De uns tempos pra cá, diversos escândalos têm estourado em relação à Fundação de Ação Social (FAS), autarquia municipal responsável pela política pública de assistência social em Curitiba. Alguns casos envolveram diretamente a presidente da Fundação, Maria Alice Erthal. Outros revelam possíveis linhas equivocadas na política de assistência social do município.
Há poucos dias, repercutiu fortemente a denúncia de maus tratos e abusos contra menores de idade, na Casa do Piá 1. Ainda no ano passado, um áudio da presidente da Fundação recomendou expressamente a retirada de moradores em situação de rua do centro da cidade – se necessário, com uso da força. Disse Erthal, nome de confiança do atual prefeito:
“Eu queria pedir para vocês passarem na André de Barros, ali perto da antiga rodoviária, que está cheio de gente dormindo, e aqui na Marechal Deodoro que tem até uma cortina agora para não serem incomodados. Então, por favor, ali tem que tirar aquele povo dali. Se precisarem ir com a guarda… Não sei se vocês receberam alguma ordem de não tirar as pessoas, mas está um absurdo aquilo ali, sabe? Se vocês puderem, não precisa tirar na marra, né? E vá à guarda municipal para eles começarem a ficar um pouquinho de medo,” disse a presidente, em áudio a um grupo de WhatsApp de servidores da Regional Matriz publicado pelo Jornal Plural.
Erthal foi resgatada por Greca para a presidência da FAS e revela uma visão considerada antiquada por especialistas da área / Rodrigo Fonseca / CMC
Por que tantas denúncias e escândalos?
Na avaliação de Dara Rosa, assistente social, que representa o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Curitiba (Sismuc) no Conselho Municipal de Assistência Social de Curitiba (CMAS), não se trata de uma coleção de fatos isolados, longe disso, mas, na visão da especialista, de uma política de assistência social ultrapassada e que não seguiria as diretrizes do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O SUAS que, desde o governo Temer, teve retirada de recursos no plano nacional, da ordem de R$ 458 milhões os recursos do co-financiamento do SUAS em 5.568 municípios brasileiros
“Tivemos morte dentro de uma casa de acolhimento, e isso não teve desdobramento na gestão. Greca não fez nada. Como trabalhadora especialista na área de políticas públicas, eu entendo, sim, que isto é uma perspectiva política de gestão, higienista, punitivista, 'eles e nós', ou 'bandido', ou 'coitadinho', 'o que não quer trabalhar'”, critica Rosa.
Para Dara Rosa, atual gestão impediu um fortalecimento crescente da FAS em Curitiba / Divulgação
Política desde o “cheiro de pobre”
Desde que Greca assumiu a prefeitura, em 2017, Rosa considera que houve um retrocesso em comparação à caminhada que vinha se construindo no município. Com Greca, estaria se retomando políticas anteriores, no antigo modelo que Dara classifica como de “punição ou caridade”.
Não à toa, é inevitável vir à memória a campanha eleitoral de 2016, quando, num debate para estudantes universitários, promovido pelo Bem Paraná, o então candidato Rafael Greca de Macedo, se afastando de qualquer comparativo com São Francisco de Assis, afirmou que “nunca cuidou dos pobres”, relatando um caso quando deu carona a um morador em situação de rua em seu carro e teria vomitado. Oito anos depois, a declaração ganha uma triste atualidade. Estaria desde aquele momento o embrião das linhas da atual gestão?
Antes da prefeitura de Greca, a FAS vinha buscando, de acordo com Rosa, inserção nas linhas gerais da política do SUAS. Naquela época, Rosa, que participou da gestão Fruet (2012 – 2016) afirma que chegou-se a 45 centros de Referência de Assistência Social (CRAS) na capital. “Havia autonomia de estar ajudando a implementar o SUAS em Curitiba. A partir de 2009, implementação do SUAS foi mais abrangente, no governo Fruet”, define. A Fundação, por sua vez, por meio de sua assessoria de imprensa (veja abaixo) reafirma o compromisso com as diretrizes do SUAS.
Dos 399 municípios do Paraná, 312 já regulamentaram o SUAS. Curitiba, capital do estado, de acordo com o Sismuc, ainda não.
Da discussão de direitos humanos presentes nas políticas públicas, Rosa defende que a FAS de Greca e Erthal resgatou “uma concepção de gestão com uma visão higienista e paternalista de 30 anos atrás”, critica.“A FAS hoje reflete a que foi criada há 30 anos atrás, com o nome que não se atualizou ainda, que não se refere à assistência social, mas à 'ação social'. O Greca recupera práticas de ação social, de caridade, recolocou coisas que já não estavam mais postas, desde que assumiu em 2017”, critica Dara.
A pesquisadora aponta também ausência de concursos, servidores, em suma, falta de estrutura. E, segundo ela, a maioria dos cargos de gestão são de nível médio. De acordo com orientações do SUAS, de 2005, e do conselho nacional de assistência social, cargos de gestão devem ser preenchidos com nível superior, "quais são as carreiras que podem assumir cargo de gestão no SUAS e em quais áreas?", questiona.
Histórico
Na manhã do dia 7 de novembro de 2023, um homem acolhido na Casa de Passagem do bairro Rebouças foi morto com um tiro de arma de fogo, efetuado por um guarda municipal.
Especialistas e parlamentares – a exemplo da professora Josete (PT) – denunciam também que a prefeitura vem adotando, nos últimos anos, políticas higienistas, com a lavagem de calçadas das ruas do centro, com o fim dos guarda-volumes para a população em situação de rua, com a tentativa de intervir em ações de distribuição de marmitas das organizações da sociedade civil, como ocorreu em 2021, entre outras atitudes questionáveis.
Prefeitura responde às críticas
Por meio de sua assessoria de imprensa, a FAS enviou a seguinte resposta às críticas elencadas em reportagem do Brasil de Fato Paraná:
"A FAS informa que todos os seus esforços de atendimento às pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade e risco social visam a consolidação da assistência social em Curitiba, conforme as diretrizes do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) que busca a promoção da proteção social, a vigilância socioassistencial e a defesa de direito em todo o país.
Para o desenvolvimento de seus serviços, a FAS possui cargos de gestão ocupados por servidores de carreiras de nível superior e médio. A grande maioria dos servidores de carreira de nível médio, concomitantemente, possuem formação em nível superior, entre eles pedagogos, gestores públicos, administradores, advogados.
Sobre concurso público, a FAS informa que está em vigência um concurso de nível médio, incluindo convocação de Educadores Sociais. 54 novos servidores já foram chamados em 2024. Para carreiras de nível superior está em trâmite uma solicitação de reposição.
Sobre capacitações, a fundação possui um Núcleo de Educação Permanente com cronograma de capacitação anual, envolvendo todos profissionais SUAS"
Frase marcante
"— Eu coordenei o albergue Casa dos Pobres São João Batista para a igreja católica durante 20 anos. Eu nunca cuidei dos pobres. Eu não sou São Francisco de Assis. Até porque a primeira vez que eu tentei carregar um pobre no meu carro eu vomitei por causa do cheiro", Rafael Greca de Macedo, campanha eleitoral da 2016, em setembro de 2016.