Um levantamento elaborado pela ONG norte-americana EIA (Agência de Investigação Ambiental, na sigla em inglês) mostra que, entre janeiro de 2020 e o início de 2023, a JBS teria comprado gado criado em fazendas ilegais na Terra Indígena Apyterewa. Além dela, a FriGol também teria recebido animais de fazendas na Amazônia utilizadas para burlar as regras ambientais.
Em 2009, empresas produtoras de carne assumiram o compromisso público de não comprar animais criados em propriedades que desmataram, usaram trabalho análogo à escravidão ou cometeram outras irregularidades socioambientais. Entre as companhias está a JBS, maior produtora de carnes do mundo, que estaria descumprindo a promessa.
Os casos analisados pela EIA envolvem fazendas localizadas em São Félix do Xingu (PA), que abriga a terra indígena. De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre 2008 e 2023, o território foi o mais desmatado das áreas indígenas da Amazônia e já perdeu mais de 476 km² de florestas, dois terços delas durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) estimou, em maio de 2023, que 60 mil bovinos estão sendo criados ilegalmente na Terra Indígena Apyterewa, ocupando uma área de aproximadamente 900 km².
A EIA destaca, no entanto, que os fazendeiros ilegais não encontraram restrições para vender o gado criado na terra indígena. A Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará) não só registrou essas propriedades ilegais como emitiu guias de trânsito animal (GTAs) para o transporte dos bovinos entre as fazendas.
As GTAs são exigidas por lei para cada movimentação e documentam origem e destino, nome, CNPJ, CPF do vendedor e comprador do lote bovino, controle de doenças, quantidade e faixa etária de animais, bem como se o transporte se destina à criação, engorda ou abate. É um documento sigiloso ao qual apenas os órgãos emissores e o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) têm acesso e que só não é exigido para o transporte de gatos e cachorros.
Questionada pela Agência Pública sobre os registros das propriedades e emissão de GTAs, a Adepará não se manifestou até o momento. Este espaço será atualizado tão logo haja resposta.
Até onde os registros alcançam
De 2020 ao início de 2023, a agência paraense emitiu 217 GTAs para o transporte de 11.757 bovinos a partir de 58 fazendas ilegais na Terra Indígena Apyterewa para propriedades fora do território. A ONG norte-americana aponta que essa é uma estimativa conservadora, já que, segundo o Ministério Público Federal (MPF), geralmente os animais são transferidos sem documentação.
Pouco mais de 6,1 mil animais transportados da região tiveram como destino 43 fazendas intermediárias fora da terra indígena que venderam gado para a JBS. A ação configura a chamada “triangulação” ou “lavagem” de gado, que tenta burlar a fiscalização ambiental, como ocorreu em casos envolvendo a empresa em Mato Grosso, revelado pela Repórter Brasil.
“No geral, cerca de 17% dos animais que saíram dessas fazendas intermediárias foram para a JBS, mas algumas fazendas vendiam principalmente para a JBS, aumentando a probabilidade de que o gado criado em Apyterewa fosse vendido para a empresa”, afirma a EIA.
O levantamento indica que 91% do gado proveniente de fazendas intermediárias e destinado para a JBS foi encaminhado ao abatedouro da empresa em Tucumã (PA) e o restante para suas unidades nos municípios paraenses de Redenção (6%), Santana do Araguaia (1,4%) e Marabá (1,3%). Já as peles desses animais são processadas, em sua maioria, no curtume da JBS em Marabá.
Das fazendas intermediárias que venderam gado para a JBS, 31 também enviaram para a FriGol. A empresa tem dois abatedouros nos municípios paraenses de São Félix do Xingu e Água Azul do Norte. Outras 22 propriedades que receberam gado ilegal de Apyterewa venderam animais para a FriGol, mas não para a JBS.
“As transferências para a FriGol – principalmente para sua unidade em São Félix do Xingu – representaram cerca de 30% dos animais que saíram dessas 53 fazendas intermediárias, mas algumas dessas fazendas venderam principalmente para o FriGol, aumentando a probabilidade de que a empresa tenha recebido gado criado em Apyterewa”, aponta o estudo.
A suspeita que “mora” ao lado
Vizinha à Terra Indígena Apyterewa, da fazenda Boi Branco foram transportadas 3 mil cabeças de gado entre 2020 e início de 2023. No período analisado, apenas 270 animais foram recebidos. De acordo com a EIA, o dado é um indício de que o gado pode ter sido transportado sem documentação ou de que a Boi Branco foi indicada como a fazenda de origem para os animais que, na verdade, estavam saindo da terra indígena.
Segundo a organização, informações de uma fonte sigilosa confirmam que o dono da propriedade, de fato, criava gado em Apyterewa e vendia regularmente para a JBS. Com base nos dados das GTAs, é possível estimar a probabilidade de o gado ilegal ter sido “lavado” em fazendas intermediárias e vendidas para empresas como Frigol e JBS, o que varia de acordo com os volumes negociados anualmente.
Dados encontrados nas GTAs revelam que aproximadamente 80% das quase 3 mil cabeças de gado que saíram da fazenda Boi Branco foram transferidos para outra propriedade vizinha à terra indígena, a fazenda Vaca Baia II. O proprietário da Vaca Baia II é irmão do dono da Boi Branco. A EIA constatou também um caso de transferência direta de 14 animais de uma fazenda ilegal na terra indígena para a Vaca Baia II.
Com base em dados do MapBiomas e imagens de satélite, a organização descobriu que o uso da terra na fazenda Vaca Baia II conflita com o que consta no Sistema de Cadastro Ambiental Rural do Pará (Sicar). Pela análise, a maior parte da propriedade ainda é composta por vegetação nativa e apenas cerca de 50 hectares são para pastagem. Também não há nenhum indício de instalações para confinamento de gado.
O registro no Sicar informa que o imóvel tem área total de 216 hectares, sendo 180,5 já afetados pela ação humana e 34,7 de vegetação nativa. Mesmo com o possível conflito com o registro oficial, de janeiro de 2020 a março de 2023, foram emitidas GTAs para o transporte de quase 3 mil animais da fazenda, a maior parte destinada a abatedouros. Desse grupo, cerca de 57% foram enviados ao abatedouro da JBS em Tucumã, a 100 km de São Félix do Xingu, e 38% para outros abatedouros, inclusive da FriGol.
A JBS e a FriGol seguem o Protocolo de Monitoramento de Fornecedores de Gado da Amazônia, elaborado pelo MPF em parceria com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora). O documento estabelece diretrizes e critérios que devem ser adotados pela cadeia produtiva da carne, com o objetivo de impedir irregularidades socioambientais no bioma. Um desses critérios define que, se não houver evidência de que há estrutura para confinamento de gado, uma fazenda que exceda um índice de produtividade de três cabeças de gado por hectare de área de produção por ano está inapta para atuar como fornecedora.
Por essa regra, com base na área de pastagem da fazenda Vaca Baia II, a propriedade só poderia ter fornecido no máximo cerca de 150 cabeças de gado por ano. Mas não foi o que ocorreu. Dados das GTAs mostram que a JBS recebeu cerca de 1.686 animais ao longo de mais de três anos, número muito acima do critério estabelecido.
A EIA destaca que, embora só tenha tido acesso às informações das GTAs até março de 2023, dados de fornecedores diretos divulgados pela empresa alimentícia mostram que o abatedouro em Tucumã recebeu gado da fazenda Vaca Baia II regularmente até novembro de 2023.
Esse não foi o único caso de triangulação de gado envolvendo a JBS. Entre 2020 e o início de 2023, outra propriedade em São Félix do Xingu, uma fazenda chamada Nova Esperança, recebeu pelo menos 131 cabeças de gado de duas fazendas ilegais dentro da Terra Indígena Apyterewa. De acordo com as GTAs, o principal destino dos animais que deixaram a Nova Esperança no período foi o abatedouro da JBS em Tucumã: do total de 3.272 bovinos, 2.978 (cerca de 91%) foram enviados para a unidade da companhia.
Dados das GTAs sobre a fazenda Nova Esperança permitem identificar apenas as movimentações ocorridas até maio de 2023, mas informações de fornecedores diretos divulgadas pela JBS mostram que a empresa continuou comprando gado regularmente de uma fazenda com o mesmo nome até o fim de 2023.
Em nota enviada à Agência Pública, a JBS afirma que bloqueou as propriedades mencionadas. “As compras feitas até então estavam em conformidade com o Protocolo Boi na Linha, elaborado pelo MPF e pela ONG Imaflora, e com as normas da Política de Compras de Matéria-Prima da Companhia”, disse.
Mais gado do que se pode(ria) fornecer
O estudo também mostra uma ocorrência ainda maior de triangulação de gado em São Félix do Xingu. A EIA constatou que uma das propriedades com grande fornecimento de animais para a JBS e a FriGol, o Sítio 2 Irmãs, sequer tinha evidências de que pudesse confinar a quantidade de gado destinada para essas empresas.
Os dados disponíveis no Sicar mostram que a área total da propriedade é de 70 hectares, com 47 deles destinados à produção. Pelo Protocolo de Monitoramento de Fornecedores de Gado da Amazônia, o Sítio 2 Irmãs, em tese, só poderia fornecer 141 cabeças de gado por ano, mas o local forneceu mais de 18 mil animais para a FriGol e a JBS entre 2020 e 2023.
Durante o período em questão, o sítio recebeu 1.075 cabeças de gado de sete fazendas ilegais em Apyterewa, 5% do total de 21.607 animais recebidos nesse prazo. A EIA destaca que o Sítio 2 Irmãs está localizado a alguns quilômetros da vila de Taboca. Em maio de 2023, o Ibama afirmou que os invasores da terra indígena utilizam o local como “ponto de apoio para a grilagem de terras e comércio ilegal do gado criado clandestinamente”.
Do total de 23.752 cabeças de gado que deixaram a propriedade entre 2020 e o início de 2023, 65% foram enviados à FriGol, enquanto outros 12%, para a JBS. Pela análise das GTAs no período, só é possível identificar o transporte de animais até abril de 2023. Entretanto, segundo informações publicadas pela JBS de seus fornecedores diretos, a empresa seguiu comprando gado de uma propriedade com o mesmo nome até setembro de 2023.
Em resposta à Agência Pública, a FriGol afirmou que “a sustentabilidade está no centro de sua estratégia de negócios e reitera que não tolera qualquer tipo de desrespeito às comunidades indígenas, ao meio ambiente e à legislação nacional”. A empresa confirmou ter comprado gado do Sítio 2 Irmãs entre 2020 e 2023, mas disse que, “antes de cada aquisição, o pecuarista e a propriedade passaram pelos critérios do protocolo de monitoramento de fornecedores diretos e não houve irregularidades detectadas”.
A companhia ressalta que sua avaliação utiliza critérios além dos já estabelecidos no Protocolo de Monitoramento dos Fornecedores de Gado na Amazônia, do qual é signatária. A partir dessa análise, segundo a companhia, não foram encontradas razões para bloquear o Sítio 2 Irmãs como fornecedora.
A empresa diz defender que a única forma para acabar com o desmatamento indireto na cadeia de produção é o monitoramento individual de animais. “Hoje existem algumas iniciativas privadas de monitorar individualmente animais via colocação de brincos. A FriGol, inclusive, já é participante e abate animais monitorados individualmente, via Protocolo Primi [em que cada animal recebe uma numeração única e individual]”, afirma.
Em nota enviada à Pública, a JBS afirma que bloqueou a empresa. “As compras feitas até então estavam em conformidade com o Protocolo Boi na Linha, elaborado pelo MPF e pela ONG Imaflora, e com as normas da Política de Compras de Matéria-Prima da Companhia”, disse.
Falta monitoramento e vontade política
Em entrevista à Pública, o coordenador de políticas de commodities da EIA, Rick Jacobsen, afirmou que o levantamento evidencia a necessidade de que todas as cadeias de fornecimento indiretas também precisam ser monitoradas.
“Entendemos que a maior parte do gado associado ao desmatamento ou à pecuária ilegal não é vendida diretamente aos grandes frigoríficos, mas indiretamente. Portanto, um sistema que se concentra só nos fornecedores diretos, não apenas não aborda o problema, mas também mostra aos fazendeiros como eles podem facilmente evitar o monitoramento simplesmente colocando camadas na cadeia de suprimentos entre a pecuária ilegal e o abatedouro”, declarou.
Jacobsen afirma ainda que, além de reforçar a aplicação das leis ambientais, o governo brasileiro também precisa instituir um sistema nacional de rastreabilidade, como já adotado, por exemplo, na União Europeia. Ele reconhece, no entanto, a dificuldade de que isso seja colocado em prática por questões políticas.
“Não acho que existam desafios técnicos ou de custo que sejam impeditivos. Outros países mostraram que é possível ter esse tipo de sistema de rastreabilidade em vigor no setor pecuário. Acho que o problema é que muitas pessoas do setor não querem o sistema, especialmente aquelas que se beneficiam da pecuária ilegal”, pontuou.
Edição: Ed Wanderley