AÇÃO VIOLENTA

PM prende padre e até defensora pública durante expulsão de acampados no MT

Despejo sem ordem judicial de 74 famílias ocorreu nesta segunda (27) em local já destinado a assentamento, em Novo Mundo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Famílias do acampamento União Recanto Cinco Estrelas ocupam fazenda improdutiva Cinco Estrelas, na cidade de Novo Mundo (MT), na madrugada desta segunda (27) - Arquivo pessoal

A Polícia Militar do Mato Grosso prendeu dez trabalhadores sem terra, uma defensora pública e dois representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na manhã desta segunda-feira (27). A ação ocorreu durante o despejo das 74 famílias que haviam ocupado, poucas horas antes, a fazenda Cinco Estrelas, na cidade de Novo Mundo, no norte do estado. Entre os detidos estão a defensora pública Gabriela Beck e o padre Luís Cláudio da Silva.

Acampadas há 20 anos no entorno da fazenda à espera de regularização fundiária, as famílias do acampamento União Recanto Cinco Estrelas denunciam que a expulsão foi feita sem ordem judicial e foi feita com forte truculência policial. Os acampados relatam agressões, apreensão de celulares e revista policial feita por homens em mulheres.

Um homem de 47 anos que mora no entorno da fazenda teria tido a casa invadida e o braço quebrado pelos policiais ao ser algemado. Em nota publicada nesta terça (28), a Polícia Militar do Mato Grosso contesta a versão dos trabalhadores, afirmando que o homem teve o braço lesionado "ao tentar fugir dos policiais e precisou de atendimento médico-hospitalar".

Os trabalhadores afirmam, ainda, que foram impedidos de retirar seus pertences de dentro da fazenda – carros, motos, barracos de lona e bens em geral.

"Eles tomaram meu celular, fizeram eu desbloquear o celular, apagaram todas as coisas que eu tinha filmado e tirado foto e me xingaram de tudo quanto é nome", relata uma mulher de 60 anos de idade ouvida pelo Brasil de Fato. Horas depois, a idosa foi levada a hospital da região após ter sido agredida por um policial, relatam os acampados.

"O negócio tá ficando cada vez mais difícil, mas a Justiça até agora não compareceu", acrescenta outra acampada. Segundo os trabalhadores, algumas crianças e mulheres grávidas "passaram mal" durante o despejo. 

Os nomes dos dez detidos sem terra ainda não foram divulgados.

As famílias estão "debaixo de lona, na beira das estradas" há 20 anos à espera da autorização judicial para que sejam assentadas em definitivo em parte das terras da fazenda. A área já foi destinada à reforma agrária por decisão da primeira instância da Justiça, em 2020, mas um suposto proprietário entrou com recursos, ainda não julgados em segunda instância.

Imagens feitas pelas famílias antes da chegada da Polícia Militar mostram homens tentando invadir o local com trator, enquanto os acampados reagem expulsando o maquinário. 
 
"O temor das famílias é grande devido ao histórico de violações de direitos e violências já vivenciadas, além de terem conhecimento da atuação da Patrulha Rural/Polícia Militar de MT", alerta a CPT em nota. Segundo a organização, a Patrulha Rural tem sido uma das principais precursoras da violência contra acampamentos e assentamentos no estado de Mato Grosso.

Procurado pelo Brasil de Fato, o delegado Geraldo Gezoni Filho informou que a delegacia da cidade de Guarantã do Norte, que também atende as ocorrências do município de Novo Mundo, ainda não recebeu detalhes sobre o caso e que ainda espera a realização de boletim de ocorrência, a ser aberto pela Polícia Militar. Disse, no entanto, que "no estado do Mato Grosso, não se tolera invasões".

A nota da Polícia Militar do Mato Grosso reforça a ideia de "tolerância zero" ao que o órgão definiu como "tentativas de invasão a propriedades rurais". O texto afirma que, "durante a ação, foram apreendidas uma espingarda calibre 20, munições deflagradas, esferas de aço e pólvora e produtos usados na recarga de armas".   


Imagem da ocupação da fazenda improdutiva Cinco Estrelas poucas horas antes do despejo executado pela PM, na cidade de Novo Mundo (MT), nesta segunda (27) / Arquivo pessoal

Impasse quanto à regularização da fazenda  

A fazenda Cinco Estrelas possui cerca de 4,3 mil hectares. Toda essa área foi atribuída à União em 2020 pela Justiça, em decisão de primeira instância. Desse total, 2 mil hectares foram destinados à reforma agrária, para o assentamento das 74 famílias acampadas.

O grileiro que reivindica a fazenda entrou com mandado de segurança pedindo antecipação de tutela das terras. Segundo a CPT, o mandado de segurança já expirou, mas o suposto proprietário segue alegando propriedade da fazenda.  

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já emitiu, em abril de 2024, portaria de assentamento definitivo das 74 famílias no local, mas a segunda instância da Justiça – representada pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 1º Região, em Brasília – ainda não julgou os mandados de segurança e de apelação feitos pelo grileiro.

A fazenda Cinco Estrelas corresponde à área onde o Incra criou, em abril deste ano, o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Novo Mundo – PDS Novo Mundo.

Região de Gleba Nhandú

Com cerca de 211 mil hectares, a região de Gleba Nhandú, no norte de Mato Grosso, engloba o Parque Estadual do Cristalino e diversas propriedades rurais. Algumas são terras invadidas por grileiros, que falsificaram documentos de posse ao longo de décadas.

Nos últimos anos, ao menos três fazendas localizadas na Gleba Nhandú foram atribuídas à União pela Justiça e, por isso, devem ser destinadas à reforma agrária. Entre elas, está a fazenda Cinco Estrelas. 

A segunda delas é a Fazenda Recanto, que teve cerca de 2 mil hectares destinados em 2018 à acomodação definitiva de famílias no Assentamento Nova Conquista. 

A terceira é a Fazenda Araúna, que teve 6 mil hectares de sua área destinados, em 2024, ao assentamento Boa Esperança, composto por 100 famílias sem terra.

"Eu acho essa situação muito triste, porque, se a terra é devoluta, se é terra da União, [se os grileiros] não têm documento e se já saiu o projeto de ocupação, porque a Justiça não vem e dá a terra pro pessoal, pra ir lá sobreviver em cima da terra, igual nós do Nova Conquista, que a Justiça veio e colocou a gente? Esse clima que tá hoje aqui, é muito triste ver isso daqui. Do fundo do meu coração, eu sinto a dor deles, de não puder usufruir daquilo que é de vocês", lamenta uma moradora do assentamento vizinho, o Nova Conquista. 

Edição: Nicolau Soares