depois, porque a de Moçambique era exclusivamente masculina. E o Congo foi criado para que as mulheres que não saíam na Guarda de Moçambique também fizessem sua louvação dentro do reinado.

Quando eu digo congado, eu digo povo oriundo do Congo. Quando eu digo reinado, falo de todos os povos que Nossa Senhora do Rosário comanda.  

Como surgiu o Reinado de Nossa Senhora do Rosário?

Essa guarda surgiu a partir de uma promessa que minha avó fez quando ela adoeceu. Ela era parteira, lavadeira de roupa e cozinheira e tinha um filho pequeno. Como é que ela ia fazer sem saúde? 

Então ela combinou com a Nossa Senhora que se ela desse a ela saúde, ela ia mandar celebrar uma missa por aqueles que morreram escravizados, pelos que morreram no cativeiro, e pelas almas dos que vieram antes de nós. E assim foi. Ela convidou as pessoas do entorno da Concórdia, que já tinham guardas, já faziam suas manifestações, para vir ajudar a levantar essa bandeira. 

Aí ela fez uma comida para o povo do Rosário. Era dobradinha, arroz, feijão, farofa, tutu e repolho, que é a comida que a gente faz aqui no dia 13 de Maio. Esse cardápio não muda. Era barato e era o que o dinheiro dava para comprar. 

Só que para continuar aquele negócio que eles chamavam de 'coisa de preto' precisava de alvará. Mulher não tirava o alvará, mulher nem votava! Aí a vovó emancipou o filho mais velho dela, tio Efigênio. Ele registrou a guarda, e a partir daí esses homens que governavam o reinado mineiro passaram a se curvar à Maria Casimira por sua astúcia. 

E como é sua história com esse reinado?

Minha mãe teve um casal de filhos, os primeiros da gestação dela, e a menina morreu. Foi uma comoção muito grande por essa mocinha ter morrido, até porque minha mãe nem sabia que estava esperando gêmeos, já que naquele tempo não tinha como saber. Eles ficaram muito chateados, muito doídos.

Então quando eu cheguei, aquela alegria voltou de novo. Eu nasci dia 13 de abril e dia 13 de Maio é a Festa do Rosário. Então eu fui coroada Princesa de Moçambique da Guarda 13 de Maio quando eu tinha um mês de idade. O mesmo tempo que tenho de nascida, eu tenho de coroa. 

Uma criança coroada é uma criança que vai aprender que amanhã os seus tatas vão embora e ela que vai dar continuidade, se ela quiser. Você não faz nada quando você é criança, você é ensinada.

Já o direito de ser Rainha do Congo é do povo da casa e dos mais velhos de coroa. Minha avó que passou para minha mãe. Sempre você escolhe a pessoa mais velha, não de idade, mas de conhecimento na irmandade. 

E como é hoje esse festejo?

Um momento de muita fé e emoção, de muita força, força concentrada na harmonia, na paz, na tranquilidade, na abertura de caminho, na limpeza das mentes, do espaço, do bairro, da cidade, limpeza do mundo.

É um povo que sai pelas ruas rezando e orando, pedindo e implorando a Nossa Senhora e aos guias de luz, nossos protetores, que façam que a energia desse planeta seja de compaixão, de alegria, de inteligência, de entender o outro, ser compassivo, companheiro. É isso que o povo do Rosário pede quando ele sai em cortejo. 

É um cortejo pequenininho, de dez quarteirões, que transcorre a Praça do México, vai descendo e volta para casa, fazendo um cinturão de força ao redor de Belo Horizonte. 
 

Fonte: BdF Minas Gerais

Edição: Leonardo Fernandes