Desde a manhã da última segunda-feira (27) tento falar com alguém envolvido na peça Vozes Humanas, que estrearia horas depois no Teatro Oficina, em São Paulo, com previsão de casa cheia para ver o monólogo que traz de volta aos palcos a atriz Vera Barreto Leite Valdez, prestes a completar 88 anos de vida.
Escrevo a matéria ciente de que, por estar em cima da hora, seria difícil conseguir uma resposta. Mas o imponderável, como nos lembra o também dramaturgo Nelson Rodrigues, sempre pode entrar em campo. Na vida. E na arte. Por volta das 16h, aparece na tela do meu celular o nome de Marcelo Drummond, um dos diretores da peça. Atendo num misto de apreensão e incredulidade. “Alô, Marcelo?”. A resposta é também imprevisível. “Henrique, estou em trânsito com o Aury [Porto, o outro diretor de Vozes Humanas], pode perguntar o que deseja, o viva-voz está ligado”. Ambos partiam naquele momento em direção justamente ao Teatro Oficina Uzyna Uzona, onde aconteceria a estreia.
Pergunto a ele (ou a eles) qual a sensação de, nos últimos dez meses, manter uma produção tão intensa na meca do teatro brasileiro mesmo após a morte de Zé Celso. A resposta, não sei se de Aury ou de Marcelo, veio como um soco: "Mas quem disse que o Zé Celso morreu?".
Concordo e tento aproveitar a deixa para uma outra provocação: não é preciso ser meio louco para colocar em cena uma mulher de quase 90 anos e num teatro cujo público costuma reagir sem qualquer concessão ao que vê adiante? Novamente Marcelo (ou teria sido Aury?) responde: "Mas a peça é sobre isso. Sobre poder viver a idade. Sobre respeitar a trajetória de alguém que ainda vive aos 90 anos, mas não só respeitar. É possível até ser contra essa história desde que se olhe para ela. Uma história de alguém como a Vera só sobrevive se a gente enxergá-la".
Longe da benevolência do politicamente correto, que sempre passou longe da entrada do número 520 da Rua Jaceguai, Drummond e Auri reiteram, em uníssono, que enxergar também é poder contrariar determinada história. “Há uma arrogância na juventude que invalida pessoas mais velhas. Algumas até merecem essa condenação prévia, mas outras, como Vera, precisam ser reconhecidas pelas novas gerações”, afirma Aury. Drummond complementa: “Essa peça vai seguir até que a Vera tenha forças para continuar”.
Então, vamos direto ao ponto: o que há de essencialmente político em Vozes Humanas? “Porra, tá na cara!, respondem, enquanto o som da cidade tenta interromper a conversa conforme o carro avança sentido Oficina. "É uma peça sobre etarismo!"
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Mas não esse etarismo condescendente e simplista da militância de internet, alertam. Mas, afinal, que etarismo é esse que veremos logo mais? "É o da Vera!", um dos dois reitera, talvez Aury, talvez Drummond, mas com a sensatez de que idade alguma poderá impedir a atriz quase nonagenária de abalar as estruturas naquele que pode ser o seu último ato nos palcos.
Em seguida, a ligação fica ruim, já não é possível identificar nenhuma voz do outro lado da linha. Só há tempo para me despedir de ambos, ainda com muitas perguntas na cabeça e a certeza de que vozes humanas como a de Drummond, Aury, Vera e de todo o Teatro Oficina seguiriam fazendo um grande estrago na cultura da cidade.
*Henrique Nunes é jornalista e escritor. Atualmente trabalha na revista Focus, da Fundação Perseu Abramo. Ainda este ano terá seu primeiro romance, intitulado Meu (Sub)Estimado Humano, publicado pela editora Patuá.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas