'REVITALIZAÇÃO'

Transferência da sede do governo de SP para o centro da capital aprofunda gentrificação, denunciam moradores e movimentos

'A classe baixa vai ficar aonde, na rua?', questiona uma das 800 pessoas que podem ser desabrigadas pelo projeto

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Simone de Fátima Ferreira vive em um cortiço localizado na Alameda Barão de Piracicaba, no centro de São Paulo - Beatriz Drague Ramos

Aos 51 anos, a camareira Simone de Fátima Ferreira foi pega de surpresa com a possibilidade de ficar sem um local para morar. Ela vive em um cortiço localizado na alameda Barão de Piracicaba, no centro de São Paulo, que deverá ser desocupado por conta da transferência da sede administrativa do governo estadual do Morumbi, na zona sul, para o bairro de Campos Elíseos.

“Agora vem esse projeto do governador que pegou a gente de surpresa. Fala que vai fazer isso, vai fazer aquilo. Só que eles não dizem o que vai acontecer com as pessoas que moram aqui”, reclama Ferreira.

O local em que ela vive, com ajuda do auxílio aluguel de R$ 400, é um ponto de apoio para a espera de um apartamento prometido pelo então prefeito João Doria em 2017, quando a prefeitura desapropriou os imóveis das quadras 37 e 38 na Rua Helvetia. Há sete anos ela aguarda uma unidade habitacional na região. "A gente só ouve promessas, promessas, promessas e nada de moradia", lamenta. 

O Projeto do Centro Administrativo do Governo do Estado de São Paulo, promovido pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), prevê a transferência de órgãos do estado para o Campos Elíseos. Ao menos 800 pessoas devem perder suas moradias, segundo os dados do Censo do IBGE de 2022. 

Com investimento estimado em quase R$ 4 bilhões, cinco quadras deverão ser demolidas. O objetivo é trazer a população de classe média ao centro, conforme disse o próprio governador em entrevista ao g1. "Então quando ele fala que vai trazer a classe média, eu te pergunto, e a classe baixa vai ficar onde? Na rua?", indaga Ferreira.

Nota técnica publicada em abril, assinada pelo Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) entre outras entidades, apontou que o projeto não respeita as áreas de Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) 3 no Plano Diretor Estratégico de São Paulo. Essas áreas devem ser destinadas à população que já mora no local e obedecer ritos de democracia participativa com a construção de Conselhos Participativos. 

Odair Paulo Togon é professor de história e um dos moradores da quadra 48, que será impactada pelo projeto. Ele critica a forma disponibilizada pelo governo até o momento para participação: um canal para agendar sessões de dúvidas no site da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU).

"Eu fiz o agendamento, fui até lá e foi mais mesmo para fazer campanha desse projeto, porque tirar dúvida mesmo eles não tiraram. Eles falaram para que eu não fique preocupado e que se houver desocupação do prédio eles vão dar indenização no valor de mercado", conta o professor. 


Cecília e Odair vivem em um prédio na quadra 48, que poderá ser desocupada. / Beatriz Drague Ramos/Brasil de Fato

Durante a reunião com os técnicos da CDHU houve ainda um pedido para que a imprensa não fosse procurada, segundo ele. "Inclusive ele comentou comigo pra não ficar muito procurando a imprensa, falando sobre o que está acontecendo. Aí eu falei pra ele que ia falar. Por que eles podem fazer propaganda do projeto e a gente não pode mostrar a realidade?", questionou.

Vizinho de Odair, o músico e professor Sérgio Ricardo Solimando Erache, também se diz preocupado com o empreendimento. "A gente fica num desespero danado. Você não come bem, você não dorme bem, enfim, você fica numa loucura, procurando informações."

A situação das ocupações de moradias do centro também causa receio nos movimentos populares atuantes na área, conforme aponta Benedito Barbosa, advogado da União de Movimentos de Moradia (UMM) e da Central de Movimentos Populares (CMP). "A gente não sabe o que vai acontecer com as ocupações. Com quatro bilhões de reais a gente poderia fazer muita moradia popular no estado de São Paulo, investir em transporte público."

Ele avalia ainda que o projeto pode gerar um grande deslocamento de pessoas da região que não terão como arcar com os custos de aluguéis, por exemplo. "A gente chama de processo de gentrificação desses territórios. Somente o anúncio desse empreendimentos gera um impacto no custo da moradia no entorno e isso é trazido pelo governo sem nenhuma avaliação de impacto social. Praticamente em todas as situações, foi pensado a partir de uma lógica do interesse do capital imobiliário e da expulsão dos mais pobres desse território."


“A gente não sabe o que vai acontecer com as ocupações", diz Benedito Barbosa. / Beatriz Drague Ramos

No dia 10 de maio, mais de 40 organizações apresentaram uma impugnação administrativa solicitando a suspensão imediata do edital para o Concurso Público Nacional de Arquitetura para a implantação do Centro Administrativo do Governo. O documento foi rejeitado.

O texto apontava que o edital contraria legislações municipais e federais e as diretrizes do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) para concursos públicos de arquitetura e urbanismo. As entidades enfatizaram que o projeto ignora as proteções das Zeis 3 e ocorre sem transparência.

Além disso, o projeto também prevê a desativação do Terminal Municipal de Ônibus Princesa Isabel, onde transitam 18 linhas. "Vai tirar o terminal? Muitas mulheres vêm de regiões periféricas para vir ao hospital Pérola Byington. Vai ficar como?", crítica a designer e moradora da região Cecilia Marcondes.

A desativação do terminal de ônibus municipal Princesa Isabel não passou pelas instâncias participativas, destaca a urbanista e pesquisadora do LabCidade Débora Ungaretti. "Qual o impacto de você desativar um terminal de ônibus em uma área tão central? Para onde ele vai? Qual o custo disso? Quem vai arcar com esse custo?"

Especialistas do LabCidade afirmam que o projeto faz parte de uma ação ampla e antiga, a fim de promover a expansão imobiliária para classes altas. Empreendimentos com o pretexto de revitalizar a região datam pelo menos de 2005, como o Nova Luz, interrompido pela Justiça em 2013 ao ser constatada a falta de participação popular em sua elaboração.

Outro exemplo é a "Operação Sufoco", de 2012, que promoveu o deslocamento da chamada Cracolândia para o entorno. Já em 2021, 190 famílias no Campos Elíseos foram removidas de suas casas para a construção do Hospital Pérola Byington. Muitas seguem até hoje sem a moradia prometida pelos órgãos estatais.

Aspectos de raça e classe também atravessam o projeto, afirma Ungaretti. "O governador Tarcísio fala de fixar pessoas, de trazer a classe média. Então na verdade não trata só de um projeto de trazer coisas para o centro, mas também de tirar coisas que estão lá e o que são essas ‘coisas’: são pessoas e formas de morar que não são aceitas e que são colocadas como indesejadas: pensões, cortiços, regiões onde tem população em situação de rua."


Corredor do cortiço em que Simone vive. / Beatriz Drague Ramos

A pesquisadora também chama a atenção para os imóveis ociosos na região que poderiam ser aproveitados. "Já existem historicamente vários projetos para o centro e tem mapeamentos e denúncias de que tem imóveis subutilizados."

A falta de transparência também é um aspecto levantado por Ungaretti, uma vez que o governo já está implementando o projeto desde que publicou o decreto em março deste ano, declarando de utilidade pública cinco quarteirões e lançando o concurso para a escolha de um projeto arquitetônico

"Por mais que seja preliminar, ele já leva em conta diretrizes que foram decididas a portas fechadas, com base em estudos contratados pelo governo do Estado que até agora não foram publicizados e esses estudos tomaram como premissa que essas cinco quadras vão ser inteiramente demolidas", diz Ungaretti.

Diante das críticas apresentadas, mais de 40 organizações apresentaram uma impugnação administrativa solicitando a suspensão imediata do edital para o Concurso Público Nacional de Arquitetura para a implantação do Centro Administrativo do Governo. 

O texto apontava que o edital contraria legislações municipais e federais e as diretrizes do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) para concursos públicos de arquitetura e urbanismo. As entidades enfatizaram que o projeto ignora as proteções das Zeis 3 e ocorre sem transparência. O documento foi rejeitado. 


Área impactada pelo projeto do governador Tarcísio de Freitas. / Pedro Stropassolas

Já na última quinta-feira (16) dezenas de entidades e moradores do Campos Elíseos se reuniram no Armazém do Campo, no centro de São Paulo, para debater o projeto e construir propostas alternativas para a região. Moradores e movimentos populares também deverão se mobilizar em audiência pública no dia 29 de maio, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).

O que diz o governo estadual e a Prefeitura

O Brasil de Fato questionou o governo de São Paulo e a CDHU do estado sobre o projeto, a participação popular e as condições de moradia da população afetada. Em nota, o governo disse apenas que está com um ponto fixo para esclarecimento de dúvidas dos moradores e comerciantes das quadras impactadas mediante agendamento pela internet. 

Disse também que as desapropriações serão de responsabilidade da empresa vencedora de um leilão, previsto para 2025 e que, após essa etapa, o processo de desapropriação será realizado em conformidade com todas as exigências legais. 

A Prefeitura de São Paulo foi indagada sobre os motivos de Ferreira ainda não ter recebido um apartamento. Em nota, a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) disse que se responsabilizou pelo cadastro de 190 famílias em 2017 na região da Rua Helvetia, quadras 37 e 38. Todas foram inseridas no auxílio aluguel no valor de R$ 400 reais e receberão o benefício até o atendimento definitivo com unidade habitacional. Este é o caso da munícipe Simone de Fátima Ferreira, que é beneficiária do auxílio desde 2021.

Segundo a pasta, a CDHU ficou responsável pela seleção e atendimento dessas famílias nos empreendimentos construídos por meio da Parceria Público Privada (PPP), administrada pelo Governo do Estado de São Paulo. A CDHU não respondeu quando ela terá acesso a uma unidade habitacional. 

Edição: Matheus Alves de Almeida