ANÁLISE

As inusitadas pautas do novo governo de extrema direita da Holanda

Além de propostas curiosas, gestão mais reacionária da história do país quer poluir mais e endurecer contra migrantes

Amsterdã (Holanda) |
Geert Wilders e sua direita radical conseguiram maioria, mas ele não será o novo premiê - AFP

Depois de seis meses de negociação, os quatro principais partidos de centro-direita e direita radical da Holanda anunciaram o programa do novo governo, sem, porém, revelar, como é de costume, o nome do próximo primeiro-ministro. O lema do novo governo é: Esperança, Coragem e Orgulho. Foi prometido ainda que “um novo vento soprará e o sol brilhará novamente”.

As eleições nacionais holandesas de 22 de novembro do ano passado deram uma clara vitória à direita, mas em contexto de grande pulverização, com 27 partidos se candidatando, dos quais 15 conseguiram representação no parlamento. O voto não é obrigatório, mas quase 78% dos eleitores compareceram para eleger os 150 deputados.

O sistema na Holanda é de monarquia parlamentar. A direita radical (PVV), liderada por Geert Wilders, conseguiu pela primeira vez o primeiro lugar com 37 deputados. Para formar uma maioria, iniciou negociações com os tradicionais partidos de centro direita liberais (VVD), embora estes sempre tenham dito que não participariam de governo com a extrema direita.

Por fim, juntam-se um partido novo que expressa o protesto dos agricultores contra as medidas ecológicas e de transição energética (BBB) e outro partido novato, que se situa no centro-direita liberal (NSC). Juntos, eles têm 88 deputados. Se conseguirem manter a unidade, terão uma maioria folgada.

Em todo caso, será o governo mais à direita que os Países Baixos já conheceram, com lideranças atípicas e pautas inusitadas, embora com apelo popular, como aumentar a velocidade máxima nas autoestradas para 130 km/h e outras de difícil implementação, como mudar a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém.

O país corre o risco de ter o pior de cada um dessa fauna: retrocesso nas medidas ambientais e medidas antimigração (PVV e BBB) que implicam um reposicionamento do país na União Europeia. Ao mesmo tempo, há de se duvidar até que ponto a agenda social de segurança da direita radical conseguirá se sobrepor à política neoliberal do centro-direita (VVD). Wilders prometeu diminuir novamente a idade mínima de aposentadoria de 67,5 para 65 anos (medida aprovada no governo do centro-direita), facilitar a renegociação das dívidas das camadas mais pobres e aumentar subsídios para habitação de interesse social. O acordo de governo anunciou a construção de 100 mil novas casas. Outras propostas são ampliar o acesso a creches gratuitas e diminuir os contratos de trabalho precários, amplamente difundidos em vários setores econômicos.

Aqui é importante entender que uma das diferenças entre a direita radical na Europa e na América Latina é exatamente que aqui ela se mistura com ideias ultraliberais, enquanto no velho continente ela mobiliza o voto popular criticando o impacto negativo para o trabalhador da destruição do estado de bem-estar, inclusive com uma defesa de um nacionalismo econômico. Os vários partidos da direita radical na Holanda, dos quais os dois principais farão parte do novo governo, ganharam voto popular sobretudo nas áreas fora dos principais centros urbanos com uma pauta de protesto em torno de quatro pontos:

1) Contra o que Wilders chamou de “tsunami de pedidos de asilo”.

2) Contra a imposição de medidas em defesa do clima, em particular contra as metas de emissão de metano (nitrogênio) pelos agricultores, um dos principais Gases de Efeito Estufa (GEE) na Holanda, e contra os subsídios governamentais à energia renovável e impostos adicionais sobre energia fóssil.

3) Defesa do interesse social do cidadão comum, que teria sido vítima das prioridades e gastos com o acolhimento dos migrantes, os gastos com o clima e uma burocracia ineficiente.

4) Reivindicação do direito de orgulho do país e sua história. Para que pedir desculpas pelo comércio de escravos e exploração colonial? Para que mudar a festa mais tradicional de São Nicolau, celebrada no dia 5 de dezembro, na qual o santo dá presentes às crianças que se comportam bem, enquanto as que se comportam mal recebem punição de seu adjunto negro (Pedro Preto)?

Essas pautas certamente não eram do centro-direita liberal tradicional, mas com o avanço do voto para a direita radical, estes começaram a incluí-las em suas propostas. É importante enfatizar que mais de dois terços da população não votou nesses partidos da direita radical e haveria toda legitimidade política para o centro direita formar um governo com o centro esquerda, que chegou a fazer esse convite publicamente.

Não o fez em grande parte porque o agrupamento de centro esquerda foi o segundo mais votado e, portanto, estaria à frente da coligação, e a direita liberal iria perder mais votos ainda para a direita radical nas próximas eleições. Isso foi, aliás, o principal motivo pelo qual os dois partidos do centro-direita acabaram fechando, depois de quase seis meses de muito vai-e-vem, o novo governo na véspera das eleições europeias de 9 de junho.

Em caso de fracasso, o caminho mais provável era uma nova eleição nacional com mais votos para a direita radical, em detrimento do centro.

O governo enfrentará várias resistências para a implementação da sua agenda, além do conflito entre a ênfase na construção de uma nova segurança nacional (PVV) e o neoliberalismo do VVD. Primeiro, com os servidores públicos.

O governo pretende diminuir o total de servidores públicos nacionais em quase 20%, cortando 25 mil postos de trabalho. O argumento é que, entre 2010 e 2024, o número aumentou de 114 mil para 147 mil, sem contar os milhares de terceirizados e consultores, que no Ministério de Economia, por exemplo, representam, 30% do total. A intenção é também diminuir esses.

Acontece que o aumento se deu exatamente pelas novas tarefas que couberam ao Estado para enfrentar as várias crises, como o efeito da crise do euro, a pandemia, a migração e o clima. Os cortes, portanto, não serão lineares entre as várias áreas, mas como fica a promessa de reconstituir uma segurança social para o trabalhador comum?

O segundo confronto será com a Comissão Europeia, mas isso depende muito da sua nova composição pós-eleições de 9 de junho. Para a Comissão atual, várias propostas anunciadas pelo novo governo holandês são inaceitáveis. Em particular: diminuir a contribuição do país em 1,6 bilhões de euros; exigir o direito de reconstruir uma política nacional para asilo, que exigiria a renegociação do tratado europeu vigente, porque no atual só a Dinamarca tinha negociado essa exceção; e flexibilizar as exigências de emissões que, pelo tratado em vigor, são estabelecidas de forma comunitária pela Comissão.

Outro retrocesso já anunciado é a diminuição de áreas de proteção ambiental, também estabelecidas no âmbito europeu. A questão aqui é que a direita radical na Europa inteira mudou sua estratégia. Se no passado mobilizavam votos prometendo sair da União Europeia e/ou do euro, depois dos desdobramentos do Brexit, eles optaram por mudar (leia-se: enfraquecer) a UE por dentro, diminuindo as competências da Comissão (braço executivo da UE) e restabelecendo o primado das competências e decisões nacionais. A aposta agora é que o bloco da direita radical, com todas suas divergências (por exemplo, com relação à guerra na Ucrânia), ganhe votos suficientes para obrigar o centro direita a formar, em nível europeu, uma nova composição política da Comissão.

Caso isso se verifique, o governo holandês estaria em plena sintonia com as autoridades em Bruxelas; caso contrário, a Holanda se juntaria à Hungria e à Polônia na lista dos países complicados, o que seria uma grande novidade considerando que o país foi pioneiro e árduo defensor da integração europeia e seu fortalecimento.

O terceiro confronto será com o movimento ambientalista, que estará na defensiva em todas as frentes, podendo recorrer à justiça para impedir os retrocessos mais radicais e tensionar a coesão do novo governo, já que se trata de um ponto de divergência interna entre o centro direita e a direita radical, como foi visível não só na campanha, mas também nos meses de negociação para se chegar a um acordo. Por enquanto, o novo acordo promete rever as metas para a emissão do metano, diminuir o preço do diesel, aumentar a velocidade máxima permitida e terminar o apoio governamental a projetos com biomassa, entre outros.

Uma curiosidade que deve ser ressaltada ainda é que uma das condicionantes para um novo acordo foi que o próprio Geert Wilders não assumirá o cargo de primeiro-ministro, algo inédito na história política do país. E isso se deve sobretudo às pressões nem um pouco veladas de empresas líderes que consideraram que isso provocaria uma distorção na imagem do país com efeito negativo para o ambiente de negócios. Ou seja, pode governar, pode indicar o novo primeiro-ministro, mas não pode mostrar a cara. O fato de que Wilders aceitou essa condição, sabendo que ganharia mais votos ainda se provocasse novas eleições, mostra que o pragmatismo holandês tem espaço até na direita radical.

E a esquerda? Diante do avanço da direita, houve já desde as últimas eleições municipais um movimento considerado impossível até o passado recente: um agrupamento das duas principais forças de centro-esquerda (PvdA) e esquerda radical ecológica (Groen-Links), mantendo somente um partido da esquerda radical com representação individual no parlamento (SP). Há que se observar que o próprio partido Groen-Links já foi fruto no passado de uma fusão entre quatro partidos da esquerda radical com representação no parlamento, entre os quais o partido comunista. Esse novo agrupamento já deu bons frutos nas eleições municipais e garantiu que a esquerda ficasse em segundo lugar nas eleições nacionais, à frente da direita liberal. De fato, basicamente todas as grandes cidades são administradas pelo centro esquerda. Justo os lugares onde se concentram os migrantes, diga-se de passagem. Em Amsterdam, por exemplo, o PVV não chega a 10%. Essas grandes cidades devem continuar com suas políticas referentes ao clima, por exemplo, ou como subsídios e apoio à cultura, outra política fortemente criticada pela direita radical que considera política cultural algo que favorece somente as elites.

Contudo, além da resistência, á esquerda e ao centro esquerda, tanto os partidos, sindicatos e organizações sociais, serão provocados a pensar e apresentar alternativas com apelo social atacando a raiz do descontentamento popular que foi mobilizado de forma populista e eficaz pela direita radical. As eleições europeias serão um primeiro termômetro.

*Giorgio Romano Schutte é professor de Relações Internacionais da UFABC e integrante do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB).

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho