A última matéria anterior do tema habitação insere no debate a autogestão habitacional e a assessoria técnica territorial. Além da promoção de novas habitações e de melhorias no parque habitacional existente, a incorporação dessas soluções no desenho de políticas habitacionais pode fomentar a autonomia popular e a desmercantilização da cidade.
Embora relegadas pelos municípios da Região Metropolitana de Curitiba, autogestão e assessoria técnica vem sendo discutidas, experimentadas e aperfeiçoadas há décadas no Brasil e por meio da luta social paulatinamente incorporadas em leis federais, como o Estatuto da Cidade em 2001 e a lei de ATHIS em 2008, no Plano Nacional de Habitação de 2009 e em programas como o Minha Casa Minha Vida (MCMV) Entidades e o PAC Urbanização de Favelas.
Além disso, adotadas por governos municipais progressistas nas suas políticas habitacionais, visando o estabelecimento de parceria com movimentos sociais, a execução de programas de reabilitação de imóveis em áreas centrais, urbanização de favelas e produção de novas unidades habitacionais. A assessoria técnica territorial também tem sido utilizada no desenvolvimento de planos e projetos populares, por meio da extensão universitária e da atuação de ONGs.
Outro aspecto é que a autogestão habitacional e a assessoria técnica territorial permitem disputar a lógica dominante de produção da cidade, quando tomam como referência a realidade dos espaços populares autoproduzidos, e reconhecem os saberes e modos de vida da classe trabalhadora desenvolvidos para fazer frente às suas necessidades habitacionais.
Segundo Denise Morado Nascimento, entre 70 e 85% da provisão habitacional brasileira é autoconstruída. Uma fração importante desse total é produzida pelas mãos das próprias famílias, sem o apoio de profissionais habilitados. A autoconstrução deu forma e conteúdo às periferias das nossas cidades e mesmo com limitações tem solucionado a falta de moradia para as classes populares, quando as políticas estatais inexistem ou não estão disponíveis para essa população. Não se pode esquecer, no entanto, que essa forma de produção do habitat popular, baseada na necessidade urgente e imediata de se ter um teto para morar, também tem contribuído para ampliar os índices de precariedade e a exploração da classe trabalhadora.
Parte representativa da população que vive na metrópole de Curitiba mora em condições precárias, em casas e assentamentos autoconstruídos. De acordo com a Fundação João Pinheiro, em 2019 estimava-se que os domicílios com alguma inadequação (edilícia e/ou de infraestrutura) na RMC somavam 294.417, correspondendo a 25,25% do total.
Contudo, autogestão habitacional não pode ser confundida com autoconstrução. Conforme Luciana Corrêa do Lago, a autogestão caracteriza-se pela gestão de atividades produtivas e administrativas pelas organizações sociais, negociada com o Estado por meio do confronto de diagnósticos e projetos urbanos, sendo a autonomia dos movimentos autogestionários continuamente afirmada ou não no confronto com o Estado.
A autogestão da moradia popular é também uma prática emancipatória, que visualiza a autonomia e a construção coletiva de parâmetros de bem-estar urbano não subordinados à lógica capitalista de produção da cidade.
As primeiras experiências de autogestão habitacional no Brasil emergem das lutas coletivas empreendidas pelos movimentos sociais por condições de vida digna nas periferias, que se intensificaram a partir da década de 1970. Desde então essas lutas e experiências têm tido o apoio de profissionais, da academia e de governos progressistas, que desenvolveram e aperfeiçoaram práticas, técnicas e metodologias.
Oportunidades para as novas gestões municipais
No lançamento do novo MCMV, regulamentado pela lei n° 14.620/2023, o Entidades integra uma das linhas de atendimento. Segundo o Ministério das Cidades essa vertente do programa “apoia a produção social da moradia e a participação da população como protagonista na solução de seus problemas habitacionais, estimulando a organização popular e a produção habitacional por autogestão”.
A Assistência Técnica Pública e Gratuita Para Projeto e Construção de Habitação de Interesse Social (ATHIS), é um instrumento definido pela Lei Federal n°. 11.888/2008, que assegura o direito das famílias de baixa renda (até 3 salários mínimos) à assistência técnica pública e gratuita, por meio da atuação de profissionais, visando a garantia de acesso à moradia adequada.
Os serviços são disponibilizados para reforma de unidades habitacionais e execução de melhorias diversas, mas também para elaboração de projeto de novas moradias, regularização fundiária e implantação de infraestruturas urbanas. A assessoria técnica pode atuar em diferentes espaços de moradia, desde favelas a conjuntos habitacionais degradados e cortiços.
Em que pese o potencial aglutinador das lutas por moradia, a ATHIS sozinha não resolve todas as demandas por habitação, devendo compor, junto com outros instrumentos, as políticas de habitação de interesse social em articulação com a política de desenvolvimento urbano dos municípios. A concepção da ATHIS considera diversos aspectos em seu escopo e por isso carece de saberes multidisciplinares para sanar todas as frentes possíveis de trabalho.
Existe o risco da ATHIS ser adotada como política fim em si mesma, sem complementaridade com outros programas habitacionais. Também pode incorrer na maior precarização da mão de obra, com a extensão da jornada de trabalho dos moradores, quando estes atuam na autoconstrução de suas habitações. Em geral não é um instrumento com apelo político, como no caso dos programas para construção de novas habitações.
A ATHIS tem tido dificuldade de se consolidar como parte das políticas habitacionais, sendo relegada a coletivos, organizações da sociedade civil e à extensão universitária. Nos projetos do PAC para urbanização de favelas em Curitiba, por exemplo, a ATHIS não foi utilizada nas intervenções.
