A gente vive um país onde a memória é realmente descartada, sobretudo das pessoas negras
Neste final de semana, durante a programação da Virada Cultural de São Paulo, Anelis Assumpção sobe ao palco do Sesc Belenzinho para apresentar uma homenagem ao seu pai, Itamar Assumpção.
A cantora lançou recentemente o álbum Sal, com participação de Luedji Luna, Céu, Liniker entre outras artistas de renome nacional. Antes disso, com as produções anteriores Taurina (2018), Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa (2011) e Amigos Imaginários (2014), a artista foi premiada em diversas categorias, inclusive de melhor álbum do ano pelo Prêmio Multishow e também pela APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), como artista revelação.
Mesmo com todo este prestígio de trabalho autoral, Anelis Assumpção não abre mão de cantar seu pai.
“Quando eu entendi que a gente vive um país onde a memória é realmente descartada, sobretudo das pessoas negras, virou uma outra honra pra mim, maior do que simplesmente ser a filha do Itamar”, revela a cantora em entrevista ao programa Bem Viver desta quinta-feira (16).
Mas não se trata, apenas, de levar adiante um legado familiar. Por estas mesmas motivações, Anelis realiza uma homenagem a Bob Marley e Peter Tosh.
“Eu acho que meu lugar de intérprete, hoje, na música, está quase como uma figura que está tentando trazer, através da interpretação, a possibilidade de memórias que estão frágeis”, explica.
“É claro que o Bob Marley não é uma memória frágil, no sentido de que o mundo inteiro conhece o Marley. Ela é frágil porque esse mesmo mundo que conhece o Marley não conhece a sua história, não sabe nem onde fica aquela ilha [Jamaica], não sabe o que é o rastafarismo, não entende o uso do canábico com conexão religiosa.”
Na entrevista, Anelis Assumpção conta também sobre o lançamento do museu virtual Itamar Assumpção, o primeiro com tradução em iorubá, sobre a saga de buscar os óculos roubados do seu pai e também a relação com a família.
Brasil de Fato: Como você encara apresentar Itamar Assumpção? É algo que parte de você de forma natural? Ou vem como uma responsabilidade, uma obrigação?
Anelis Assumpção: Olha, faz 20 anos que meu pai faleceu, e ao longo desses anos todos já foi um pouco de cada coisa dessas. Já foi uma obrigação, um medo dessa obra ser esquecida. Já tive uma saudade por sentir muita falta e, através da música, me sentir perto novamente daquela pessoa, daquela existência. Já foi uma encomenda de fora para dentro.
Enfim, eu acho que é muito natural isso. É uma mistura de muitas coisas. Não é?
Eu tenho o meu trabalho e acho que, cada vez que eu firmo mais o meu trabalho artístico, eu organizo melhor como eu me relacionava com essa memória.
E também eu fui mudando do campo da homenagem para o campo da importância da memória e do acervo e da preservação.
Eu saio de um lugar um pouco mais romântico e vou para um lugar mais técnico e quase uma ciência social mesmo, de compreender que essa herança não é só minha, que o que eu herdo são códigos genéticos. Todo o resto é de todo mundo, é algo que eu me sinto responsável em dividir e sobretudo estimular o conhecimento
Itamar é uma figura com uma contribuição social e cultural gigantesca para a construção do Brasil.
Esse show que eu vou fazer no Sesc Belenzinho foi um show convidado. Eu fui convidada a fazer esse show cantando músicas do meu pai, porque a unidade [do Sesc] nesse final de semana da Virada [Cultural], vai fazer uma homenagem em toda a programação, voltada à zona leste de São Paulo e à cidade de São Paulo.
A São Paulo cantada, a São Paulo que aparece no samba-enredo, no rap, no MPB, no pagode, a cidade contada a partir das artes. Eles vão fazer uma programação voltada para esse aspecto com um recorte um pouco mais estreito em relação à zona leste e por isso, então, fica uma homenagem sobre homenagem.
O Itamar morou na [zona] leste e foi um grande artista que escreveu sobre São Paulo ao longo de toda a obra, de seus 12 discos lançados. Todos os discos têm canções falando de São Paulo, além de outras textos e outras manifestações em relação à cidade
É sempre muito prazeroso cantar ele, olhar para as músicas de novo, enfim, criar novos arranjos e começar a poder colocar a minha identidade dentro dessa interpretação.
Além das interpretações de Itamar, você também foi responsável por lançar o Museu Itamar Assumpção e também foi uma grande defensora da estátua feita em homenagem ao seu pai, inaugurada em 2020, no bairro da Penha. Essas ações são, de certa forma, uma maneira de você mostrar que está cumprindo seu papel como filha-artista para poder ter liberdade de seguir na sua carreira autoral?
Eu acho que pode ser. Não é consciente, de fato, esse movimento. E nem fui eu quem fiz acontecer, foi um movimento da própria Secretaria de Patrimônio que se viu num momento social encurralada em relação à representatividade de figuras negras no campo do patrimônio na maior cidade da América Latina, e aí tiveram que começar esse movimento de reparação, trazendo personalidades negras para as estátuas da cidade.
Claro, naquele momento eu também estava inaugurando o Museu. Inclusive, o Museu é muito importante, é o primeiro museu virtual de um artista negro, é o primeiro museu com tradução em iorubá.
Porque aí eu vou para um outro campo de trabalho, que é o museal, que não é da música, é de um outro pensamento de preservação, cuidado e importância disso. É outro mundo totalmente.
Então não existe exatamente um limite entre a minha existência. A minha existência está muito diluída nesses dois mundos. É claro que eu tenho períodos em que eu preciso observar um pouco mais a minha escrita, a minha pesquisa, às vezes eu estou muito misturada, nesse trabalho, nesse lugar.
Por isso que de quando em quando eu falo "ah, vou fazer um disco, eu vou inventar um outro [trabalho]".
Mas quando eu vou fazer um show do Peter Tosh, por exemplo, cantando Peter Tosh, é um lugar que é impossível eu não criar uma intersecção com o que eu já faço com o meu pai.
É uma referência, um respeito imenso às intersecções de negritude, de perseguições políticas.
Mas me traz muita liberdade. Eu acho que isso é uma coisa muito positiva, que também é a maturidade que vai me dando. Eu me sinto mais livre ao passo que o museu cresce, que o Itamar cresce.
É muito bonito ver que, desde que a gente começou a trabalhar a memória dele em 2005 com o songbook, depois uma publicação de um livro, depois um documentário, depois a caixa preta que foi lançada pelo selo Sesc, que é uma caixa preta com todos os discos dele remasterizados, mais dois discos inéditos produzidos postumamente, especialmente para a caixa.
Então, eu já realizei muitas coisas antes do Museu e ao passo que cada uma vai acontecendo, eu vou me sentindo mais livre mesmo, mais leve.
E é bonito ver que hoje, nas plataformas digitais, o Itamar tem uma conquista de ouvintes. Ainda há muito o que ser feito, ainda muita gente pra conhecer esse artista. De um Brasil, de África, de Europa, de tudo.
Quando eu entendi que a gente vive um país onde a memória é realmente descartada, sobretudo das pessoas negras, virou uma outra honra pra mim, maior do que simplesmente ser a filha do Itamar.
Você não lançou muitos álbuns ao longo da sua carreira, mas quase todos foram premiados e sempre muito reconhecidos, como Taurina, Sou Suspeita, Estou Sujeita e Não Sou Santa. Mas mesmo tendo essa legitimidade da música autoral, você segue apostando em interpretações, como é o caso do Peter Tosh e do Bob Marley também. Existe aí uma luta pelo reconhecimento da artista intérprete?
Eu acho que sim e acho que tem a ver com esse lugar. Eu não sou uma intérprete e ponto, que vai gravar ou cantar qualquer compositor ou qualquer artista.
Eu acho que meu lugar de intérprete, hoje, na música, está quase como uma figura que está tentando trazer, através da interpretação, a possibilidade de memórias que estão frágeis.
É claro que o Bob Marley não é uma memória frágil, no sentido de que o mundo inteiro conhece o Marley. Ela é frágil porque esse mesmo mundo que conhece o Marley não conhece a sua história, não sabe nem onde fica aquela ilha [Jamaica], não sabe o que é o rastafarismo, não entende o uso do canábico com conexão religiosa.
Então a gente deturpou essa memória. O pop faz isso, ele pega um artista dessa grandeza e ele condensa, num formato que todo mundo possa compreender.
A associação com a cannabis é sempre muito preconceituosa, um lugar que coloca o rasta como um vagabundo, um hippie sem emprego, que não quer fazer nada da vida, só fumar maconha o dia inteiro.
A gente também está sempre corroborando essas interpretações preconceituosas sobre as histórias negras no mundo.
Então, quando eu canto Bob Marley não é só porque eu amo e respeito muito aquela obra, é porque eu acredito que tem muita gente que precisa entender o que é ser rasta.
No caso do Tosh ainda mais, ele faz um disco inteiro falando sobre a legalização [da maconha], do ponto de vista político. A gente tá falando de um disco que tem 50 anos, feito em um dos lugares mais violentos do mundo contra a população negra.
Eu fico pensando como meus filhos e as novas gerações se relacionam com essa memória? Com essa história? A gente está falando de uma ilha muito pequena no mundo. Como é que foi produzir os dois caras mais populares do reggae?
Você parece ter um costume parecido com o do seu pai de levar os filhos para subir no palco desde jovens, né?
Eu acho que é bem natural, familiar, né? A música, claro, ela é um trabalho que vai mexer com outras sensações, a gente tem um outro jeito de se organizar profissionalmente, de aprovar uma rotina, quando o nosso trabalho central é a música, mas é um trabalho.
Eu sempre gosto de falar isso: é como se fosse um negócio, é como se fosse uma padaria da família. É muito natural que a criança que chega da escola todo dia, e a família mora nos fundos e a é padaria na frente. Então, todos os funcionários conhecem aquela criança. Ela [a criança] sempre come um pouquinho, pode pegar qualquer doce, qualquer pão que ela gosta, ela brinca no caixa, às vezes ela brinca de servir.
Eu estou falando da padaria porque eu amo a padaria, mas pode ser um açougue, enfim…
Eu tinha muita intimidade com aquilo. Quando meu pai me chamou pra cantar com ele, eu já entendia tudo como funcionava, eu só não sabia cantar, mas não era uma coisa de outro mundo. E com os meus filhos a mesma coisa. A gente ensaia em casa, eles vêem eu compôr, o Curumim compôr, falar das apresentações, do figurino….
Mas não significa também que eles vão seguir esta carreira. Assim como as crianças que crescem na padaria e falam "putz, legal, mas eu quero ser médica", e massa também, mas com certeza vai saber várias coisas, porque ela cresceu naquele ambiente.
É a Padaria Assumpção, então.
Sim [risos]
Neste ano, em janeiro, faleceu Denise Assumpção, sua tia, irmã de Itamar. Ela cantava com ele, mas principalmente foi uma grande atriz, certo?
Denise é, talvez, uma das maiores atrizes negras do teatro brasileiro. Do teatro — ela falava sempre isso. Era muito bonito que ela falava, quando eu perguntava pra ela qual era a profissão dela, ela falava “atriz de teatro”.
Não era atriz. Ela fazia TV, fazia cinema, mas ela era atriz de teatro, completamente apaixonada e devota, realmente, da linguagem do teatro.
Ela e o meu pai, o meu tio e o outro irmão deles, que também já faleceu, começaram no teatro. Eles eram um trio, tocavam e encenavam em vários espetáculos do interior onde eles viviam.
Quando meu pai vem para São Paulo, ela vem na sequência. Ela vai pro Rio, depois vem pra cá. Passou quase todo o tempo cantando com ele, participando dos espetáculos.
Ela é uma das maiores. Mesmo assim, realmente, infelizmente, uma história parecida com muitas pessoas, muitos artistas, principalmente negros, que é um não reconhecimento em vida mesmo.
E o que isso gera? Isso gerou na Denise, também, um quadro de depressão, um quadro, enfim, de muita dificuldade de vida mesmo, vivendo num limite. Isso é gerado, é causado, não é à toa, não é por acaso, é uma consequência mesmo.
Quando você é uma pessoa que não se submete, é insubmissa e negra, é quase uma condenação.
Então a Denise tem uma coisa a ensinar, acho que para um Brasil inteiro, para uma sociedade que quer olhar e pensar e ter letramento racial. Eu acho que a existência dela tanto artística quanto individual precisa ser conhecida para sempre. Entender onde é que se chega e qual a importância de ter insubmissão.
Quando houve uma exposição do Itamar no Centro Cultural São Paulo uma pessoa furtou o óculos que ele usava e estava exposto na mostra. Ele foi encontrado? Ou o paradeiro segue?
Segue. Não foram encontrados. A gente fez um boletim de ocorrência, abriu ali uma investigação, mas foi encerrado o caso por falta de provas. É muito triste, mas é, também, natural neste Brasil onde a gente não encontra. Não consegue prender em casos comprovados de violência, de roubo, de desvio de dinheiro, de assassinato, de estupro…
Infelizmente o caso foi encerrado. A gente fez uma campanha, inclusive, ela ainda continua no ar, que é “Devolva os óculos” e tem uma caixa postal anônima onde a pessoa poderia deixar, mas não voltou.
Eu não sei também dizer se é um fã. Eu acho que é fã no sentindo de fanático, pode ser alguém que quisesse muito ter alguma coisa dele. Às vezes eu acho que foi só alguma perautice de algum jovem.
Eu já fiquei muito mal por essa história. Hoje em dia eu estou mais tranquila, mas é uma sensação muito ruim, né? E era um dos poucos que a gente tinha. Era um óculos muito especial e um dos poucos. Mas serviu para aprendermos a lição de não tirar essas relíquias de casa sem seguro.
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Edição: Matheus Alves de Almeida