Doutor em Ciências na área de Ecologia de Paisagem e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), o pesquisador Rualdo Menegat foi o coordenador-geral de uma obra notável: o Atlas Ambiental de Porto Alegre. Um monumento pesando 3,2 quilos, publicado em 1998 após quatro anos de trabalho. Inspirou iniciativas semelhantes em 60 cidades do país e do mundo, entre elas Barcelona e Buenos Aires.
Menegat tornou-se um dos maiores conhecedores das questões do solo, subsolo, rios, clima, vegetação, relevo, fauna e presença humana na região Metropolitana e mesmo do território gaúcho. Por isso, Brasil de Fato RS foi ouvi-lo sobre o drama que convulsiona o Rio Grande do Sul.
Brasil de Fato RS: Três anos atrás, em entrevista ao Brasil de Fato, você disse que estávamos dirigindo um carro a 300 km por hora no escuro. O carro do Rio Grande do Sul parece que corria em velocidade ainda maior...
Rualdo Menegat: Naquela oportunidade, utilizei essa analogia para mostrar que enquanto a frequência dos fenômenos climáticos severos iria aumentar nos anos vindouros, a preparação da sociedade para enfrentá-los e prevê-los não conseguia acompanhar. Nesse caso, valeria a política da precaução, isto é, abandonar totalmente o uso de carvão e combustíveis fósseis.
Hoje, analisando a catástrofe ambiental-climática no Rio Grande do Sul, vimos como o futuro pode chegar bem antes do que se espera. Um ano depois dos eventos severos que se abateram no Vale Taquari-Antas e na cidade de Porto Alegre, outro, de maior intensidade, abate-se agora sobre o Rio Grande do Sul, sendo tão devastador que se parece com os efeitos de um furacão.
Há algo que devemos aprender: como foi possível a produção de uma catástrofe dessas proporções? Trata-se da maior catástrofe climática em uma região Metropolitana do Hemisfério Sul.
Há cinco fatores que devem estruturar nossa análise para entender a complexidade do fenômeno. O primeiro é o climático em si, qual seja a precipitação de 800 mm de chuva em 4/5 dias principalmente nas terras altas do Planalto Meridional no Noroeste do estado. Essa precipitação severa ocorreu quando, pelo 11º mês consecutivo, tivemos as máximas temperaturas históricas de cada mês. Também em um ano em que as águas do Atlântico estiveram mais quentes assim como o El Niño esteve intensificado.
Se essa precipitação ocorre no oceano Atlântico, ela não oferece riscos. Mas, se ocorrer no continente em locais habitados, essa enorme precipitação pode causar diferentes riscos, dependendo dos quatro fatores seguintes da nossa análise: 2) a geomorfologia, geologia e hidrografia onde se situam as áreas atingidas, que definem o caminho das águas; 3) a integridade dos serviços ecossistêmicos e o uso do solo como fatores que interferem na infiltração e velocidade do escoamento das águas; 4) a capacidade de resposta dos serviços essenciais da infraestrutura do estado e do município frente aos acontecimentos; e 5) capacidade de resposta da defesa civil e da população no momento da crise.
A situação geomorfológica e hidrográfica de Porto Alegre e região Metropolitana é bastante peculiar, e favorece a acumulação de água das chuvas. Vejamos: as chuvas torrenciais que caem na região Nordeste do planalto rapidamente escoam para rios de vales profundos e estreitos, como o Jacuí, Taquari-Antas (que deságua no Jacuí), além do Caí, Sinos e Gravataí. Esses rios rapidamente aumentam seus volumes de água e escoam em alta velocidade desde as terras altas a 800 metros de elevação até as terras baixas no sopé da serra (escarpa Serra Geral). Ali, os vales se abrem e a água inunda uma planície que vai até Porto Alegre.
Todos esses rios convergem para o Delta do Jacuí, em uma espécie de funil que vem das encostas altas. O delta, por sua vez, marca a desembocadura desses rios no lago Guaíba, que está conectado coma laguna dos Patos e esta, por sua vez, ao oceano Atlântico.
Ora, a enxurrada no continente é acompanhada de maré de tempestade e ventos fortes que sopram do sul e sudeste no litoral, fazendo com que o mar suba de um a dois metros e bloqueie o escoamento de água da laguna dos Patos, em Rio grande.
Como todo o sistema de lagoas está interconectado e no nível do mar, a água do lago Guaíba também não escoa e assim, forma-se um gigantesco lago de inundação deltaica onde se situa parte da região Metropolitana de Porto Alegre, onde residem cerca de cinco milhões de habitantes. A região Metropolitana localiza-se em uma área muito sensível à inundações e enchentes, que fazem parte de sua história, sendo a de 1941 a mais notória.
Portanto, esses dois fatores conformam o palco dos acontecimentos, precipitações mais intensas conforme previsto pelo IPCC e uma região que favorece a acumulação de água pela convergência de rios em um delta que se conecta com o sistema costeiro que está no nível do mar.
Qual o papel da grande lavoura empresarial na derrubada das matas ciliares, na ocupação do Pampa, no aumento do uso de agrotóxicos e no assoreamento dos rios e, por consequência, no desastre que estamos vivendo?
Essa pergunta abre o tema sobre o terceiro fator, que diz respeito às condições que a água encontra quando escoa. Isto é, aos serviços ecossistêmicos. Podemos ter duas situações extremas. Uma, em que os serviços ecossistêmicos, que diz respeito à integridade dos rios, matas ciliares, banhados, entre outros, estão completamente desestruturados. Nesse caso, a água escorre sobre o solo, infiltra pouco, e rapidamente flui para os rios e vales profundos. Como a água que escorre sobre as lajotas no box do banheiro, que seca rapidamente depois de desligado o chuveiro.
Outra situação ocorre quando os serviços ecossistêmicos estão estruturados. Nesse caso, a água infiltra no solo em grande quantidade, os banhados encharcam e alimentam aquíferos, as matas detêm a água e também a velocidade das correntes. É como se colocássemos no box do chuveiro um tapete felpudo, que ficaria empapado de água e não secaria de forma rápida.
Nos últimos 20 anos, as políticas públicas foram no sentido de favorecer a maximização do uso do solo por meio do plantio de soja entre outras culturas. As matas ripárias e banhados foram desaparecendo, o que favoreceu o escoamento vertiginoso da maior parte da água da chuva. Assim, rapidamente os rios se avolumem e, nessa enchente, o vale do Taquari-Antas elevou-se 30 metros acima de seu nível normal. No delta do Jacuí, acumularam-se as águas dos quatro grandes rios que afluem para o lago Guaíba, como se fosse quatro enchentes conjuntas!
Qual a importância dos outros dois fatores?
Bem, vimos como os fatores de precipitação, condições geomorfológicas e hidrográficas bem como a desestruturação dos serviços ecossistêmicos concorrem para aumentar a acumulação de água na região Metropolitana de Porto Alegre. Então, esses fatores requerem infraestruturas e programas do estado e do município que consigam enfrentar situações críticas, muitas delas fizeram parte da história das cidades. Não foi isso que vimos nessa enchente.
Os serviços de infraestrutura de serviços essenciais como água e luz são fundamentais em momentos de emergência. Em Porto Alegre, o abastecimento de água foi interrompido, pela inundação das estações de bombeamento de água. No ano passado, a cidade ficou às escuras durante vários dias devido a um forte temporal. As empresas de energia e de abastecimento de água do estado foram sucateadas e privatizadas.
O Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), de Porto Alegre, a quem cabe cuidar do sistema de proteção contra inundações, foi sucateado e incorporado ao Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), cujo plano do prefeito é privatizá-lo.
O resultado é que a infraestrutura de proteção contra inundações e enchentes não funcionou por falta de manutenção. Como resultado, a cidade de Porto Alegre foi sendo inundada e a população foi obrigada a abandonar suas casas e apartamentos abruptamente, sem avisos prévios e de forma desesperada.
Por fim, a Defesa Civil também não estava preparada de forma adequada, sem sistemas de alerta organizados junto com a população moradora das áreas inundáveis. Assim, os impactos foram todos aumentados pelo enorme despreparo dos fatores infraestruturais e de planejamento da inteligência do estado devido às políticas neoliberais do último período.
Estamos ouvindo muito falar em Antropoceno. Me parece que a opinião pública ainda não se acostumou com essa palavra que indica que passamos de uma fase da História para outra, onde a ação humana contra a natureza - desmatamento, por exemplo - tem consequências imensamente mais graves do que a simples perda da cobertura vegetal e da biodiversidade, não?
