Biodiversidade é um dos elementos para deixar o sistema de produção mais adaptado e resistente
Mesmo sem um levantamento oficial do impacto da enchente na produção agroecológica do Rio Grande do Sul, a localização da tragédia indica a perda de aproximadamente metade da colheita do primeiro semestre. A projeção é de Laércio Meirelles, engenheiro agrônomo e integrante da Rede Ecovida, que reúne 436 grupos de agricultoras/es, 2.848 famílias e 20 organizações sociais do Rio Grande do Sul.
Segundo Meirelles, que também faz parte da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), as regiões do estado que concentram o maior número de agricultoras/es agroecológicas/os foram atingidas: Serra Gaúcha, Vale do Caí, Vale dos Sinos, Grande Porto Alegre, Sul de Porto Alegre. "Seguramente mais de 50% da produção agroecológica do primeiro semestre foi perdida", afirma ele.
Áreas de assentamentos que são grandes produtoras de arroz orgânico e hortaliças ficaram totalmente submersas, afetando drasticamente a produção. Meirelles explica que embora já tenha passado a época da colheita, as frutas da região da Serra Gaúcha também foram atingidas, pois são cultivos bastante delicados, que podem ter sido afetados na etapa de separação após a colheita ou no armazenamento.
Embora a maior parte do território do Rio Grande do Sul seja ocupada por monoculturas produtoras de grãos, mais de 80% dos seus estabelecimentos agropecuários são considerados "agricultura familiar", representando aproximadamente um quarto de toda a área cultivada no estado, segundo dados do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
O estado já deu vários exemplos de resiliência agroecológica nos últimos eventos climáticos severos na região. Meirelles destaca os pomares agroflorestais no litoral norte do Rio Grande do Sul. "Nos eventos climáticos em que houve um vento muito intenso, por exemplo, os bananais agroflorestais resistiram muito melhor do que aqueles que são bananais a sol, ou seja, monocultivo de banana", ele explica.
A propriedade agroecológica é naturalmente mais resiliente porque a biodiversidade é um dos elementos básicos para deixar o sistema de produção mais adaptado e resistente às adversidades. Segundo Meirelles, esta é uma das formas de resiliência agroecológica. No entanto, ele acredita que estamos aprendendo com a enchente de Porto Alegre que uma região toda submersa não apresenta a resiliência agroecológica como conhecemos, mas, sim, um outro nível de resiliência, que é a resiliência social.
"Quando a propriedade fica toda embaixo d'água, como ficou agora, perde-se tudo, e, num caos dessa natureza, vemos que a resiliência agroecológica mora na dinâmica social", avalia Meirelles. A propriedade agroecológica é naturalmente mais resiliente porque a biodiversidade é um dos elementos básicos para deixar o sistema de produção mais adaptado e resistente às adversidades.
Para Meirelles, tem sido muito interessante acompanhar a solidariedade brasileira no momento atual e observar que essa resiliência que surge com a organização social vai chegar, por meio das políticas públicas, para todas as famílias, não só as agroecológicas. "As famílias agroecológicas que estão em feiras, que vendem o seu produto toda semana diretamente para o consumidor, ou que fazem parte de um sistema participativo de garantia, onde os consumidores e agricultores de outras regiões também estão envolvidos, faz com que tenham uma rede de proteção social mais ativa, que pode ser chamada de resiliência social", diz ele.
Ele conta que, neste momento, todos têm recebido pessoas em suas casas num raio de até 200 quilômetros de Porto Alegre. A Rede Ecovida está avaliando a realização de mutirões com o apoio de agricultoras/es do Paraná e Santa Catarina, que já se dispuseram. Também já estão incentivando a produção de mudas e sementes para doação às famílias atingidas. "O grande drama, agora, será a reconstrução da capacidade produtiva das famílias", conclui Meirelles.
Além disso, o impacto da tragédia em um estado da federação está colocando em evidência para todo o país a importância do debate sobre o uso da terra e os sistemas alimentares: 75% das emissões de CO2 no Brasil, que estão na raiz da mudança climática e dos eventos extremos, estão vinculadas ao nosso modelo agrícola exportador, segundo dados dos IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). O cálculo, segundo Letícia Tura, integrante da ONG Fase e do Grupo de Trabalho (GT) Justiça Climática e Agroecologia, da ANA, não inclui toda a cadeia de produção, transporte em circuitos longos de comercialização, abastecimento, insumos e até mesmo os agrotóxicos e fertilizantes derivados de combustíveis fósseis, que são os principais responsáveis pelas mudanças climáticas.
"O mais contraditório da enchente é que, apesar de toda essa inundação, está faltando água potável pras pessoas beberem. Então, a gente vê a relação entre a questão climática e a questão da água mostrando como as coisas estão todas interligadas", reflete Tura. "No RS, há grandes extensões de plantios, monocultura de eucalipto, pinus, soja, milho, que são grandes consumidores de água, além do alto consumo de água pela pecuária. Além disso, vemos muitos outros pontos importantes impactando a região, como a flexibilização da legislação ambiental em curso no Brasil, em especial do Rio Grande do Sul."
Edição: Thalita Pires