PLEITO NO DOMINGO

Candidata de esquerda no México promete continuar projeto de López Obrador para acabar com desigualdades

Ex-ministra da Economia e porta-voz da campanha do partido Morena, Tatiana Clouthier conversou com o BdF Entrevista

Tatiana Clouthier, ex-ministra da Economia do México e porta-voz da candidatura presidencial de Claudia Sheinbaum - OMAR TORRES / AFP
Os dois vêm de uma luta que construíram juntos e que busca ampliar direitos sociais no nosso país

A candidata de esquerda que lidera as pesquisas de intenção de voto no México, Claudia Sheinbaum, chega à reta final de sua campanha com a promessa de continuidade do governo de seu antecessor, Andrés Manuel López Obrador, em relação à implementação de políticas sociais no país, com foco na redução das desigualdades. 

"Os dois vêm de uma luta que construíram juntos e que busca ampliar direitos sociais e das pessoas no nosso país, atender quem historicamente ficou para trás. E um ponto adicional: acabar ou diminuir as desigualdades do nosso país. Essa seria a grande ligação do projeto de ambos", disse ao Brasil de Fato Entrevista Tatiana Clouthier, ex-ministra da Economia do governo Obrador entre 2020 e 2022.

Educadora, política e escritora mexicana, Tatiana é filha do político Manuel Clouthier, candidato à presidência pelo Partido de Ação Nacional  (PAN) em 1988, morto em um acidente automobilístico em 1989. Tatiana Clouthier ganhou destaque como gerente da campanha presidencial de 2018 que elegeu López Obrador. Neste ano, ela assumiu a campanha de sua sucessora, Claudia Sheinbaum.

Dados do Conselho Nacional de Avaliação da Política de Desenvolvimento Social do México mostram que a população em situação de pobreza no país diminuiu, de 51,9 milhões em 2018 para 46,8 milhões em 2022, mas houve um pequeno aumento da população em situação de extrema pobreza de 7.0% em 2018 para 7.1% em 2022 (de 8.7 milhões para 9,1 milhões).

Clouthier argumenta que os números da economia do México devem ser vistos na perspectiva de eventos excepcionais como a pandemia do coronavírus, que afetou a economia mundial, e as duas guerras hoje em curso na Faixa de Gaza e na Ucrânia. Ela destaca uma proposta de Claudia Sheinbaum de apoio econômico para mulheres de 60 a 64 anos como uma reparação histórica em relação à sua contribuição durante a pandemia.

"Em termos do que fizeram relativo a cuidados, cuidaram dos filhos, dos pais, dos doentes. E isso obrigou na Covid que muitas mulheres saíssem desses espaços ou que certo tipo de trabalhos deixassem de existir e tivessem que migrar para outros ainda mais precários."

A ex-ministra da Economia do México também destaca as políticas de Obrador voltadas para a classe trabalhadora, que contribuíram para diminuir a população em situação de pobreza no país, que devem ser aprofundadas em um futuro governo do partido Morena, com destaque para as mudanças na legislação em relação ao outsourcing - termo empregado para se referir aos processos de terceirização de mão de obra no país.

"O presidente López Obrador teve em seu mandato uma das mudanças mais importantes na questão trabalhista. Acabou com o outsourcing [terceirização] e obrigou a participação nos lucros. Por outro lado, o aumento do salário mínimo em 110% e na área de fronteira, em 210%. Isso é muito e isso não quer dizer que não queremos mais. A doutora Claudia Sheinbaum declarou que vai gradualmente aumentando até chegar a duas cestas básicas."

Ela aponta que as mudanças implementadas pelo governo na legislação trabalhista também levaram maior transparência e independência nas eleições dos sindicatos no país, que contribuíram para fortalecer as demandas trabalhistas em diálogo com a classe empresarial. 

"Todas essas mudanças que estou falando fizeram com que as mulheres e os homens trabalhadores tenham mais dinheiro no bolso e o mercado interno aqueceu a economia de forma historicamente inédita. Então acredito que estas são algumas das medidas do presente e do futuro que tanto a doutora Claudia quanto o presidente atual têm como mudanças importantes nesses setores."

Confira a entrevista completa

Brasil de Fato: O México se aproxima de umas das eleições mais importantes da sua história recente, porque está em jogo a sobrevivência de um projeto progressista no poder. O partido Morena, do atual presidente André Manuel López Obrador, escolheu Claudia Sheinbaum como sua representante, que aparece como favorita nas pesquisas. Eu pergunto a você: quem é Claudia Sheinbaum? Uma figura um pouco desconhecida para nós, brasileiros. 

Tatiana Clouthier: A doutora Claudia Sheinbaum é uma mulher cientista, tem graduação em Física, tem mestrado e doutorado na área de energias renováveis e transição energética. É uma mulher que vem lutando desde muito jovem, quando era uma estudante de ensino médio. Buscou que seus companheiros e companheiras tivessem acesso à educação gratuita, como ela teve, porque não havia vagas no sistema educativo e aí ela começa uma luta neste sentido.

Também, como pesquisadora, trabalhou em diferentes áreas nacionais e internacionais e fez parte de um comitê que ganhou um Nobel pelas contribuições para reduzir gases de efeito estufa e estudou nos Estados Unidos no seu mestrado e doutorado. Estudou Física na Universidade Autônoma do México, a conhecida UNAM. Trabalhou com o hoje presidente da República quando ele foi chefe de Governo na Cidade do México. Trabalhou com ele na parte de meio ambiente. Depois o presidente a torna responsável pela construção do Segundo Piso, que é um dos viadutos ou sistemas de ligação ou ruas que cruzam a Cidade do México como uma medida de mitigação de trânsito.

A doutora também foi porta-voz do hoje presidente da República em 2006, durante sua campanha presidencial. Além disso, ela foi prefeita de Tlalpan, uma delegação (espécie de município) com nomenclatura diferente. Em 2018, concorreu com o presidente López Obrador para a presidência da República e também para chefe delegacional da Cidade do México, alcançando um papel muito importante. Há alguns meses, depois de concorrer internamente nas primárias do partido político Morena, Claudia Sheinbaum foi designada candidata à presidência do México. Atualmente, ela lidera as pesquisas com cerca de 25 pontos para a eleição que acontecerá no próximo 2 de junho.


A candidata representa a continuidade das ideias do presidente Obrador?  Quais são as principais diferenças entre eles e o que deve permanecer em um eventual governo de Sheinbaum?

A doutora chamou o seu programa, o lema da sua campanha, de “Continuidade com Mudança”. O que queremos dizer com a parte de continuidade e mudança, que tem a ver um pouco com sua pergunta? Vou mencionar um ponto que vem sendo como a ligação entre os dois. Os dois vêm de uma luta que construíram juntos, claro que o presidente era o líder, que vieram construindo juntos e que busca ampliar direitos sociais e direitos das pessoas no nosso país, atender quem historicamente ficou para trás. E um ponto adicional: acabar ou diminuir as desigualdades do nosso país. Essa seria a grande ligação do projeto de ambos.

O presidente realizou feitos importantes neste sentido durante sua presidência e conquistou coisas muito boas, como programas sociais de transferência de renda a mulheres trabalhadoras, a questão dos idosos e crianças com deficiência. Esses programas sociais, como o “Semeando Vida”, que promove o replantio de árvores frutíferas e para uso de madeira em alguns estados do país. Outro programa se chama “Jovens Construindo o Futuro”, no qual jovens que ficaram sem trabalho ou sem estudar e não encontraram emprego com melhores condições entram em uma empresa para capacitação que vai de três a um ano, e o governo oferece bolsa durante a capacitação para que possam ir para o mercado de trabalho. Esses programas sociais são a base do que fica, porque funcionaram, diminuindo a desigualdade no nosso país e tiraram 5,1 milhões de pessoas da pobreza, apesar dos dois anos de pandemia e das duas guerras que aconteceram no mundo. Essa é uma base comum. E o que queremos dizer ao falarmos de continuidade?

Todos os projetos de infraestrutura que o presidente começou, como o trem Maya e o Interoceânico, os campos solares para toda a parte de transição energética, trens que agora a doutora propõe, que não serão concluídos a tempo pelo presidente López Obrador. Ela propõe continuar com os trens de passageiros, crescer a logística no nosso país através de portos, estradas e aeroportos. Esses são como programas de ligação que o presidente inicia, deixa concluídos, mas é preciso levá-los para outro nível ou ampliar a conectividade nesses setores.

E, por outro lado, coisas que a doutora quer avançar, porque ou não deram os resultados esperados ou vivemos um momento diferente. Falo de três coisas concretamente. Uma delas é tudo o que tem a ver com inovação e tecnologia. Esse é o perfil da doutora naturalmente, por seu próprio perfil acadêmico. E ela diz que a ciência e a tecnologia devem estar a serviço da solução de problemas. Então acho que essa é uma diferença e uma nuance muito importante no novo projeto da doutora Sheinbaum.

Por outro lado, se falamos de educação, ela tem dois programas importantes. Uma mudança no ensino médio. No México, muitos jovens ficam fora do sistema por falta de escolas públicas. Ainda sobre educação, ela fala da necessidade de atender e ampliar serviços de educação inicial para que as crianças possam aprender com outra visão desde muito pequenos.  E isso seria uma continuidade do trabalho do hoje presidente da República.

Agora falo da parte de saúde e de segurança. Em termos de saúde, tivemos a pandemia, volto a repetir, quando muitos dos esforços do presidente se voltaram para evitar que tivéssemos essas cenas que vimos na Espanha, que vimos na Itália, de idosos caindo mortos nas ruas ou morrendo fora dos hospitais. Bom, o presidente fez um esforço enorme para o trabalho nos hospitais, mas também o recurso para que a população mexicana pudesse ser vacinada.

Dito isso, o que vem depois? Se deixou de atender muitos pacientes porque não podiam ir aos hospitais que estavam cheios de pessoas com Covid e não se misturava os públicos por desconhecimento das consequências do contágio da doença. Então algumas operações e consultas foram adiadas e parte disso a doutora precisará acelerar.

Qual é sua proposta para isso? A telemedicina, a prevenção, e para isso propõe um programa em que crianças sejam atendidos desde que nascem até seus mil dias. Isso diminuirá e fará que haja crianças mais saudáveis, mais atendidos e, consequentemente, menos doentes em idade posterior.

E sobre a questão da segurança, a doutora tem um plano importante na cidade, que é atender as causas, seguir com o que o presidente fez até agora, mas ela fala também de dar poder de investigação para a polícia. Ela modificou a lei estadual e quer ampliar para todo o país.

Por outro lado, também coloca a questão de ter uma Polícia Federal, vinculada à Presidência, que atue em estradas, algo que hoje é uma lacuna, não existe da maneira que a doutora propõe. E temos a questão da reforma do Poder Judiciário, da qual o presidente López Obrador já falou. Essa reforma diz respeito aos cargos. Dentro do Poder Judiciário, haveria um órgão responsável pelo funcionamento interno para que problemas de corrupção sejam identificados e não negligenciados como estão hoje. É mais ou menos o que posso colocar como uma base comum e as propostas da doutora.

O México está na iminência de eleger a primeira mulher presidente em sua história, pois os dois principais candidatos são mulheres. Isso em um país com uma cultura política muito machista. Como essa cultura de violência de gênero afeta a disputa eleitoral?

Vou comentar, talvez, não sei se com a perspectiva da pergunta, mas vou dizer. Primeiro, é verdade, o mundo, coloco assim porque vi números mundiais, não sei o que fizemos como humanidade, que está havendo uma situação de violência de gênero crescente contra as mulheres mundialmente. Os homens estão sendo violentos com as mulheres, não importa o país. Mas vou falar do nosso.

Não acho que isso afeta diretamente o processo eleitoral, mas sim as ações e propostas que as candidatas e o candidato têm para solucionar esses problemas. A doutora propôs e realizou na Cidade do México algumas coisas com abordagem de gênero muito particular, um SOS específico para as mulheres que se sintam em circunstância difícil de violência de gênero, um 911 das emergências cotidianas, um número especial implementado na Cidade do México. Que todas as mortes de mulheres de forma violenta sejam tratadas como feminicídio até se provar o contrário, e haver juízas especializadas e Ministérios Públicos com visão de perspectiva de gênero para poder atender desde o início.

Por outro lado, que o agressor saia de casa, para que não sejam as mulheres em uma situação dessa natureza que tenham que procurar moradia, mas que sejam os homens que saiam de casa, não a mulher. 

Outro projeto implementado na Cidade do México que ela propõe para todo o país é o Caminhos Seguros. Ela realizou 800 quilômetros de Caminhos Seguros na Cidade do México, iluminando, ou seja, acendeu a luz em sentido real e figurado para as mulheres para que pudessem andar mais seguras na cidade e aqui seria para o país.

E outra questão fundamental que a doutora põe na mesa como um ato de justiça, é dar para mulheres de 60 a 64 anos um apoio econômico pelos cuidados invisíveis. O que isso quer dizer? Às vezes, há situações de violência em casa porque a mulher está cuidando dos filhos, dos pais ou dos doentes. E aqui também há um sistema de cuidados proposto, todas as candidatas e candidatos aprovaram e estão propondo. Acredito que aqui a questão se torna central.

A doutora diminuiu os feminicídios na Cidade do México com estas ações de forma significativa. Acho que esse é o caminho. Apesar disso, acho que aqui há algo que a doutora propõe que não é diretamente vinculante, mas é indiretamente, atender a questão da saúde mental. A saúde mental, não entendida como loucura, mas como um desequilíbrio emocional, momentâneo ou temporário, que precisa ser atendido para evitar muitas tragédias. E acho que isso não era algo que estava no foco, porque estava oculto. Acredito que a pandemia dá visibilidade e a doutora tem isso muito claro.

Devemos lembrar que outras mulheres presidentes sofreram perseguição de gênero, mas também perseguição política. Algumas foram até vítimas de lawfare, como Dilma Rousseff e Cristina Kirshner. Você acha que, se eleita, Claudia Sheinbaum poderá sofrer esse tipo de perseguição?

Não sei. Mas posso falar da violência de gênero na disputa, inclusive cometida pela candidata opositora, que diz que a doutora será uma marionete do hoje presidente da República. Acho que só isso já fala bastante.


Voltando à questão da violência no México, nessas eleições, quase 500 candidatos receberam proteção oficial do Estado e mais de 40 foram assassinados. O que explica esse número? E quais são as origens desse tipo de violência política?

Vou falar algo muito ruim e vou contextualizar para não ser entendido errado. Primeiro, qualquer ato de violência, mais ainda uma morte, é 100% de uma família e isso não pode ser minimizado. No entanto, em nosso país, as eleições eram periódicas e tínhamos três eleições por ano e os processos eleitorais não eram unidos em dois processos como agora, que foram em 21 e 24. Ou seja, a cada três anos se renova a metade dos cargos. Isso não acontecia antes.

Sem interpretar mal, talvez víssemos atos de violência e homicídios dolorosíssimos e que não deveriam acontecer, no entanto, espaçados no tempo. E agora, pela unificação dos processos eleitorais, todos são na mesma data. Repito: não podemos minimizar um ato de violência desta natureza, mas contextualizo.

Uma das críticas ao governo de López Obrador é justamente a crise de segurança. Em um novo governo, o que se fará de diferente para combater a violência? 

Primeiro e outra vez, não há ato de violência que não seja considerado de alguém. E devemos dividir os crimes em dois: os de foro comum, responsabilidade dos estados e municípios, e os de alto impacto, para definir assim. Nos crimes de foro comum temos governadores e governadoras que não fazem seu trabalho.

Ou seja, falam assim: não é minha responsabilidade. E o que a Claudia disse é que não importa de quem é a responsabilidade, é preciso resolver, porque o afetado é o cidadão, normalmente é o cidadão, ou seja, o cidadão que tem direito à segurança. Nesse sentido, volto a colocar a questão da continuidade e da mudança.

Na parte de continuidade temos o atendimento às causas, que foi um programa muito reforçado pelo presidente da República e que fez, de alguma maneira, que se comece a tirar do crime organizado ou a possibilidade de os jovens entrarem nele. Isso continuaria com a Claudia.

Uma proposta nova é a questão da investigação, dar poder de investigação para as polícias através da lei, coisa que nem todos os estados do país têm hoje. E, com isso, fechar as portas da impunidade porque eu posso ter um programa muito bom, mas se o criminoso não é preso, continua livre. E aí é uma reincidência enorme porque não se resolve a questão da impunidade.

Por outro lado, também o uso da tecnologia e da inteligência, falo da inteligência tecnológica, para resolver problemas de segurança. E o que já falei também, que tem a ver com fazer a Polícia Federal, criada pelo presidente da República, se fortaleça e trabalhe nas estradas pois, atualmente, não tem competência para isso. E uma final, que comentei há pouco, a reforma do poder judiciário. Por quê? Porque no poder judiciário também há corrupção e não há mecanismos para solucionar isso. Este seria o pacote completo e, obviamente, a coordenação com governadores, governadoras, com promotores, com todos, para construir algo diferente. Duas questões ou dados que são poderosos.

Um deles é que 40% dos crimes de alto impacto são cometidos em 10 estados do país. Se nessa vinculação, vou dizer, se asfixia porque se trabalha de forma coordenada com os 3 níveis de governo e se asfixia a criminalidade, acho que podemos ter resultados de uma maneira mais rápida. E vamos para o outro dado. 80% dos crimes são de foro comum. Ou seja, se as polícias estatais trabalharem, se coordenarem e acabar com a questão da impunidade relativa aos poderes judiciários e juízes, atendemos mais rápido e asfixiamos mais rápido os criminosos em sentido figurado. Ou seja, estrangulamos para que não fujam para outros lugares.


Voltando às propostas, você falou sobre os posicionamentos da Claudia sobre violência de gênero. Como a candidata vê a questão do direito ao aborto no México?

Não tenho a palavra exata da doutora, mas, no México, a Suprema Corte estabeleceu como um direito, não é uma questão ou não deveria ser um tema de discussão, porque já existe como direito.

Este é um ano de muitas eleições em todo o mundo. Uma das mais importantes serão as eleições nos Estados Unidos, vizinho do México e um de seus parceiros mais importantes. Gostaria que você analisasse os dois cenários possíveis: como serão as relações políticas e diplomáticas entre os Estados Unidos e o México no caso de uma vitória de Biden ou Trump? E como serão as relações em um eventual governo de Claudia ou Gálvez?

Antes de mais nada, nós como México, somos o parceiro comercial número um dos Estados Unidos. Já há um bom tempo passamos a China. E para onde isso nos leva? Porque formamos com os Estados Unidos, através do T-MEC, um bloco comercial importante que o presidente López Obrador quis levar para toda a América.

O que quer dizer? Conversei com Biden e com o próprio Trudeau para falar da necessidade que de uma frente comum para enfrentar os asiáticos e os europeus, no bom sentido da palavra. Ou seja, nos fortalecermos como região.

Essa é uma questão. E nós temos a maior fronteira com os Estados Unidos, que ninguém tem. O que isso quer dizer? Os números de economia, os números de migração, mas também as razões históricas de ambos os países, fazem com que nossa relação vá além de um processo eleitoral, vá além de um presidente ou uma presidenta e vá além de um ano ou outro. São relações de longuíssimo prazo que precisam ser pensadas a médio prazo para trazê-las ao presente.

E assim foi como aconteceram e posso dizer que o presidente Andrés Manuel teve que governar com o Trump e com o Biden. E com os dois teve relações extraordinárias a favor do país de duas maneiras: fazendo com que a relação comercial, diplomática e política avançasse e, por outro lado, defendendo a parte que nos corresponde da soberania.

A que me refiro com a parte da soberania? Não permitindo a entrada da DEA, como historicamente entrava aqui para fazer o que quisesse, mas passando a entrar com licenças, avisos e autorizações pertinentes. Por outro lado, na parte de migração, buscando sempre fazer entender aos Estados Unidos a necessidade de duas coisas: uma é investir nos países que mais expulsam, se fosse essa a palavra, de pessoas para migrar porque não há condições em seus lugares de origem.

E o México fez isso de uma maneira importante em alguns desses países. E, por outro lado, convidando os Estados Unidos, como já fez o Canadá, a ampliar um programa de empregos temporários. México e Canadá têm um programa de empregos temporários na zona rural muito importante. 

Por outro lado, o T-MEC é um instrumento poderosíssimo que faz com que os dois países entendam que precisamos um do outro. E também os estilos, acho que faz uma diferença enorme. No entanto, não tenho a menor dúvida que a doutora Claudia Sheinbaum será capaz de ter uma relação tanto com Trump quanto com Biden, mas também saberá colocar os ‘pontos nos is’ nas questões do presidente López Obrador.

Se falamos da candidata Gálvez e entendendo que eu aqui tenho uma suspeição porque tenho definitivamente uma preferência, o que vimos e o que candidata Gálvez fez até hoje? A candidata Gálvez esteve, de alguma maneira, submetida a circunstâncias com os Estados Unidos pois visitou o país e pediu ajuda e disse para acompanhá-los nos processos eleitorais. Ou seja, a candidata definitivamente mostrou que sozinha não conseguiria e que depende dos estadunidenses para muitas outras coisas. Não entende que tivemos como política histórica no nosso país, em nossa constituição, da autodeterminação dos povos e que respeitar o direito é necessário, dentro e fora.

No último ano, o México substituiu a China como a principal fonte de importações dos EUA. Como seria a política externa do México em relação à China e aos EUA nesse cenário?

Em relação à China, não sei. Teríamos que ouvir a doutora. Com relação aos Estados Unidos, acho que já expliquei muito bem.

Dados do Conselho Nacional de Avaliação da Política de Desenvolvimento Social do México mostram que a população em situação de pobreza no México diminuiu entre 2018 e 2022, mas houve um pequeno aumento na população em situação de extrema pobreza no mesmo período. Como o país lidou com as dificuldades econômicas pós-pandemia e qual é a visão de Obrador e Claudia para o desenvolvimento? Em outras palavras, qual é a posição do México hoje no debate entre mais controle estatal da economia ou mais participação do setor privado?

O presidente López Obrador e a doutora têm uma visão que o Estado mexicano deve participar como líder para solucionar certo tipo de problemas e dirigir soluções, não necessariamente que isso signifique intervenção ou "não" à iniciativa privada. Existem alguns setores considerados chave e um deles é o energético. Na parte do setor energético há uma lei muito clara que fala que o Estado tem a liderança e a participação de investimentos em 54% do Estado mexicano; 46% da iniciativa privada.

Por outro lado, o presidente e a Claudia acreditam que a saúde e a educação são direitos. E, neste sentido, é dever do Estado prover o estado de bem-estar e que quem não tiver recursos deve ter a oportunidade de estudar e ter acesso à saúde. E nisso há uma diferença com relação talvez a outras visões.

E o que eles fizeram? E sobre os números mencionados, volto ao mesmo ponto. A humanidade esqueceu, porque acho que, e não só para o México, mas acho que isso poderia acontecer inclusive com outros governos, julgamos muito sem considerar que vivemos dois anos de pandemia. A pandemia e duas guerras, não estamos falando de algo menor, levaram a uma inflação. Tivemos um problema com grãos. Por quê? Porque a Rússia e a Ucrânia, grandes produtores de grãos, eram parte do que permitia às vezes que os preços dos grãos ou de certos grãos fosse mais baixos. Onde quero chegar? Isso provoca inflação. Isso provocou desabastecimento e, portanto, inflação. E não podemos esquecer da questão da nossa pandemia.

Dito isso, apesar disso e dos números que apresentamos, houve queda da pobreza apesar da extrema pobreza que você diz que cresceu e várias coisas importantes estão na mesa. Na América Latina, as desigualdades e especialmente o dano na vida das mulheres pela pandemia foi grande, foi forte. E aqui, por isso, a necessidade de políticas públicas, vou repetir novamente, as duas candidatas e o candidato concordam na questão de buscar um mecanismo para atender a questão de cuidados. A doutora Claudia Sheinbaum acrescenta um ingrediente de dar um apoio econômico para mulheres de 60 a 64 anos como uma reparação histórica do que as mulheres fizeram e contribuíram, que é cerca de 24% do PIB, em termos do que fizeram relativo a cuidados, cuidaram dos filhos, dos pais, dos doentes. E isso obrigou na Covid que muitas mulheres saíssem desses espaços ou que certo tipo de trabalhos deixassem de existir e tivessem que migrar para outros ainda mais precários.

Apesar disso, nas políticas públicas, e aqui falo do presente e do futuro, o presidente López Obrador teve em seu mandato uma das mudanças mais importantes na questão trabalhista. Acabou com o outsourcing e obrigou a participação nos lucros. Por outro lado, aumentou o salário mínimo em 110% e na área de fronteira, em 210%.

Isso é muito e isso não quer dizer que não queremos mais. A doutora Claudia Sheinbaum declarou que vai gradualmente aumentando até chegar em duas cestas básicas. E isso, obviamente, não seria feito se não estivéssemos juntos trabalhando de forma harmônica com os trabalhadores e trabalhadoras e com os empresários. Mas existe uma questão adicional, a modificação que foi feita de toda a parte trabalhista. Existe uma mudança na legislação para que os sindicatos alterem seu modelo de eleição para serem transparentes e independentes. E isso também muda os modelos. Todas essas mudanças de que estou falando fizeram com que as mulheres e os homens trabalhadores tenham mais dinheiro no bolso e o mercado interno aqueceu a economia de forma historicamente inédita. Então acredito que estas são algumas das medidas do presente e do futuro que tanto a doutora Claudia quanto o presidente atual têm como mudanças importantes nesses setores. 

Ainda falando sobre a economia, mas em relação à política externa: por que o presidente López Obrador não quis entrar para o Brics? E qual é a opinião dele sobre o assunto? O México deve entrar para o bloco?

Não sei. Ou seja, eu, nesse momento, na questão BRICS, já havia saído da Secretaria de Economia, me envolvi na campanha e deixei de acompanhar outros assuntos. Então não tenho opinião. Mas posso dar a informação de que o México pertence e tem compromissos internacionais com 14 tratados.

Então, existem 14 tratados e no T-MEC, pelo menos, temos algumas condições ou condicionantes que para entrar em outros você precisa da autorização dos dois ou um acordo. Então acho que não dá para entrar em algum saindo dos outros, prejudicando uma relação de longo prazo. Essa é minha interpretação a priori, mas teria que ouvir a doutora ou a secretaria de Relações Exteriores, Alicia Bárcena, nessas questões.

Em termos de política externa, o governo Obrador adotou posições muito progressistas, como o apoio irrestrito a Julian Assange, o fim do bloqueio contra Cuba e até mesmo em episódios tensos como o golpe na Bolívia, quando ofereceu refúgio político ao presidente Evo Morales. Essas posições são de Obrador ou de Morena? Em outras palavras, podemos esperar a mesma firmeza de ação de Claudia Sheinbaum se ela for eleita?

O que eu ouvi da doutora mais de uma vez é que nosso sistema de amizade com todos os países e de solidariedade com os países irmãos latino-americanos não prevê abuso de nenhum outro país. É preciso buscar os mecanismos para que as diferenças entre uns e outros não faça que as pessoas morram de fome. Que as diferenças políticas não sejam diferenças comerciais que asfixiem um país para que, pela fome do seu povo, possa se chegar a uma mudança de sua postura na autodeterminação dos povos e sua liberdade. E acredito que isso é o que escutei até hoje da doutora. 

Como você avalia a presença política e social do Morena durante seus 12 anos de existência? O partido acompanha um movimento com força social ou está exposto ao risco de se tornar muito institucionalizado e se distanciar das bases?

Eu não sou do partido. O que posso dizer é que tenho uma gratidão enorme ao movimento, ao presidente López Obrador, à Claudia, por me convidar e isso mostra a parte da abertura de que falamos do movimento. No entanto, eu fiz parte no passado de um partido político. Quando saí, percebi que todos são… Como dizer… instituições criadas por homens e mulheres, e o homem e a mulher têm circunstâncias humanas que nos levam às vezes a crescer e às vezes a nos destruir. E este instituto tem os riscos que qualquer outro tem. 

O presidente Obrador disse que depois das eleições vai morar no sítio dele, vai escrever e se afastar da vida política. Como substituir um vazio tão grande de referência política? 

Primeiro, acho muito saudável o comentário do presidente, porque acho ridículo o que os dois ex-presidentes fizeram, o presidente Vicente Fox e o presidente Felipe Calderón, um querendo mandar da Espanha ou querendo influenciar da Espanha, no Twitter e o outro opinando da casa dele pelo Twitter também.

E acho que é complicado e ridículo pensar que você tem, vou dizer aqui, o poder de influenciar ou a responsabilidade, se pudéssemos chamar assim. Uma coisa é dar uma opinião de vez em quando e outra passar por desocupado no Twitter dizendo um monte de besteiras.

Então aqui acho é muito bonita a maturidade política do presidente López Obrador de entender que seu tempo e seu momento acabam quando acabam e de ir embora e fazer o que acho que a vida devolve a você, o que é seu e da sua família. Beatriz foi extremamente generosa, sua esposa, com nosso país e com ele em termos de nos emprestá-lo e dá-lo de presente pelos seis anos de governo, mas por mais dez anos antes para que ele fizesse esse percurso pelo México.

E acho que é seu direito ter tempo para dedicar à Beatriz e seus filhos para fazer o que gosta. Ele gosta do campo, de escrever, ler, gosta de beisebol, ver suas árvores, os frutos das suas árvores. Eu acho que vai aproveitar bastante.

Qual é o cenário de resultados que o Morena espera alcançar dos poderes locais? Ou seja, quantos governos estatais, regionais esperam eleger? 

Estamos no momento concorrendo em 9 estados do país. E a ideia é ganharmos em Guanajuato e Yucatán, acredito serem dois dos que estão com a oposição e os outros 7 estão nas mãos do Morena. Consideramos que vamos repetir no mínimo os 7 que temos e temos espaço para competir nos outros dois e vamos nos esforçar para conquistá-los. E tudo pode acontecer, estamos em esquemas competitivos.

Qual é a atual situação do PRI e do PAN? Já é possível dizer que assim como AD e Copey na Venezuela perderam a hegemonia para o chavismo, o PRI e o PAN perderam hegemonia para o Morena? 

Não sei a história do que aconteceu na Venezuela. Não gosto da comparação com a Venezuela. Poderíamos comparar com nós mesmos e o que aconteceu no nosso país. Os pesos e contrapesos são importantes quando as pessoas fazem e geram, não quando querem de bandeja. O que quero dizer? 

O PRI e o PAN, o MC também, porque também temos o Movimento Cidadão, é outro partido que tem um papel importante e que tem crescido. O MC fez um jogo importante, eleitoralmente falando e no Congresso, onde tem um plano de governo claro e sabe onde ir. O PAN e o PRI perderam o rumo. Não sabem o que querem, mas sabem o que não querem. não querem Andrés Manuel, mas não sabem o que querem.

E então se frustram e nessa confusão de não querer o Andrés Manuel como presidente, não têm programa e isso os enfraquece. Então, é um não a isso, mas sim ao quê? E querem colocar a culpa no presidente pelos seus não avanços quando eles mesmos não se organizaram para ter um programa. Teremos que ver.

Há alguns dias houve manifestações importantes da oposição, que mais ou menos somam no momento entre 28% e 32%. São muitos. Nós somos 123 milhões de mexicanos, é uma porcentagem importante. E temos que ver trabalham para se fortalecerem regionalmente e no demais para ir crescendo e fazer os contrapesos que qualquer país precisa, mas não é de mão beijada.

A relação do México com os Estados Unidos impede que o país se aproxime do chamado Sul Global, ou seja, qual é o papel do México no novo cenário geopolítico cada vez mais multipolarizado e não aliado ao chamado Ocidente? 

Eu acho que o México veio jogando, vamos colocar assim, para entrar em todos os cenários internacionais. Não em 2024, mas em 2018. O mundo mudou muito. Temos, repito, duas guerras acontecendo, já nos acostumamos erradamente a elas, porque a princípio estávamos muito horrorizados, mas agora normalizamos isso muito erradamente. E eu acho, que nessa dimensão, quem ganhar as eleições terá que analisar quais são as dimensões, seguindo com a política do nosso país de não intervenção, de autodeterminação dos povos e sempre buscar ou conjugar a favor da paz.

Quero terminar esta entrevista com uma demanda social de muitos anos, que é o caso Ayotzinapa. O painel de especialistas que pesquisava saiu do país e o presidente prometeu continuar investigando. Como estão as investigações e como Claudia Sheinbaum trata o tema da Comissão da Verdade?

Sei que o presidente avançou essa comissão, entregou um primeiro e um segundo relatório. Houve algumas diferenças com relação aos resultados, pleitos, inclusive, ou visões diferentes entre um grupo de militares a quem se atribui alguma participação. E existe uma espécie de movimentação de um caso jurídico a respeito. No entanto, acho que a questão caminhou em termos de investigação e não se chegou ao resultado de saber onde estão os meninos. O que Claudia disse a respeito? Não sei.

Edição: Rodrigo Durão Coelho