O Antropoceno é a denominação de uma época do tempo geológico em que ocorre o domínio humano no planeta Terra. Não só as matas ao nosso redor foram derrubadas e os rios poluídos, como a química da atmosfera foi alterada pelas enormes emissões de gases de efeito estufa, como o CO2, que causam o aquecimento global.
A mudança climática é um dos fenômenos que mostra como as atividades humanas passaram a modificar as esferas planetárias. Mas não é o único. A disseminação de resíduos sólidos, como o plástico, ocorre em todos os ecossistemas, inclusive nos marinhos profundos. Por sua vez, as cidades alcançaram gigantismos impressionantes. No Japão, por exemplo, de Tóquio-Yokohama até Kobe, um eixo de apenas 600 km, habitam cerca de 66 milhões de pessoas.
São cordilheiras de megacidades, que consomem todos os tipos de materiais da Terra. Desde 1900 até hoje, a produção global de alumínio foi cerca de 500 milhões de toneladas. Se fizéssemos uma enorme folha de alumínio, como este que se utiliza na cozinha para embalar alimentos, seria possível cobrir toda a superfície do Brasil. Já a produção de concreto desde 1930 até hoje foi de 550 bilhões de toneladas. Grande parte do concreto é composta de cascalho e areia extraída dos rios, às custas da desestruturação dos ecossistemas hídricos naturais.
Portanto, devemos repensar profundamente as bases de nosso processo civilizatório. As cidades, por exemplo, deveriam ser menos parasitárias, passando a produzir alimentos e reciclando mais resíduos, inclusive os orgânicos. A agricultura, por sua vez, deveria ser regenerativa, cuidando do solo, dos ecossistemas e produzindo alimentos saudáveis sem agrotóxicos.
Há uma afirmação – nunca desmentida – de que para os oito bilhões de habitantes da Terra desfrutarem de um status de consumo similar ao dos EUA e da Europa ocidental seriam necessários cinco planetas iguais ao nosso. O que coloca outra questão: como o capitalismo se baseia no consumo infinito e cada vez maior, é um sistema econômico que colide com a ideia de sobrevivência humana. Ou não?
O Antropoceno nos mostra, então, que há limites claros para habitar neste planeta. Até pouco tempo, cultivou-se o dogma de que poderíamos utilizar os recursos naturais de modo ilimitado. Mas cada recurso – ferro, cobre, areia, madeira, animais – é um pequeno componente de um sistema local, de uma paisagem. Não há como retirar um recurso sem produzir mudanças locais.
Quando isso é feito de forma desenfreada, desestruturam-se os sistemas em escalas cada vez mais crescentes, até que toda a biosfera passe a ficar desestruturada. A perda da biodiversidade é um indicador da desestruturação. Sempre somos levados a pensar que apenas uma flor seja algo sensível. Mas os grandes sistemas, como a biosfera e o clima, também são sensíveis, isto é, podem desestruturar-se.
Porém, a escala da desestruturação é outra, planetária. Vamos ter que, cada vez mais, lidar com essa gigantesca escala. Isso quer dizer o Antropoceno. Adentrar em um tempo que precisamos lidar com uma escala que em nenhum outro período da história humana foi revelada. O planeta Terra não é uma máquina que opera sempre da mesma maneira e, portanto, repõe o que retiramos dele.
Ele tem vários modos de operação, que ficaram registrados em sua memória, que são as camadas rochosas. Os geólogos ao analisarem essas camadas identificam que algumas delas contém imensos estoques de energia, como o carvão e petróleo, que armazenam CO2 retirado de atmosferas antigas da Terra. Devolver esse CO2 para a atmosfera por meio da queima de combustíveis fósseis, significa fazer retornar essa energia para o sistema, aumentando sua desordem, levando o sistema a operar diferentemente. Agora veja, essa mudança pode colocar em risco toda nossa estrutura civilizatória, que está baseada em um modo de operação do sistema Terra.
Nos últimos anos, tivemos uma ascensão do negacionismo que se expressa em várias frentes inclusive contestando verdades científicas – tipo “A Terra é plana” ou “Vacina causa Aids”. Como homem de ciência, como vê, agora, o ataque da ultradireita à tais verdades científicas e, no caso específico, à existência do aquecimento global e das mudanças climáticas em curso? Em outras palavras, quanto vai nos custar, enquanto sociedade, tamanho negacionismo?
