Menos de uma semana. Este é o tempo médio que um projeto de lei contra LGBTQIA+, falacioso e discriminatório, leva para começar a ser reproduzido nas casas legislativas brasileiras.
A Diadorim analisou quatro dos projetos de lei anti-LGBTQIA+ mais protocolados nos últimos quatro anos para entender o modus operandi por trás da criação e disseminação de propostas contra os direitos da população LGBTQIA+.
A análise revelou que, em média, bastam 5,75 dias para que um PL antiLGBTQIA+ seja replicado e comece a se espalhar pelo Brasil, atravessando os níveis municipal, estadual e nacional.
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Em geral, são textos que nascem a partir de eventos midiáticos, com o objetivo de incitar o pânico moral contra a população LGBTQIA+, e se alastram movidos a plágio e mentiras.
Entre os principais partidos responsáveis pela pulverização dessas propostas estão: PL (Partido Liberal), Republicanos, PP (Progressistas) e PSD (Partido Social Democrático).
Em menos de 24 horas
Em 11 de junho de 2023, a ONG Minha Criança Trans esteve na 27ª Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo. O bloco “Crianças e Adolescentes Trans Existem” reuniu cerca de 120 famílias com crianças e adolescentes trans na Avenida Paulista.
Após o evento, imagens dos participantes foram massivamente compartilhadas em grupos de extrema-direita e as mensagens de ódio e discriminação começaram a chegar até as famílias.
No dia seguinte, 12 de junho, o vereador Fernando Holiday (Republicanos) protocolou um PL, na Câmara de São Paulo, proibindo a participação de crianças e adolescentes nos desfiles relacionados à Parada do Orgulho LGBTQIA+ do município. A multa em caso de descumprimento seria de R$ 10 mil por hora.
No mesmo dia, o ex-vereador Tarcísio Jardim (PP-PB), agora deputado estadual pela Paraíba, também protocolou um PL na Câmara de João Pessoa requerendo a proibição da presença de menores de 18 anos em “paradas gays e eventos similares”, sob pena de multa de R$ 100 mil reais para a organização. Ele justificava a proposta dizendo que o evento promovia “vulgarização e agressão às famílias tradicionais”.
Em 13 de junho, a ONG Minha Criança Trans se manifestou em seus canais oficiais reiterando que as famílias usaram camisetas de identificação e foram acompanhadas por seguranças durante todo o evento, mas as represálias não cessaram.
No dia 14 de junho, a mesma proposta de proibição chegou à Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), pelas mãos do deputado Paulo Mansur (PL-SP).
Ele argumentou que “crianças e adolescentes estão em um processo de desenvolvimento físico, emocional e psicológico, e a exposição a situações que podem ser confusas ou inapropriadas para sua faixa etária pode gerar impactos negativos em seu desenvolvimento e bem-estar”.
Na visão do parlamentar, a presença de crianças em eventos do gênero violaria o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que prevê como “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, ao respeito, à liberdade e à dignidade”.
Em 19 de junho, o texto foi plagiado e protocolado na Alep (Assembleia Legislativa do Estado do Paraná) pelo deputado Ricardo Arruda (PL-PR).
No dia seguinte, 20 de junho, o deputado Delegado Péricles (PL-MA) também protocolou proposta similar na Assembleia Legislativa do Amazonas. Ele anexou fotos da Parada de São Paulo e disse que a presença de uma criança em eventos do gênero pode produzir “indesejável interferência de sua formação moral, podendo causar profundas lacerações e cicatrizes em sua futura personalidade”.
Hoje, são dezenas de projetos de lei contra LGBTQIA+ espalhados pelas casas legislativas do Brasil, a maioria movida a “copia e cola” de textos anteriormente protocolados. Ao menos dois viraram lei: um no estado do Amazonas e outro no município de Betim (MG). A proposta de João Pessoa foi aprovada em plenário, mas vetada pela prefeitura.
Não há consenso entre a comunidade científica sobre a idade em que as pessoas descobrem sua orientação sexual, mas é consenso que crianças LGBTQIA+ existem.
Em entrevista à BBC, a pesquisadora Asia Eaton, doutora em psicologia social e estudos de gênero e professora da Universidade Internacional da Flórida, afirma que “há estudos que revelam que os adultos de minorias sexuais experimentaram sua primeira atração sexual por pessoas do mesmo sexo por volta dos 8 ou 9 anos”.
De acordo com o pediatra José Luiz Egydio Setúbal, em texto publicado no jornal O Globo, a identidade de gênero costuma aparecer entre os dois e três anos, mas é aos sete que a criança tem plena consciência do que é e como quer se vestir, por exemplo.
Embora o preconceito quase sempre recaia sobre as vivências LGBTQIA+, Asia Eaton assegura que as pesquisas apontam que a aceitação e o suporte de amigos e família são essenciais para diminuir o impacto negativo da violência.
Em 7 de novembro de 2023, às vésperas da 22ª Parada LGBTQIAPNB+ de João Pessoa, a Câmara de Vereadores do município aprovou a proposição de Tarcísio Jardim, gerando revolta não apenas nos movimentos sociais, mas também no judiciário.
No dia seguinte, 8 de novembro, o Ministério Público da Paraíba recomendou que o prefeito Cícero Lucena vetasse o PL, derrubando o argumento de que a presença de crianças e adolescentes em eventos LGBTQIA+ violaria o ECA.
“Esse projeto busca proibir a participação de crianças em eventos promovidos por essa população sob uma falsa premissa de que estariam associados esses a práticas de erotização, de sexualização”, apontou a promotora Fabiana Lobo. “Então isso é um preconceito, é um ato de homofobia, é um ato de transfobia e por isso padece de inconstitucionalidade.”
Na visão da profissional, violações de direitos de crianças e adolescentes ocorridas em eventos similares devem ser apuradas de maneira isolada, sem generalizações discriminatórias. Seu posicionamento foi endossado pelo Ministério Público Federal.
‘Linguagem neutra’
Em 11 de novembro de 2020, um blog ligado ao jornal O Globo noticiou que o Colégio Franco-Brasileiro do Rio de Janeiro havia adotado um “terceiro gênero” na língua portuguesa e passado a se referir aos estudantes como “querides alunes”.
No mesmo dia, os deputados cariocas Anderson Moraes (PL-RJ), Márcio Gualberto (PL-RJ) e Danniel Librelon (Republicanos-RJ) protocolaram o PL 3325/2020, requerendo a proibição do uso de “linguagem neutra” nas instituições de ensino do estado. O texto, escrito às pressas, pede que “nossa língua portuguesa seja preservada de questões ideológicas”.
Em 13 de novembro, Robério Negreiros (PSD-DF) propôs que a proibição se estendesse ao Distrito Federal, por meio do PL 1557/2020. No documento, ele argumenta que o masculino é o gênero neutro da língua portuguesa e “não há qualquer machismo” nisso. O parlamentar ainda alega que a “linguagem neutra” exclui “os cegos, os surdos e os dislexos” (sic).
Cinco dias depois, em 18 de novembro, seu projeto foi plagiado pelo deputado Jessé Lopes (PL-SC), de Santa Catarina. Até mesmo os erros de gramática foram copiados. O mesmo ocorreu em Rondônia e São Paulo.
Também em 18 de novembro, o pedido chegou à Câmara Federal. O deputado Junio Amaral (PSL-MG) protocolou o PL 5198/2020, cujo texto é diferente dos demais, mas segue a mesma linha de argumentação. O projeto tramita em conjunto com outros 21 apensados por tratarem do mesmo tema.
De 2020 para cá, projetos de lei contra LGBTQIA+ similares correram 80% dos estados brasileiros. Somente Roraima, Pará, Tocantins, Piauí e Amapá não aderiram à articulação conservadora. Em três estados, o projeto chegou a virar lei: Amazonas, Paraná e Rondônia.
Em fevereiro de 2023, o STF (Supremo Tribunal Federal) considerou a Lei Estadual nº 5.123, apresentada pelo deputado Eyder Brasil (PSL-RO) em Rondônia, inconstitucional. Em seu parecer, o órgão argumentou que cabe à União legislar sobre diretrizes e normas gerais de ensino. Além disso, os ministros frisaram que a linguagem inclusiva expressa elemento essencial da dignidade das pessoas, portanto, “cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la”.
Mesmo após o posicionamento do Supremo, projetos idênticos e similares continuam tramitando e as leis do Paraná e do Amazonas permanecem em vigor.
Grande parte dos linguistas brasileiros aponta que a língua portuguesa é machista porque o uso do masculino como gênero neutro é uma escolha política que serve à manutenção do patriarcado – entre eles, Davi Silva Gonçalves, doutor em Teoria, Crítica e História da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina.
“Categorias dominantes dominam tudo que se cria, dominam as instituições, os epistemes e as ferramentas que utilizamos para tentar rearticulá-los. Foi assim que a mulher foi privada de autonomia, e construída como um mero reflexo deformado do homem. A língua, assim, foi o espelho convexo desse reflexo”, escreve o autor.
Janaisa Viscardi, doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas, defende que a linguagem não binária é uma construção criativa da comunidade de escreventes e falantes – e como a língua portuguesa é mutável, deve ser respeitada. “A violência é contra um grupo da sociedade que se revela também na língua. É, sim, um preconceito linguístico, mas é um preconceito que está na sociedade”, coloca.
Além disso, é falso que a linguagem não binária exclui pessoas com dislexia, deficiência auditiva e/ou visual. O “@” e a letra “x”, que já foram muito utilizados dentro da neolinguagem, deram lugar às letras “e” ou “u” justamente para facilitar a leitura e compreensão por diferentes públicos.