Conforme Mariana Barbosa Miranda Borel, em 2020 o Laboratório Gráfico para Experimentação Arquitetônica identificou 11 municípios brasileiros com legislação própria ou programas de assessoria técnica. Além dos municípios, foram mapeadas cerca de 50 outras iniciativas realizadas por universidades, associações sem fins lucrativos, empresas com fins lucrativos, negócios sociais, ações viabilizadas pelo CAU e políticas em escala nacional.
Desafios
Os desafios para a incorporação da autogestão habitacional são ainda maiores em relação à ATHIS, se levarmos em conta a RMC. Na década passada, a execução do MCMV Entidades não se efetivou, mesmo com tentativas empreendidas por movimentos sociais atuantes na metrópole de Curitiba.
Assessoria técnica e autogestão habitacional demandam políticas habitacionais estruturadas, permanentes e com orçamento público suficiente. E, fundamentalmente, políticas que priorizem a população mais empobrecida. Além disso, dependem de investimento institucional para formação de quadros profissionais permanentes, com perfil multidisciplinar, qualificados para executar políticas habitacionais e com a formação crítica necessária para o enfrentamento das desigualdades territoriais da RMC.
Investir em capacidade institucional é urgente para que os municípios avancem no desenvolvimento de políticas habitacionais inovadoras e efetivas para atender a população de baixa renda. A atuação do Estado como promotor do bem-estar coletivo e do desenvolvimento sócio espacial, principalmente para as famílias mais vulneráveis, é uma necessidade fundamental e urgente na gestão de nossos municípios.
Essas ferramentas também têm o potencial de romper com a trajetória de execução de políticas descoladas da realidade, e incluir a participação popular como parte essencial do processo de construção de cidades mais equitativas. Além disso, contribuem com a promoção da autonomia de sujeitos e comunidades, rompendo com as relações clientelistas que tem caracterizado a execução das políticas habitacionais nos municípios.
Saberes populares
Reconhecer e considerar os saberes populares também é fundamental. As ocupações urbanas organizadas são espaços de moradia autoproduzidos, geridos por seus próprios moradores, cujas práticas tem muito a contribuir no desenho dos programas habitacionais pelos municípios. Movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), por exemplo, ajudam na coordenação coletiva das ocupações, produzindo novas práticas para gerir a vida comunitária (assembleias, votações e papéis de gestão assumidos pelos moradores) e a organização dos espaços de moradia e dos territórios.
Essas práticas são essenciais para que as formas de vida nesses territórios reflitam e dignifiquem a existência de seus moradores, aumentando a qualidade de vida e a justiça sócio espacial, e por isso precisam ser apropriadas pelas políticas municipais.
A participação possibilita ainda que os sujeitos testemunhem o conhecimento produzido a partir de suas vidas, de modo coletivo e onde vivem o seu dia a dia. Essas dimensões são normalmente ignoradas pelos programas tradicionais, nos quais prevalece a produção habitacional pelo mercado para aquisição da propriedade privada individual. As experiências autogestionárias visualizam a produção da cidade e da moradia como obra coletiva, destinada à realização da vida, confrontando-se, nesse sentido, com a lógica dominante da mercadoria.
Para além do enfrentamento do déficit e das precariedades, a incorporação da autogestão e da assessoria técnica territorial pelos municípios, pode fomentar práticas sociais emancipatórias e produzir cidades menos subordinadas à racionalidade capitalista, sendo esta uma das causas do problema habitacional e das desigualdades que assolam nossa metrópole.
Referências:
BOREL, M. B. M. Políticas Públicas de Assessoria Técnica em Arquitetura e Urbanismo: práticas na direção da autonomia.199 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós-Graduação de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020.
KOGA, D. Medidas de Cidades: entre territórios de vida e territórios vividos. 2ª edição. São Paulo: Editora Cortez, 2011.
LAGO, L. C. do. A produção autogestionária do habitat popular e a requalificação da vida urbana. In.: CARDOSO, A.; JAENISCH, S. T.; ARAGÃO, T. A. (Org) Vinte e dois anos de política habitacional no Brasil: da euforia à crise. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2017. p. 133-154.
NASCIMENTO, D. M. Moradia é possível pensar em alternativas? E-metropoles, Rio de Janeiro, n. 37, 2019. p. 6-12.
LEFEBVRE, H. La production de I’espace. Paris: Editora Anthropos, 1974.
Minibiografia das autoras:
Julia Silveira é Arquiteta e Urbanista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR e bolsista CAPES Demanda Social. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.
Kelly Maria Christine Mengarda Vasco é Assistente Social, Mestra em Planejamento Urbano pela UFPR e Doutoranda em Serviço Social pela PUC-SP, bolsista CAPES – PROEX. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles, o Laboratório de Habitação e Urbanismo (LAHURB) da UFPR e o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais (NEMOS) da PUC-SP.
Madianita Nunes da Silva é Arquiteta e Urbanista, Mestre e Doutora em Geografia pela UFPR, com Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da UFABC, Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles e o Laboratório de Habitação e Urbanismo (LAHURB) da UFPR.
Marcelle Borges Lemes da Silva é Arquiteta e Urbanista, Mestra em Planejamento Urbano pela UFPR e Doutoranda em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC, bolsista CAPES Demanda Social. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles e o Laboratório de Estudos e Projetos Urbanos e Regionais (LEPUR) da UFABC.