Neste artigo, analisamos as implicações dos instrumentos de política urbana na execução das políticas habitacionais. Exploramos, especialmente, o modelo de zoneamento de Curitiba e seus efeitos nas condições de acesso à moradia digna da população mais pobre.
A abertura para o debate, possibilitada pelo período eleitoral, permite pensar outros modelos de cidade, mais democráticos, socialmente justos e sustentáveis, desestabilizando arranjos institucionais, práticas e ideologias que têm dominado as políticas urbanas e habitacionais na nossa metrópole.
Há mais de meio século, Curitiba, polo da metrópole, adota o zoneamento de uso do solo como principal instrumento de ordenamento territorial. Predominância que se manteve com a regulamentação, em 2001, de ferramentas mais efetivas no combate às desigualdades sócio espaciais, na lei federal Estatuto da Cidade.
Em 1965, o zoneamento estabeleceu que as áreas ao longo das vias exclusivas do transporte coletivo – setores estruturais –, seriam reservadas para os empreendimentos verticais de maior porte, com a justificativa da utilização intensiva da infraestrutura nelas implantada.
Este raciocínio, bastante difundido pelo discurso técnico-institucional, contém, no entanto, uma falha significativa: desconsidera que a legislação urbanística está fundada e estruturada na produção social da cidade capitalista e na urbanização brasileira.
Dito de outro modo, as leis que moldam o espaço das cidades refletem as estruturas de poder e autoridade vigentes. É no espaço das cidades que aterrissam as relações que envolvem circulação de decisões e investimentos de capital, mais-valia, salários, juros, renda, práticas de poder e ideologias, que se materializam nas formas e nos conteúdos sociais dos setores estruturais, das áreas centrais, das periferias etc.
Por isso, os índices urbanísticos dos setores estruturais, especialmente os elevados coeficientes de aproveitamento do solo, junto com a localização e a infraestrutura neles instalada, tornam zonas atrativas e disputadas pelo mercado imobiliário, que por meio de seus expedientes obtém maior capitalização, inviabilizando, na maioria das vezes, a produção de habitação para a população de menor poder aquisitivo.
A não aplicação de instrumentos urbanísticos redistributivos para acesso mais equitativo à cidade urbanizada, amplia o domínio do capital imobiliário sobre os espaços melhor localizados, por meio da retenção especulativa e da inflação dos preços de imóveis, além de outras práticas mais explicitamente imorais, como a expulsão e substituição de antigos moradores, geralmente os com menor capacidade de pagamento, pelos clientes potenciais dos lançamentos imobiliários. O caso divulgado recentemente por jornais de circulação local e nacional, do Conjunto Residencial João Gualberto, no bairro Cabral, é exemplar.
Compreender a produção da cidade como um processo social insere o zoneamento e demais instrumentos urbanísticos na arena da disputa política, e permite observarmos sem filtro nossa realidade urbana. Explica a razão da presença majoritária de empreendimentos de alto padrão nos setores estruturais, e porque o adensamento derivado da verticalização é mais construtivo do que populacional. Desvela as causas da segregação socioespacial, da periferização e da precariedade habitacional da população de baixa renda. Permite questionar a eficiência dos setores estruturais em Curitiba e pensar a necessidade de construção de um modelo normativo consequente e responsável para nossas cidades.
Esses efeitos vêm se agravando desde a aprovação da expansão das possibilidades de verticalização na Linha Verde e na Conectora 5 e demais alterações da última revisão do zoneamento (lei municipal n°15.551/2019), que ampliaram as possibilidades de verticalização para além das vias tradicionalmente a ela destinadas, mesmo com a ocupação rarefeita observada em extensas áreas dos Setores Estruturais.
Vale lembrar que a disponibilidade de áreas desocupadas nos Setores Estruturais não viabilizou a produção de moradias populares pela COHAB-CT ou pelo faixa 1 do Programa Minha Casa Minha Vida, que historicamente têm sido implantadas nas periferias de Curitiba e dos municípios metropolitanos.
Esses lotes vazios e subutilizados, em áreas estabelecidas pelo zoneamento para adensamento, revelam a prevalência dos interesses imobiliários na política urbana de Curitiba, que impede a execução de políticas de habitação de interesse social nas áreas melhor localizadas. A definição de instrumentos urbanísticos, preços imobiliários e habitação social pertence, portanto, ao campo da política, sendo a técnica utilizada para alcançar os princípios da atuação dos governos municipais.
Escavando alternativas
Para enfrentar a questão habitacional em Curitiba é necessário superar as contradições da política urbana assentada no discurso da “cidade eficiente”, e as ações que caminham na contramão da equidade.
Habitação popular em áreas bem localizadas é uma condição para que os benefícios da urbanização sejam usufruídos por todas as classes sociais, para enfrentar as desigualdades, diminuir a segregação sócio espacial e garantir que as infraestruturas executadas com recursos públicos estejam próximas de quem mais as utiliza e necessita. Hoje, aproximadamente 85% dos usuários do sistema BRT mora fora dos setores estruturais.
Para tanto, a política urbana precisa regular o capital imobiliário, que tem dominado a produção do espaço nas zonas melhor localizadas. O domínio por estes agentes tem efeitos ainda mais perniciosos, quando se constata o número de empreendimentos construídos para rentistas e clientes de renda média/alta e alta nessas localizações.
Durante a pandemia, a retração econômica provocada pela necessidade do isolamento e a postura do governo Bolsonaro, contribuíram para o aumento da pobreza no país. Na escala macroeconômica, a redução da taxa de juros a patamares inferiores a 2% entre 2020 e 2021, segundo o Banco Central, foi apropriada pelo setor imobiliário em financiamentos à produção e à aquisição de imóveis: os lançamentos residenciais cresceram 27% comparado ao ano anterior e as vendas aumentaram 12,8%. Esse aumento expressivo, desacompanhado de políticas urbanas redistributivas, orientou a destinação desses imóveis à população com capacidade de contrair financiamentos sem subsídios.
Além de regulamentar instrumentos urbanísticos e implementar estratégias de política urbana redistributivas, é crucial formular políticas habitacionais diversificadas para promover moradia digna às classes populares. Soluções pouco praticadas na metrópole de Curitiba, como a demarcação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e os programas de locação social, possibilitariam ao Estado ofertar habitação em áreas centrais e bem localizadas para as famílias mais vulneráveis.
O zoneamento inclusivo das ZEIS
A reversão da lógica excludente do atual zoneamento pode começar pela demarcação de ZEIS em áreas bem localizadas.
ZEIS em áreas ocupadas são importantes para promover a urbanização integral das favelas, garantir a segurança da posse e a permanência de seus moradores nos assentamentos. Ao demarcá-las, o poder público reconhece a ocupação desses territórios populares e estabelece diretrizes para urbanizá-los, garantindo o acesso a serviços públicos essenciais, além de melhorias na infraestrutura urbana e social.
Esse tipo de ZEIS também contribui no enfrentamento das desigualdades intraurbanas, pois muitas favelas estão melhor localizadas que os conjuntos habitacionais periféricos.
As ZEIS em imóveis vazios ou subutilizados permitem a inclusão de moradias populares em áreas ociosas e bem localizadas, por meio da destinação desses espaços à Habitação de Interesse Social. Além disso, ocupam de modo mais racional e equitativo as áreas que já receberam investimentos em urbanização.
No entanto, as ZEIS têm sido pouco utilizadas pelos municípios na RMC. Segundo a pesquisa de necessidades habitacionais do Paraná de 2023, divulgada pela Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar), 15 dos 29 municípios demarcaram ZEIS em áreas ocupadas e apenas 7 as instituíram em áreas vazias.
Programas de locação social como alternativa
Para combater a mercantilização, o rentismo e a financeirização da habitação, os programas de locação social são uma opção para políticas habitacionais inclusivas. Embora pouco explorados no Brasil, eles têm sido utilizados por outros países para oferecer moradia popular por meio de aluguéis subsidiados, eliminando a necessidade da compra do imóvel. Esses programas demonstram grande potencial para promover habitação social em áreas urbanas consolidadas e, ao contrário dos programas tradicionais de financiamento, podem constituir uma alternativa mais acessível para grupos vulneráveis específicos, pois não demandam o comprometimento da renda a longo prazo.
Programas de locação social oferecem alternativas viáveis e estratégicas em contexto de crise habitacional como o experimentado. Em 2019, mais de três milhões de famílias com renda familiar inferior a três salários mínimos destinaram mais de 30% da renda mensal ao pagamento do aluguel, compondo parte do déficit habitacional. Essa situação é agravada em Curitiba, classificada em 2023 como a segunda cidade do país com os aluguéis mais elevados, segundo Imovelweb e Quinto Andar.
Esses programas atuam em um importante indicador do déficit habitacional qualitativo – o ônus excessivo com o aluguel. Além disso, têm potencial para fomentar o uso racional e equitativo da cidade, pela utilização dos domicílios vagos, que conforme o último Censo, cresceram na metrópole de Curitiba entre 2010 e 2022. Possibilitam também o desenho de políticas habitacionais flexíveis, pelo uso de imóveis subutilizados, públicos e privados, em áreas infraestruturadas.
Como não visam a aquisição da habitação, os programas de locação social compreendem a moradia como um direito, diferindo do modelo de política direcionada à aquisição de uma mercadoria, restrita àqueles com renda para se tornarem proprietários.
Nesta matéria iluminamos a urgência de que as novas gestões municipais implementem políticas urbanas redistributivas e políticas de habitação de interesse social diversificadas, referenciadas no direito à moradia. Além disso, os governos precisam incluir a participação social autêntica na formulação das políticas urbanas e promover a articulação interfederativa, pois, como veremos na matéria da próxima semana, não será possível enfrentar a questão da moradia na RMC olhando apenas para dentro de cada município.
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Minibiografia da(o)s autora(e)s
Constança Lacerda Camargo é Arquiteta e Urbanista. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná (PPU/UFPR). Compõe as equipes da Ambiens Sociedade Cooperativa e do Estúdio Centro Arquitetura e Urbanismo. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.
Eduardo de Souza Ransolim é Arquiteto e Urbanista, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná (PPU/UFPR). Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.
Giovanna Kapasi Tramujas é Arquiteta e Urbanista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná (PPU/UFPR). Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.
Kelly da Luz de Lima é bacharela em Direito, pós-graduada em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal (ESMAFE), pós-graduada em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade de São Paulo (USP) e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná (PPU/UFPR). Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.
Madianita Nunes da Silva é Arquiteta e Urbanista, Mestre e Doutora em Geografia pela UFPR, com Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da UFABC, Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles e o Laboratório de Habitação e Urbanismo (LAHURB) da UFPR.