Desde 2018, o México está passando por um processo de mudanças caracterizadas, na palavra de quem as dirigiu até agora, como a quarta transformação mexicana. Hoje, domingo 2 de junho, os mexicanos vão às urnas para decidir se vão dar à Claudia Sheinbaum a responsabilidade de construir o segundo andar dessa transformação ou se vão interromper a obra e deixar o país novamente nas mãos do centro-direita, com Xóchitl Gálvez (PAN), que reúne exatamente os outros dois partidos tradicionais: PRI e PRD, embora este último, por muitos anos, representasse a alternativa progressista, já deixou de sê-lo.
Ao falar em quarta transformação, o presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) colocou seu governo em um horizonte histórico, retomando trajetórias passadas, mas também apontando para uma trajetória que deve ir além dos seis anos de seu mandato para se completar. A primeira transformação foi a Independência em 1821, a segunda a Reforma (1857-1861) dos liberais contra os conservadores liderada por Benito Juárez, e a terceira a Revolução Mexicana (1910-1917) liderada por Emiliano Zapata e Pancho Villa contra a ditadura de Porfírio Díaz e o latifúndio.
AMLO publicou, em 2020, um livro intitulado Para uma Economia Moral, no qual defende a essência do que chama de “novo pacto social por um modelo de desenvolvimento pelo qual o México deve renascer da longa e obscura noite do neoliberalismo”: a transformação para uma economia nacional baseada na prosperidade geral da população, um estado de bem-estar social que implica reestruturação das instituições e práticas políticas existentes. Na campanha de Claudia, a defesa da Economia Moral foi traduzida para o slogan “Para o bem de todos, os pobres em primeiro lugar”.
Por que deu certo?
AMLO deixa seu mandato com uma aprovação popular de 60%, três vezes maior do que os 20% com os quais seu antecessor Enrique Peña Nieto terminou o governo. Lembrando que o mandato é de seis anos, sem reeleição. Como explicar sua popularidade?
Certamente não faltaram, ao longo de seu mandato, ataques e campanhas dos interesses conservadores e das elites tradicionais, inclusive por meio da imprensa comercial. Estes se expressaram na campanha eleitoral, por exemplo, com acusações de autoritarismo e corrupção que levariam o México inevitavelmente ao caminho da Venezuela e Nicarágua.
Em primeiro lugar, AMLO entrou com a força de uma história política que ele cultiva. No final da década de 1970, dirigiu o Centro Coordinador Indigenista e teve a oportunidade de conhecer a realidade das comunidades pobres e povos originários. Em sua militância política, liderou muitos movimentos de camponeses, indígenas e trabalhadores até se projetar nacionalmente.
Quando ele perdeu as eleições para Governador de Tabasco, seu estado de origem, em 1994, denunciou fraude e organizou uma caravana de protesto, que ficou conhecida como “Éxodo por la Democracia” e que, durante 51 dias, atravessou 700 km para ocupar a praça central na Cidade do México, o Zócalo.
Nos anos que se passaram desde então, utilizou em muitas ocasiões as mobilizações populares para mostrar força política. O faria novamente em 2006, denunciando fraude, quando perdeu as eleições contra Felipe Calderón (PAN) por cerca de míseros 0,5%, após ter ficado à frente na apuração durante os primeiros 97,5% dos votos contados. E, em 2012, novamente denunciando fraude nas eleições para presidência, na qual ele foi derrotado por Enrique Peña Nieto.
Mas Obrador usou o recurso também durante seu mandato atual, por exemplo, com uma grande mobilização em 22 de novembro de 2022 para a defesa de seu governo contra a escalada de ataques que estava sofrendo. AMLO tinha sido prefeito da Cidade do México ainda pelo PRD, de 2000 a 2006, e ganhou finalmente em 2018 com diferença de 30% sobre o segundo colocado, levando seu partido a ter a maioria, embora não qualificada, no Congresso Nacional.
Segundo, é a prioridade que AMLO dá à comunicação direta com o povo. Durante o mandato como prefeito, começou a dar coletivas de imprensa todos os dias, e durante sua presidência, aprofundou a prática ao marcar conferências diárias (!) às 7h da manhã, as Mañaneras, transmitidas pelo YouTube e turbinadas por redes sociais e meios de comunicação diversos. Diariamente, ele explicava sua política, os desafios, os limites, desmontava os ataques e críticas dos adversários, e, sobretudo - embora às vezes pudesse ser cansativo - colocou sua narrativa no centro do debate.
Terceiro, os avanços concretos em prol das camadas pobres, sem os quais os fatores mencionados anteriormente teriam pernas curtas. Durante os seis anos do mandato, o salário mínimo real aumentou em 82% e os salários na manufatura 27%. Além disso, houve, indiscutivelmente, um conjunto de programas sociais que garantiam tirar 8,8 milhões de mexicanos da extrema pobreza e vários outros para fortalecer cooperativas de indígenas, projetos para jovens, universidades comunitárias nas regiões rurais, entre muitos outros.
Outra mudança bastante radical, pelos padrões mexicanos, foi a reforma trabalhista em 2019, que, embora obedecendo a imposições do acordo de livre comércio com os EUA e Canadá, garantiu a liberdade de organização sindical e rompeu o monopólio das organizações pelegas organizadas e controladas historicamente pelo Estado. Isso abriu um novo capítulo na história do movimento sindical mexicano.
Quarto, uma condução eclética da macroeconomia. De um lado, intervencionismo e, de outro, ortodoxia com relação à independência do Banco Central e metas da dívida pública e déficit fiscal, embora este último tenha sido flexibilizado no último ano do governo.
A aposta no Estado planejador aparece na prioridade dada a cinco projetos considerados estratégicos para o desenvolvimento nacional: o trem Maya, que atravessa a península de Yucatán passando por Cancún; o novo aeroporto de Tulum, também em Yucatán; uma nova refinaria Dos Bocas em Olmeca, com capacidade de processar 340 mil barris por dia; o trem interoceânico e o novo aeroporto na Cidade do México.
Embora se possa discutir e criticar a escolha das prioridades, AMLO lançou esse conjunto de projetos estruturantes, mas limitadas, com a promessa de que iriam sair do papel e serem concluídos ainda no seu mandato. Embora não estejam totalmente concluídos, estão todos em estágio muito avançado e Claudia Sheinbaum não terá nenhum problema em concluí-los. Há de se observar que vários desses projetos já estavam sendo discutidos havia anos, sem sair do papel. Isso também dá credibilidade em comparação com as forças políticas tradicionais. Sobre a refinaria, esta está ligada a uma insistência de AMLO em romper a dependência de importação de derivados dos EUA e priorizar o refino do petróleo da Pemex no próprio país.
E a economia?
No início do mandato de AMLO, não faltavam críticas liberais anunciando que ia haver descontrole fiscal e afastamento dos investidores internacionais. Aliás, durante muitos anos, havia o mito de que não se poderia garantir direitos sindicais e salários decentes nas maquilas (manufatura no norte do México orientada para exportação para os EUA) sem perder competitividade.
É certo que o país aproveitou a onda de nearshoring (movimento de transferir produção globalizada para perto dos mercados consumidores) e o México se tornou, no ano passado, o primeiro país exportador para os EUA, desbancando a China. Este é um processo ainda em curso, porque o que houve foi um ligeiro aumento dos investimentos e produção no México e queda significativa das exportações chinesas para os EUA.
Por enquanto, trata-se, sobretudo, de expansão da capacidade produtiva instalada, mas há potencial para chegada de novos investimentos. A oposição inclusive argumenta que as políticas de AMLO impedem explorar esse potencial, o que é altamente questionável.
Com tudo, o desemprego é um dos mais baixos da América Latina, com menos de 3%. Há de se lembrar os dez milhões de trabalhadores nascidos no México que migraram e trabalham nos EUA. Estes, aliás, junto com parte dos outros 27 milhões que nasceram nos EUA, mas se declaram também mexicanos, são responsáveis, no ano passado, por uma transferência de recursos equivalente a cerca de 4% do PIB mexicano, muito superior à entrada de capital das multinacionais. Uma peculiaridade da economia mexicana que ajuda também a manter o déficit da conta corrente em níveis muito baixos, o que ajuda a garantir estabilidade macroeconômica.
Quais os desafios?
Tudo indica que esse capital político e a popularidade de AMLO serão transferidos para Claudia, que já era uma liderança do movimento criado por ele em 2011, quando rompeu com o PRD: MORENA - Movimiento Regeneración Nacional. O êxito do governo AMLO já tinha mostrado capacidade de aumentar a força política de Morena quando, em junho de 2023, sua candidata, Delfina Gómez, ganhou o governo do Estado do México com quase 10% de vantagem sobre o segundo colocado. Tratava-se de um estado que representa 10% do PIB, com 17 milhões de habitantes, e que tinha sido um bastião de conservadorismo do PRI, que o controlava de forma ininterrupta por quase um século.
No caso de Claudia Sheinbaum, embora não tenha o carisma de AMLO, ela fez uma gestão inovadora e exitosa à frente da Prefeitura da Cidade do México, após ter sido Secretária de Meio Ambiente da cidade durante a gestão de AMLO. Ela mesma afirmou em várias ocasiões que seguirá as orientações políticas, porque são de Morena, o partido que ela ajudou a construir, mas que não será a mesma coisa por dois motivos: primeiro, pelo estilo e personalidade diferentes, e segundo, porque os tempos, e logo, os desafios, serão outros. Continuar com a quarta transformação não pode ser fazer mais do mesmo, mas avançar.
Concretamente, os desafios para Claudia se dão nas seguintes áreas. Primeiro, ela vai priorizar mais investimentos em energias renováveis, o que não deve ser visto como oposição à ênfase que AMLO deu à soberania nos derivados de petróleo. Ainda no campo de energia, há a dívida da Pemex - petroleira estatal do México, de economia mista - que deve ser enfrentada.
Outro tema ligado às mudanças climáticas que se torna agudo é a crise hídrica, mas são questões sobre as quais ela tem pleno domínio. Fez sua carreira acadêmica, antes de entrar na política, na engenharia de energia e integrou o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Nessa área, pode-se esperar, portanto, um avanço importante e necessário. À imprensa, ela afirmou que sua primeira medida como presidente será encaminhar uma emenda constitucional sobre igualdade de gênero, tema que deve ganhar também maior destaque na sua gestão.
Há a escalada da violência ligada ao narcotráfico, um tema muito complexo que se fez presente nas eleições com mais de trinta candidatos regionais assassinados. AMLO tinha criado uma Guarda Nacional que ainda não deu resultados significativos. Esse problema está evidentemente ligado à demanda por drogas nos EUA e continuará sendo um grande desafio. A questão da migração ao vizinho rico, sobretudo de latinoamericanos que atravessam o país exige uma continuidade da política equilibrada de AMLO pactuando, criticando e resistindo às pressões dos EUA, sem nunca deixar de apontar as causas socioeconômicas do fenômeno.
Outro tema, que de certa forma é tabu no debate político no México, é a falta de reforma tributária. O México continua sendo o país da América Latina com a menor percentagem de tributação federal em relação ao PIB (em torno de 20%). E, por último, Claudia vai apostar também no efeito positivo do nearshoring, ou seja, atração de investimentos externos para exportação para os EUA, que garante geração de emprego e renda e um equilíbrio na balança comercial, mas condiciona a saúde macroeconômica do país muito à dos EUA. Claudia, como cientista, anunciou que pretende aumentar a capacidade endógena tecnológica, um tema cada vez mais central na busca de soberania econômica.
Chama a atenção a ausência da interferência de forças religiosas nas eleições ou mesmo a politização da pauta de costumes. Embora o México seja um país com profunda presença católica, em 2007, a Cidade do México, na gestão de centro-esquerda, despenalizou o aborto, seguido de outros 11 estados, até que, em setembro do ano passado, a Corte Suprema determinou inconstitucional a penalização do aborto, considerando-o uma violação dos direitos humanos, e garantiu ainda o direito ao aborto em qualquer centro público de saúde federal. Da mesma forma, as poucas tentativas de desclassificar Claudia por sua origem judaica não vingaram. O ex-presidente Vicente Fox, por exemplo, chegou a chamá-la de “judia búlgara” e, no último debate, Xóchitl Gálvez tentou provocá-la pelo fato de não crer em Deus. Da mesma forma comentaristas sionistas chegaram a criticar a Cláudia por um suposto cálculo político em esconder esse fato.
Nada disso teve um impacto sobre o andamento das eleições. No geral, chamou a atenção que quem está desafiando Morena são as forças de sempre e não surgiu, por enquanto, nenhuma nova direita como aconteceu no Brasil com Bolsonaro ou na Argentina com Milei.
Por fim, se falou pouco na campanha sobre a política externa ou sobre a integração latino-americana. AMLO se posicionou fortemente em vários momentos sobre determinados assuntos, por exemplo, a defesa de Julian Assange, insistência no fim do bloqueio contra Cuba e a caracterização do que está ocorrendo com a população palestina em Gaza como genocídio. Mas ele fez pouquíssimas viagens internacionais, limitando sua articulação diplomática à América Central.
É possível que Claudia possa se engajar mais nessa frente, o que pode inclusive ser estimulado pelo próprio Brasil, que por sua vez deixou de se interessar no México há muito tempo. Isso vale tanto pelo nível do governo como das forças políticas e universidades.
* Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais da UFABC e integrante do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB).
**As opiniões contidas neste artigo não representam necessariamente às do jornal Brasil de Fato
Edição: Rodrigo Durão Coelho