Coluna

A onda neoliberal que afogou o Rio Grande

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Vista aérea de Arroio do Meio após as enchentes devastadoras que atingiram a região do estado do Rio Grande do Sul. - NELSON ALMEIDA / AFP
Marchezan, Leite e Melo rezam pela cartilha do neoliberalismo com uma pegada de arrogância

"Eu quero derrubar o Muro do Cais Mauá, eu gostaria de ser o piloto do trator que irá derrubar o muro". O dono dessa empáfia e dessa fala de 2019 é o ex-prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Junior, do PSDB. Ele nunca esteve sozinho na soberba e na desavença com o muro. Em setembro de 2023, mesmo depois do dilúvio daquele mês, o governador Eduardo Leite, do mesmo partido, também expressou seu desejo de botar abaixo a proteção. Trocaria os três metros de altura atuais por uma mureta junto ao cais de 1,2 metro. Um terceiro personagem, o atual prefeito Sebastião Melo, do MDB, jogou no mesmo time. Namorou a ideia ao ponto de sua liderança no Legislativo local ressuscitar, em 2019, um velho projeto para desmantelar tudo. Teve mais sorte do que juízo e a coisa não foi adiante.

Além de assumirem o risco de uma capital submersa, o que mais tais figuras tem em comum? Todas rezam pela cartilha do neoliberalismo, o que fazem, muitas vezes, com uma pegada de arrogância. Exemplo: Marchezan Jr. menosprezando a participação popular ao decretar que suas reformas seriam feitas pelas elites e que "delegar isso ao 'Seu João' e à 'Dona Maria' é irresponsabilidade". 

O fato mais notável de sua gestão sem 'Seu João' nem 'Dona Maria' foi a perda de R$ 123 milhões do governo federal, dinheiro que serviria para reformar 13 casas de bombas e dragar um arroio. O segundo mais notável foi o fim do Departamento de Esgotos Pluviais, o DEP. Porém, no departamento de diversões públicas, deixou importante legado, com suas exibições ao lado do secretariado dançando em palanques o reggaeton-pop Despacito. 

Companheiro de tucanato, Leite também faz das suas. Mesmo liberando venenos agrícolas proibidos nos países de origem e passando uma motoniveladora sobre o Código Ambiental do Rio Grande do Sul, apresentou-se como ambientalista descafeinado na COP23, em Glasgow. 

Lá, afirmou a urgência da "agenda das mudanças climáticas". Garantiu ainda "nossos compromissos" para com "o planeta onde a gente vive". Cá, despindo o disfarce, abriu a porteira para seus parças do agro pop esburacarem áreas de preservação permanente (APPs).

Leite está longe de ser um tosco explícito como o deputado Alceu Moreira, do MDB – sigla que integra o governo estadual – para quem preocupação com a natureza é coisa de "ambientalóide esquerdopata". Astuto, oculta sua 'porção Alceu Moreira' sob camadas de bom-mocismo marqueteiro, pois aprendeu a dissimular em público o negacionismo ambiental que professa no privado.

Sebastião Melo será um prefeito inesquecível. Todos lembrarão dele sempre que o fedor dos esgotos espancar seus narizes, soprado por marés de podridão. Lembrarão que não consertou comportas e casas de bombas, embora tendo a autarquia responsável mais de R$ 400 milhões em aplicações financeiras. Lembrarão que, assim, expôs a cidade ao avanço da imundície das cloacas, das montanhas de lixo e lodo, de vermes, baratas, ratos e até piranhas e jacarés.

Lembrarão das suas palavras sugerindo às pessoas desesperadas que fossem "para a praia" ou culpando os pobres que moram em áreas de risco pela sorte ingrata. Lembrarão da derrubada de centenas de árvores à beira do Guaíba. E da sua negligência com o conjunto da cidade ao confundir a prefeitura com uma capatazia da especulação imobiliária.

Melo inviabilizou até a poética de seu correligionário, José Fogaça, que compôs a canção Porto Alegre é Demais. Com Melo, a letra passou a soar sarcástica.  O único verso que resiste é "Porto Alegre me dói". 

Entre os devotos que queimam incenso no altar do Mercado não poderia faltar José Ivo Sartori, antecessor de Leite no Palácio Piratini e também do MDB. Seu programa de governo de 2014 é revelador: com 36 páginas, não gastou uma só linha com a questão ambiental.

Com fumaças de esquerda em priscas eras, Sartori fez um cavalo de pau na sua biografia, virou mercadista, e acabou se enturmando com a ultradireita de corte fascista. Aconteceu em 2018 quando, em manotaço de afogado, adotou a marca de fantasia de “Sartonaro”. Perdeu a eleição mas ganhou lugar na história política gaúcha no capítulo dos episódios mais patéticos e grotescos.

Antes disso, aplainou o caminho para Leite ao aniquilar sete fundações estaduais que, com sua capacidade de análise, inteligência e acúmulo de conhecimento, estavam incumbidas de pensar e planejar os rumos do Rio Grande. Tratavam, entre tantos temas, de botânica, zoologia, ciência, tecnologia, economia, planejamento, estatística.

Sob a gerência de Sartori, Leite, Marchezan e Melo, os últimos 10 anos expressaram a primazia das teses neoliberais: redução drástica do Estado, venda de patrimônio, entrega dos espaços públicos para exploração privada, repasse do futuro aos donos do dinheiro, supressão ou degradação das estruturas de defesa do meio ambiente.

Uma agenda regida pelos interesses empresariais e devidamente exaltada pela mídia corporativa que funciona como seu boneco de ventríloquo.  Embora, na hora do aperto, a louvação ao estado mínimo tenha se transfigurado em comovente pedido de socorro ao estado máximo.

Se é impossível contestar o protagonismo das forças da natureza na tragédia do Sul – exasperadas pela ação humana contínua, irracional e predatória – da mesma forma, não é possível encobrir as responsabilidade e as irresponsabilidades na hora de prevenir e reduzir o tamanho da desgraça.

O que o elitismo banhado em negacionismo deixou para Porto Alegre e o Rio Grande foram milhares de ´Seu João` e ´Dona Maria` sem ter onde morar, com suas vidas destroçadas pela inclemência das chuvas e a inépcia de gestores.

Para eles, a mão invisível do mercado apareceu fazendo-lhes figa, condenando-os à perda das lembranças pessoais e dos bens à duras penas adquiridos, ao desabrigo, à dor, ao sofrimento e, no limite, à morte.  

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires