No extremo sul de Porto Alegre (RS), homens, mulheres e crianças do bairro Lami se protegem da chuva e do frio intensos. O abrigo é um acampamento precário sustentado por bambus, que resiste às cheias extremas no Rio Grande do Sul.
Sobre a cozinha improvisada que alimenta os acampados com alimentos doados, uma cobertura de lona treme violentamente por causa do vento Sul, fenômeno que empurra com força o Guaíba em direção às residências alagadas.
"Se continuar assim [a água] vai invadir tudo", aponta Lauri Goettems, conhecido como Neni do Lami, que teve a iniciativa de montar o acampamento. Ele e os vizinhos observam o avanço das águas com mistura de alerta e da resignação de quem já perdeu tudo.
A situação se desenrolou diante da reportagem nesta sexta-feira (24), enquanto o nível do Guaíba subia de novo no bairro Lami. Pela segunda vez, a água voltou a invadir as casas – algumas já tinham sido limpas pelos moradores.
O Brasil de Fato foi até o bairro para conhecer os protagonistas do drama sem fim da tragédia climática que devastou a periferia de Porto Alegre. E descobriu que o colapso forjou laços solidários na área povoada por pescadores na década de 1970.
Famílias dormem em ônibus cedido por morador
Mauro Juliano de Oliveira, trabalhador da construção civil, mudou-se para o Lami há dois anos para trabalhar em um novo emprego. Quando alugou uma casa simples para a mulher e dois filhos, jamais imaginou que, em pouco tempo, a água engoliria os móveis quitados em longas prestações e empurraria sua família para o abrigo montado por Neni.
O operário levou o Brasil de Fato para conhecer sua casa. Na cozinha com água até a canela, ele refletiu: "O Lami é muito esquecido. Todo mundo dá atenção para o centro [de Porto Alegre], onde tem os empresários. Tinham que dar mais atenção aos bairros, onde está o povo pobre. A gente está perdido".
O dormitório de sua mulher e dois filhos é um ônibus estacionado ao lado do acampamento montado por Neni. O veículo foi cedido temporariamente por um morador que também foi prejudicado pelas cheias. "O gaúcho é nota dez, é muito solidário", comenta Juliano.
Para o pedreiro, as construções em locais impróprios, como nas encostas de rios, são parcialmente culpadas pelas cheias extremas, junto com o a poluição e o desmatamento.
"O homem prioriza o dinheiro em vez de cuidar da natureza. Isso vira o aquecimento global, até as geleiras estão derretendo. Se agora está assim, como vai ser daqui 10 ou 20 anos? Qual será o futuro dos nossos filhos? Como diz o ditado, quem viver verá", afirma.
Morador que perdeu a casa encabeçou ação solidária
Lauri Goettems, conhecido como Neni do Lami, mora na beira do Guaíba. Ele atuou nos resgates dos moradores, quando a água começou a subir pela primeira vez, e calcula que mais de 300 casas foram destruídas.
"Na orla [do Guaíba], a minha casa foi uma que ficou só o telhado [para fora da água]. Agora [no repique] subiu mais e deve ter coberto o resto [da casa]", afirmou ao Brasil de Fato enquanto as águam subiam rumo ao acampamento.
Enquanto Neni conversa com a reportagem, um jovem desce de um carro à procura do "posto médico" do Lami. Ele é informado que a estrutura provisória foi desmontada. "Minha mãe está com sintomas de dengue ou leptospirose", clama o rapaz. Uma moradora do Lami com treinamento de socorrista acudiu a idosa.
Cozinheiro de mãos atadas
Até poucos dias atrás, todas as refeições do acampamento eram preparadas por Endrew Silva de Oliveira. Ele desenvolveu uma espécie de reumatismo nas mãos, que precisaram ser enfaixadas, um problema causado pelo frio e pelo esforço intenso de mexer o caldeirão diariamente.
"Desde que tudo [enchente] começou eu sou o cozinheiro: café da manhã, almoço e janta. Hoje eu estou com as minhas mãos assim, infelizmente eu não estou conseguindo cozinhar para quem precisa", conta.
Endrew diz que as cheias destruíram seu sonho de expandir seu pequeno comércio no Lami. O bar e lanchonete havia acabo de ser reformado, após as cheias menos intensas no ano passado.
"Teve a primeira enchente e quebrou muito [o estabelecimento comercial]. Tive que fechar, e agora faltava três semanas para reabrir. Agora veio a enchente, e a gente perdeu tudo. E dessa vez foi tudo mesmo", disse o comerciante.
Sem o cozinheiro, Neni recebeu doações de marmitas produzidas por um haras local. As refeições foram entregues por um carro do governo federal pertencente à administração da Reserva Biológica do Lami, uma área de mata preservada.
"Os vizinhos daqui estão de parabéns, todo mundo ajudou", afirmou Neni, que a partir de agora será lembrado como um importante líder comunitário do Lami. "Não pretendo sair daqui jamais, fui nascido e criado aqui", disse.
O que diz a Prefeitura
A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato com a Prefeitura de Porto Alegre e questionou sobre as ações para a região. Em resposta, a prefeitura disse que a região onde está o bairro Lami é atendida por abrigos provisórios, distribuição de mantimentos e estação de tratamento de água e que a subprefeitura já atendeu mil famílias desde o início das cheias.
Edição: Nicolau Soares