Essa entrevista histórica integra o livro "É Preciso Coragem para Mudar o Brasil", publicado pela editora Expressão Popular em 2006 e que reúne uma série de conversas com grandes nomes do campo popular, publicadas nos primeiros anos do Brasil de Fato. Como parte das celebrações dos 20 anos do jornal, completados no ano passado, vamos publicar mais entrevistas memoráveis ao longo dos próximos meses. Este projeto de resgate da memória do nosso jornalismo é uma parceria com a Expressão Popular.
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Violência ilegal de Israel, a "pior ofensiva da história" contra a população de Rafah, a necessidade de pressão internacional e de convencer a população israelense a impedir que seu governo siga cometendo atrocidades. Esses são temas discutidos nos dias de hoje - em que o genocídio palestino conduzido por Israel em Gaza já matou mais de 36 mil pessoas, a maioria mulheres e crianças, revolta o mundo.
Mas tópicos abordados na entrevista abaixo, com Yasser Arafat, feita por João Alexandre Peschanski e publicada no Brasil de Fato em 27 de maio de 2004, apenas meses antes da morte do maior líder político da história palestina. Leia abaixo:
O presidente da Autoridade Nacional Palestina, Yasser Arafat, denuncia o massacre do qual o povo palestino é vítima. Segundo ele, desde 2001, foram 73 mil pessoas mortas e feridas por soldados israelenses. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Arafat condena a política de Ariel Sharon [então primeiro-ministro de Israel], acusado de cometer um crime contra a humanidade. Para deter o massacre, diz, a comunidade internacional precisa se mobilizar. Impedido de sair há três anos de seu quartel-general, que está em ruínas e sob constante ataque de soldados israelenses, ele acredita que a paz ainda pode ser construída e alcançada na região.
Brasil de Fato: A população israelense, a não ser uma ínfima minoria, se cala quanto à violência que o governo de Sharon promove na Palestina. O que falta para surgir um grande movimento em Israel que se oponha à ocupação?
Yasser Arafat: Em Tel Aviv, no dia 15 de maio, ocorreu uma manifestação com mais de 150 mil pessoas, todas israelenses. Querem a paz, e por isso sempre temos contato com elas, mostrando o que se passa com o povo palestino e denunciando a política de Sharon.
O grupo que governa Israel hoje é extremista e não quer o diálogo, mas sim interromper as negociações e matar todos os que tentarem impedi-los de ter o domínio total do território. É o grupo que assassinou o primeiro-ministro israelense Itzakh Rabin. É o mesmo grupo que promove um massacre cotidiano da população palestina nos territórios ocupados. É o mesmo grupo que destrói qualquer uma de nossas tentativas de criar um Estado palestino.
Milhares de casas destruídas, plantações queimadas, pessoas assassinadas. A violência do Exército de Israel não tem limites?
Não respeitam nem mesmo lugares sagrados. Na Semana Santa, soldados israelenses atacaram a Igreja do Santo Sepulcro, que está em território palestino, e destruíram parte do local considerado sagrado para muçulmanos e católicos. Os soldados não permitem que os muçulmanos entrem em Jerusalém para orar. Perto de Ramallah, havia a igreja mais antiga do mundo, chamada Santa Bárbara, que foi completamente dinamitada pelos soldados.
E qual era a explicação? Mais tarde descobrimos que destruíram a igreja mais antiga do mundo para construir parte do muro que isola a população palestina. Infelizmente, não houve protestos internacionais contra isso. Lembra quando os talebans explodiram aquelas imagens de Buda [no Afeganistão, em março de 2001]? Naquele momento, houve protestos em todo o mundo. Como isso pode ser aceito pelo mundo?
A comunidade internacional, salvo em algumas ocasiões, não ousa denunciar o governo israelense, muito por medo do apoio que Sharon recebe do governo dos Estados Unidos. O que os governantes de outros países dizem para o senhor? Como justificam suas posições?
O presidente estadunidense, George W. Bush, justificou o ataque ao Iraque, acusando o governo do país de possuir armas de destruição em massa. Segundo pesquisas estadunidenses, o governo israelense usa e abusa de armas químicas, especialmente urânio, contra a população palestina. Outros estudos chegaram ao mesmo resultado.
As consequências das armas químicas israelenses são quase idênticas às das bombas atômicas de Nagasaki e Hiroshima. Inlizmente não há protesto internacional contra isso. O governo de Israel constrói um muro que confisca terras – 58% das terras palestinas na Cisjordânia – e cria pequenos guetos de populações, cercados e controlados militarmente, e a comunidade internacional se cala. Nas condições atuais, e sob ataque constante de Israel, não dá para criar um Estado.
Em todas as declarações das autoridades palestinas, incluindo as minhas, apontamos nossa vontade de criar a paz e cooperar para construí-la. Enquanto falamos de paz, os soldados israelenses confiscam ou arrasam nossas melhores terras.
A grande mídia diz que a ofensiva em Rafah é a pior de todos os tempos.
A destruição é quase total. Casas, vidas, tudo se perde. Agora falam de uma possível retirada, mas é uma grande mentira. Falam da retirada de “algumas” posições militares, mas não todas. Diziam que não mais atacariam, mas a metade da cidade de Rafah está destruída.
Dezenas de pessoas morreram. Sharon declara publicamente que continuará a destruir casas em Rafah, mesmo contra decisões da Organização das Nações Unidas (ONU), e a separar cada vez mais a Cisjordânia de Gaza. Também propõe dividir a Faixa de Gaza em três partes, desconectadas umas das outras, além de manter o controle sobre palestinos por terra, mar e ar.
Gaza se transformou em uma grande prisão, com todos os níveis de terror que isso gera. Até o momento, 80% das terras cultiváveis de Gaza foram destruídas. Quem pode aceitar isso? Infelizmente, não há suficientes protestos internacionais. Nos últimos três anos e meio, temos 73 mil pessoas mortas ou feridas. Dos feridos, 31% são crianças. O número de inválidos cresce a cada dia, e hoje representa 38% dos feridos. Também não há protestos internacionais. Além disso, o governo israelense adota uma política de confiscar todas as arrecadações tributárias destinadas às autoridades palestinas.
Não temos como manter nossas escolas e hospitais funcionando. A vida cotidiana de nosso povo se torna quase impossível. A destruição dos prédios públicos é quase total, temos que reconstruir tudo. E quando reconstruímos, eles atacam de novo.
O senhor vive isolado, no meio de prédios totalmente destruídos. É assim a vida dos palestinos hoje?
Estou há três anos isolado, vivendo no meio de uma destruição indescritível e sob ataque constante, e sou o presidente eleito. A situação do povo é muito pior. Três mil observadores internacionais acompanharam a eleição e concluíram que era legítima. Mas isso nada vale para os soldados israelenses que intensificam a violência contra nosso povo.
É um castigo coletivo imposto ao nosso povo. O que pedimos é o cumprimento das decisões internacionais, que indicam a necessidade de se criar um Estado palestino soberano, com base em acordos que assinamos com o governo israelense. São milhares de acordos e resoluções assinadas e aceitas, tanto por nós quanto por israelenses, que nunca foram cumpridos.
Alguns deles firmados com o próprio Sharon, quando ele era ministro [das Relações Exteriores], em 1998. Posso enumerar cada um deles, e o mundo sabe que nenhum foi cumprido. O governo israelense quer construir a paz só no discurso, pois tem uma política de guerra e massacre. A destruição ocorre sem parar, acompanhada do terror, em Gaza e na Cisjordânia.
As negociações não funcionaram. Como os palestinos e as pessoas solidárias à luta contra a ocupação israelense podem ajudar a acabar com o massacre?
A comunidade internacional precisa se mobilizar. Estamos sendo massacrados e pedimos socorro. O mundo não aceitou o Muro de Berlim, e o Muro foi destruído. É preciso criar uma rede internacional para derrubar o muro que o governo israelense constrói. As resoluções da ONU existem; por que não mandam ajuda militar, que seja? Mandam tropas para diversos países, e por que não para a Palestina também? A comunidade internacional precisa proteger os campos de refugiados palestinos, isso faz parte dos direitos internacionais. É preciso que haja observadores internacionais para ver o massacre.
Não há proteção internacional para nós. Em Belém, quando a cidade foi sitiada, tentaram incendiar uma igreja, patrimônio universal da humanidade, dizendo que havia terroristas escondidos. O governo israelense não respeita a humanidade e é toda a humanidade que precisa detê-lo. E quando pessoas solidárias à luta do povo palestino vêm protestar aqui, muitas vezes são deportadas ou até assassinadas. O governo israelense não respeita as decisões e a vontade da humanidade. É preciso detê-lo.
Edição: Rodrigo Durão Coelho