Essa é uma questão muito importante. Veja que o avanço das políticas neoliberais que desmantelaram a infraestrutura do estado e debilitaram a capacidade social de enfrentar catástrofes climáticas como a do RS foi acompanhada de um movimento negacionista que desinforma sobre a emergência climática e cria folclores como o da Terra plana como elementos de distração.
Além disso, tal movimento é acompanhado de um profundo ataque à educação, aos professores e às universidades. Trata-se de um vigoroso ataque global ao conhecimento racional. Agora veja: um dos principais efeitos da catástrofe do ponto de vista político e social é prostrar a população, deixá-la impotente e desesperada diante dos acontecimentos, pois ela não dispôs de infraestrutura dos serviços essenciais que o estado deveria oferecer.
Tampouco ela foi preparada por alertas para que pudesse decidir com antecipação suas estratégias e movimentos de proteção. Ela ficou desamparada. Ou seja, todo o conhecimento técnico e científico que temos para enfrentar essas situações foi interditado pelo Estado mínimo e pelas políticas públicas dos governantes estadual e de Porto Alegre.
O que sobra para a população, neste caso, são as profecias, que pouco ajudam em uma hora dessas. Por isso, o negacionismo passa a ser uma importante política de interdição do conhecimento e uma peça chave nesse jogo sórdido.
Parece que “passar a boiada” por cima da legislação ambiental expondo a sociedade a desastres climáticos e ambientais tem sido propósito de grande parte do governo e da Assembleia gaúcha e do Congresso, onde predomina uma maioria anti-ambientalista. Você acha que o caso do Rio Grande pode mudar essa direção? Qual seria o papel da sociedade nessa mudança?
O papel da sociedade é fundamental. O que estamos aprendendo com todo esse sofrimento causado pela catástrofe climática é que era possível ter enfrentado tudo isso em outras condições. Pelo menos com o sistema de proteção contra inundações funcionando.
Parece que o Estado foi desmontado peça por peça e, além disso, sua inteligência foi suprimida. O conhecimento e suas instituições, principalmente universidades e escolas, terão um papel essencial para mudar o cenário.
Em primeiro lugar, elas são um estoque de inteligência e conhecimento que pode fazer a diferença para enfrentar as mudanças ambientais e climáticas, encorajando a sociedade. Em segundo lugar, elas podem dirigir seus esforços para ajudar na solução de problemas e construção de sistemas de alerta e prevenção e, com isso, formar técnicos e profissionais com um pensamento voltado para as questões do século 21.
Nesse sentido, os programas de extensão universitária deverão ser estruturados para entender as questões ambientais e climáticas em cada lugar do Brasil. Com isso, é possível construir uma inteligência social do lugar, que integre as comunidades com as redes de tecnologia e conhecimento para enfrentar cada situação em particular. Essa inteligência social do lugar, reunindo universidades e escolas, ONGs e ambientalistas, saberes tradicionais e locais, é estratégica para as futuras gerações, pois poderão orientar as ações de regeneração dos ecossistemas e mitigação de impactos ao mesmo tempo que preparam ações de prevenção e alertas.
Se nada mudar, que legado vamos deixar para filhos, netos e quem mais pisar nesse planeta?
Não temos a opção de nada mudar. Isso seria o mesmo que deixar os coletes salva-vidas trancados enquanto o navio afunda. Uma questão fundamental nesse século que adentra no Antropoceno é a mudança do sentido da palavra "sobrevivência", até então vista como a conquista de um emprego ou de uma renda para pagar as contas do mês.
Mas agora, ela inclui um sentido mais profundo, que é enxergar o que significa sobreviver – local, regional e planetariamente – de modo sistêmico, considerando de forma mais integrada as ações e suas consequências na sociedade e no ambiente.
Nosso legado enquanto geração é, então, mostrar que as catástrofes não são um destino, uma fatalidade. Temos condições sociais, conhecimento e técnicas para enfrentá-las. Essas condições são aquelas capazes de informar e dar a nossos filhos um sentido de coragem para viverem neste mundo inquieto.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira