A “sábia” prefeitura de Porto Alegre colocou a carreta na frente dos bois e já está com parceria alinhavada com a empresa Alvarez & Marsal para a gestão de recursos financeiros, regularização das operações, estruturação do plano e gestão do comitê de crise por causa das enchentes que devastaram a cidade nos últimos 30 dias. Por que a pressa? A notícia é meio velha, de 13 de maio, mas foi bombardeada e, até onde se sabe, continua de pé. A prefeitura é um mistério na gestão de recursos. Foi negligente, liberou a cidade para os espigões, para o desmatamento irregular, não investiu em bombas, diques e toda sorte de equipamentos para evitar a tragédia na cidade.
Por que não consultaram outras empresas? Por que não foram atrás dos holandeses, talvez os maiores especialistas do mundo no controle de águas? Desde o século 18, eles são craques na matéria. Foram evoluindo e hoje, aparentemente, são quase imbatíveis no assunto. Os desígnios da natureza são misteriosos, mas que eles “manjam” da questão é indiscutível.
A Holanda, claro, é mais domável do que o Rio Grande do Sul. Tem apenas 41.850 km² e se localiza na planície norte da Europa. É sete vezes menor que o nosso estado, que tem 281.748 km². O país tem 26% do território abaixo do nível do mar, enquanto 60% teriam grandes riscos de enchentes frequentes se não houvesse algum tipo de intervenção humana. Por isso, é chamado de Países Baixos. O ponto mais alto, Vaalserberg, na fronteira sudeste, localiza-se a uma altitude de 321 m.
Os terrenos baixos são chamados de pôlderes, planícies que são protegidas continuamente de alagamentos por meio de diques e dessecamento, visando a sua utilização na agricultura ou como moradia. O sistema de pôlderes é composto por diques (muros), reservatórios, dutos e bombas. Quando ocorrem chuvas de grande intensidade, os diques fazem o trabalho de isolamento da água, e o volume é coletado numa espécie de piscina, que fica numa área próxima da estrutura.
Para provar que só Porto Alegre é obtusa em ampliar seus horizontes de pesquisas nesta área, basta dizer que Recife, com seus rios Capibaribe e Beberibe, que desembocam no mar na cidade, foi atrás dos especialistas holandeses em desenvolvimento de gestão da água para discutir soluções para melhorar a drenagem e reduzir os efeitos de desastres provocados por temporais e pelo aumento do nível do oceano. Já estão lá trabalhando e, quem sabe, conseguirão resolver os eternos problemas da capital pernambucana.
Recife agiu com sensatez. Não foi difícil. Por que o prefeito Sebastião Melo também não amplia os seus horizontes e consulta gente que sabe das coisas, e não meros especuladores ou consultores? Não se sabe o que se passa na cabeça do alcaide.
Conforme Willem van Dijk, guardião dos diques de Flevoland, província holandesa que fica a mais de 3 metros abaixo do nível do mar, são enviados dezenas de homens todos os dias para combater possíveis ameaças à mais avançada rede de proteção contra tempestades do planeta. Ali não há perdão para negligência, omissão ou faz de conta. Todos os dias eles pensam na segurança do país contra as águas. Não temem investir na vida das pessoas. E aqui? Nada. DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos) deixou no banco mais de R$ 400 milhões e não investiu, nesta área, nenhum centavo em 2023.
A missão da equipe de van Dijk é matar ratos-almiscarados, utilizando gaiolas de metal e armadilhas com cenouras. Os caçadores dos roedores de Flevoland realizam um serviço simples, mas vital para o eficiente sistema de defesa holandês, composto por técnicas de controle de enchente desenvolvidas desde a Idade Média e por futurísticas estruturas de aço operadas por computadores, que se movem para controlar as enchentes causadas pelo aumento no nível da água após as tempestades.
Conforme o Trust Project, um consórcio internacional envolvendo aproximadamente 120 organizações de notícias que trabalham para maior transparência e responsabilidade na indústria global de informações, as autoridades holandesas e especialistas em hidrologia consideram fundamental trabalhar para evitar cheias, enchentes, alagamentos, do que agir depois que as desgraças ocorrem.
Após centenas de anos na beira do abismo, os holandeses passaram a ter uma clara consciência das consequências das enchentes e da necessidade de preveni-las em um país onde dois terços da população, incluindo a maior parte dos habitantes de Amsterdã, Roterdã e Haia, as maiores cidades do país, vivem muito abaixo do nível do mar.
“Sabemos que se as coisas derem errado, pagaremos durante décadas”, afirmou Wim Kuijken, o comissário delta. Por essa razão, a Holanda foi capaz de mobilizar enormes recursos para antecipar e minimizar o risco de enchentes, afirmou.
Aqui no Rio Grande do Sul, durante décadas, só se pôs o dinheiro debaixo do tapete para evitar obras enterradas, mas que têm grande utilidade para saneamento e cheias.
O Trust Project diz que, após as grandes enchentes de 1916 e 1953 na Holanda – nesta última até a rainha Juliana, a rainha da época, colocou o pé na lama para ajudar as pessoas –, o país resolveu agir com mais força, reafirmando sua história e tradição de conquistar e aumentar seu território avançando sobre grandes pântanos, criando elaborados mosaicos de diques que, se fossem colocados lado a lado, teriam 80 km de extensão. Começou com o reforço de diques e a construção de uma série de barragens que protegeriam estuários alagadiços e braços de mar, diminuindo o litoral e reduzindo drasticamente as áreas expostas a enchentes causadas por tempestades. Além disso, barragens móveis foram construídas em locais que não poderiam ser fechados por conta do intenso tráfego de navios, como o estuário que leva ao porto de Roterdã.
Em resposta à enchente de 1953, que matou mais de 1,8 mil pessoas, o Estado criou regras duras, exigindo que as barragens contra enchentes fossem fortes o bastante para resistir a tempestades tão fortes que, segundo as projeções de computador, só ocorreriam a cada 10 mil anos.
“Ou matamos os ratos, ou deixamos que a água nos mate”, afirma Peter Glas, presidente da Associação Holandesa das Autoridades Hídricas Regionais – também conhecidas como "Waterschappen", ou "conselhos hídricos" em holandês, grupos eleitos pelas comunidades locais desde o século 13, com autonomia para cobrar impostos. “É preciso ter consciência. Não adianta dificultar a mobilização de verbas. Ser prevenido evita desastres com muita antecedência”. Porto Alegre fez exatamente o contrário. Quer privatizar o DMAE e deixar recursos enjaulados em bancos.
Ainda que o país tenha investido pesado no controle de enchentes, Kuijken, o comissário delta, afirma que isso não é desperdício de verbas, pois envolve cuidadosos cálculos de custo-benefício. O governo holandês gasta atualmente cerca de 1,3 bilhão de dólares por ano com o controle das águas; além disso, os conselhos hídricos gastam outros milhões com a manutenção de diques e canais, com a caça aos ratos-almiscarados e com o bombeamento de água das "polderland" - antigos pântanos, lagos e áreas de mar que se tornaram habitáveis com a ajuda de barragens, diz o The Trust Project.
Investimentos de capital em grandes projetos de construção acrescentam mais alguns bilhões à conta. O Plano Delta, um programa de construção iniciado após a enchente de 1953, custou cerca de 13 bilhões de dólares e demorou quatro décadas para ficar pronto. Construída em Roterdã para combater enchentes causadas por tempestades, a Maeslantkering é uma barragem móvel cuja extensão equivale a duas torres Eiffel. O projeto ficou pronto em 1997 e, tirando os testes, só precisou ser utilizado uma vez, em novembro de 2007.
A Holanda pesquisa permanentemente e faz tudo que pode nesta área. Há poucos anos inaugurou também o Centro de Gestão Hídrica. A nova unidade central de controle foi equipada com uma série de computadores que exibem dados atualizados sobre os níveis da água, a força dos ventos e outras ameaças potenciais às barragens construídas para afastar o Mar do Norte, o Reno e três outros importantes cursos d’água que cruzam a Holanda. Desde 1953, as barragens holandesas aguentaram praticamente tudo, apesar da tragédia que foi evitada por pouco, no início dos anos 1990, levando à evacuação de 250 mil pessoas e de quase o mesmo número de vacas e porcos.
Kuijken afirmou que o pensamento holandês evoluiu e existem novas prioridades e métodos para "aumentar as barreiras de uma forma natural". O Estado está investindo em um plano chamado "Espaço para os Rios", que visa diminuir as enchentes, dando vazão para as águas. No ano passado, o país gastou cerca de 100 milhões de dólares para assorear 20 milhões de metros cúbicos na costa ao norte de Roterdã, promovendo a formação de uma barreira protetora. Isso é ampliar a proteção, e não o que se faz por aqui, onde até o Muro da Mauá é visado para demolição.
Todas estas obras são financiadas por impostos independentes, destinados exclusivamente ao setor de contenção de águas. Para conter esse avanço, o governo holandês aprovou em 2019 um programa que deve investir 18 bilhões de dólares na melhoria de diques até 2033 –sem contar 1,3 bilhão de dólares anuais para manutenção do sistema já existente.
É óbvio que a nossa realidade é diferente da holandesa. Eles têm dinheiro de sobra, nós não. Eles têm um pouco mais de lucidez do que nós nesta questão das águas. A luta deles é histórica. A nossa é bem recente, incluindo a enchente atual e a de 1941. Mas ainda é possível abrir o leque e consultar os holandeses, e não ficar restrito apenas à questionável Alvarez & Marsal. Consultar variadas alternativas é tentar resolver o problema com bom senso, astúcia e inteligência.
* Jornalista
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko