O mandato de cinco anos do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, terminou no dia 20 de maio, mas devido à lei marcial adotada por conta da guerra com a Rússia, não foram realizadas eleições no país. A continuidade da presidência de Zelensky sem nova votação gerou, por parte da Rússia, uma discussão sobre a legitimidade do seu cargo.
A princípio, as eleições na Ucrânia estavam marcadas para acontecer no dia 31 de março, mas em novembro de 2023, Zelensky declarou que na situação atual, a realização de eleições não seria oportuna, e apenas levaria à desunião no país. De acordo com ele, a Ucrânia deve se concentrar na defesa contra a Rússia, destacando que “agora não é hora para eleições”. Com o fim do mandato, o Kremlin reforçou a retórica de que a autoridade presidencial de Zelensky não é mais legítima.
A controvérsia acontece às vésperas da cúpula de paz, que será realizada entre 15 e 16 de junho na Suíça, e para a qual a Rússia não foi convidada. Para o presidente russo, Vladimir Putin, o objetivo do evento será respaldar a autoridade de Zelensky.
“Penso que um dos objetivos da conferência que foi anunciada na Suíça é precisamente que a comunidade ocidental, os patrocinadores do atual regime de Kiev, reafirme a autoridade do chefe de Estado em exercício, ou melhor, que estava em exercício. […] É claro que consideramos que a legitimidade do atual chefe de Estado [Volodymyr Zelensky] terminou”, afirmou Putin.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político ucraniano, Andrei Zolotaryov, aponta que “é perfeitamente compreensível que, nas condições de guerra, é muito difícil realizar eleições sob a atual legislação” na Ucrânia, mas observa que “poderia ser adotada uma lei transitória, levar em conta a votação de ucranianos fora do país, considerando que houve no mínimo 6 milhões de pessoas que saíram do país, isso poderia ser feito”.
Ao mesmo tempo, o analista observa que a narrativa da Rússia colocando em xeque a legitimidade da presidência de Zelensky já estava prevista. De acordo com Zolotaryov, a situação do prazo do mandato do presidente ucraniano se encaixa na retórica do Kremlin de que o Ocidente é quem controla as decisões políticas na Ucrânia.
“Mesmo antes do momento em que se esgotou o prazo do mandato, autoridades russas já falavam que não iriam realizar negociações com Zelensky. Sabemos perfeitamente que no campo midiático sempre foi disseminada a ideia de que a Rússia não luta contra a Ucrânia, mas com o ‘Ocidente coletivo’. E isso é um pretexto perfeito para dizer ‘o que discutir com Zelensky, se ele não é legítimo?’”, afirma o cientista político.
O analista afirma que esta narrativa da Rússia servirá como um “instrumento de pressão para alcançar alguma posição de concessão (da Ucrânia)”.
Os principais motivos para a não realização das eleições, além dos constantes bombardeios em áreas urbanas e confrontos na linha de frente, são as dificuldades econômicas e logísticas para um processo eleitoral em todo o país. Outro argumento é o êxodo de milhões de pessoas que saíram do país por causa da guerra.
:: Após fim de mandato de Zelensky, Rússia põe legitimidade da presidência ucraniana em xeque ::
De acordo com a constituição da Ucrânia, o presidente do país é eleito por cinco anos, mas não está prevista a extinção automática dos seus poderes após o término deste mandato. É o que observa o diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, em entrevista ao Brasil de Fato.
“Independente do fato de que está estabelecido na constituição um mandato de cinco anos para o presidente da Ucrânia em seu cargo, também está na constituição que o prazo do cargo de presidência não pode ser interrompido, ou seja, o trabalho da presidência não pode ser interrompido, mesmo que para além do prazo do mandato”, argumenta.
De acordo com o Artigo 103 da constituição do país, “o presidente da Ucrânia é eleito pelos cidadãos da Ucrânia com base no sufrágio geral, igual e direto, por voto secreto, por um período de cinco anos”. Ao mesmo tempo, o artigo 108 afirma que “o presidente da Ucrânia exercerá os seus poderes até que o recém-eleito Presidente da Ucrânia assuma o cargo”.
A Comissão Eleitoral Central da Ucrânia deu um parecer sobre o caso, afirmando que, no que diz respeito a relação entre a realização de eleições e a instauração de um regime de lei marcial, a lei do país aponta que durante o estado de guerra os poderes do presidente da Ucrânia não podem ser extintos, e “em caso de expiração do mandato do presidente da Ucrânia durante a lei marcial, os seus poderes continuam até à assunção do cargo do recém-eleito presidente da Ucrânia, eleito após o levantamento da lei marcial".
Ao mesmo tempo, de acordo com a Constituição ucraniana, a instauração da Lei Marcial prevê a proibição das eleições parlamentares, mas deixa ambiguidades sobre a questão da votação para presidente, pois não explicita diretamente que eleições presidenciais não podem acontecer na condição de um estado de guerra.
“Há uma disposição clara de que as eleições para a Verkhovna Rada [parlamento] não são possíveis em uma condição de lei marcial, isso existe em relação às eleições na Verkhovna Rada, mas, de maneira gratuita, decidiram estender isso para as eleições presidenciais, fazendo um destaque para a necessidade da não interrupção do governo, mas isso acontece, porque no campo legislativo ucraniano, há muitas normas mutuamente excludentes entre si, que quando uma é conveniente, você pode fechar os olhos para a outra, ou vice-versa”, disse o cientista político Andrei Zolotaryov.
Esta falta de clareza foi explorada por Vladimir Putin. Em uma nova declaração na última terça-feira, dia 28, o presidente russo citou um outro artigo da constituição ucraniana para argumentar que o poder legítimo do país, no atual contexto de guerra e ausência de eleições, ficaria nas mãos do parlamento. Ao mesmo tempo, Putin reconheceu que esta é uma análise ainda “preliminar” da lei ucraniana.
“Existe o artigo 111º da constituição da Ucrânia, que afirma que, neste caso, o poder supremo, na verdade, os poderes presidenciais, são transferidos para o presidente do parlamento. Além disso, nas condições da lei marcial, os poderes do parlamento são alargados. Esta é uma análise preliminar, precisamos olhar mais detalhadamente.
“Portanto, a rigor, de acordo com uma avaliação preliminar - falo apenas de acordo com uma avaliação preliminar - a única autoridade legítima continua a ser o parlamento e o presidente da Verkhovna Rada. E assim, em geral, se quisessem realizar eleições presidenciais, então a lei marcial teria de ser abolida, só isso, e as eleições seriam realizadas. Mas eles não quiseram fazer isso por vários motivos”, acrescentou.
De acordo com o cientista político Ruslan Bortnik, o presidente russo faz uso de uma “uma tecnologia política e uma leitura muito específica da lei e da Constituição da Ucrânia”.
“Trata-se de uma interpretação russa, é uma tecnologia [política], que é muito interessante, e tem o objetivo de alcançar dois resultados. O primeiro é um resultado internacional. Com estas declarações, a Rússia busca "passar por cima" da Ucrânia. No sentido de dizer que ‘nós não vamos ter negociações com a Ucrânia, mas vamos realizar negociações diretamente com os EUA’, que a Ucrânia não tem uma autoridade legítima. É uma estratégia de negociação que a Rússia busca aplicar desde o começo da guerra, ou seja, de querer tirar a Ucrânia da mesa de negociações, realizar negociações diretamente com o Ocidente”, analisa.
"Em segundo lugar, é uma forma de tentar influenciar os países do Sul Global. sobretudo às vésperas da Cúpula internacional de paz, na Suíça. É dizer a esses países que se eles forem a essa cúpula, então eles vão estar legalizando o ilegítimo presidente da Ucrânia, influenciar para que esses países não compareçam ou diminuir o nível da representação política, que não tenha chefes de Estado", acrescenta.
Apesar dos esforços russos, na sociedade e no parlamento da Ucrânia, não há uma discussão acalorada sobre a legitimidade de Zelensky. No entanto, como não há uma perspectiva de resolução da guerra no horizonte, o status de permanente prolongamento do mandato de Zelensky pode gerar dilemas para a democracia ucraniana.
Neste contexto, Ruslan Bortnik observa que “é preciso diferenciar o entendimento de legalidade e legitimidade”, pois “são duas ideias distintas e muito confundidas”. De acordo com ele, do ponto de vista da legalidade, “a manutenção de Zelensky em seu cargo, ou do parlamento, é absolutamente legal”.
“Legalidade é jurídica. Já a legitimidade é um termo jurídico-político, que diz respeito ao reconhecimento do direito internacional, reconhecimento de outros Estados, organizações internacionais, ONU, Conselho da Europa, UE, outros governos, etc. E diz respeito ao nível de popularidade, de apoio dentro da sociedade. E também inclui a questão jurídica. A legitimidade inclui a legalidade, mas a legitimidade representa legalidade mais reconhecimento internacional, mais popularidade”, argumenta.
“Então se falarmos de legitimidade, tudo fica mais complexo. Se Zelensky começar a perder apoio internacional, perder apoio dentro da sociedade, então começarão a surgir problemas sérios neste aspecto”, completa o cientista político.
Edição: Rodrigo Durão Coelho