Em meio a um crescente déficit habitacional em Curitiba, a Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) tem oferecido auxílio-moradia a ocupações irregulares. No entanto, a instabilidade da medida e a falta de garantias de longo prazo geram incertezas entre as famílias beneficiadas.
Na capital paranaense, mais de 90 mil pessoas não possuem moradia, conforme dados da Pesquisa de Necessidades Habitacionais do Paraná 2023, divulgada pela Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar) em abril deste ano. O déficit habitacional na cidade é atenuado pelo alto custo do aluguel, que consome mais de 30% da renda familiar em muitos casos.
Os números da pesquisa destacam 43.261 domicílios em 322 comunidades e 7.400 em 93 loteamentos irregulares, áreas que sofrem com falta de infraestrutura básica e questões legais que dificultam o acesso a serviços essenciais. Adicionalmente, 58.781 famílias estão cadastradas na Cohapar à espera de habitação, evidenciando a urgência da demanda.
Roberto Baggio, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e membro da campanha Despejo Zero, analisa que a crise social do último governo desativou políticas públicas essenciais e foi responsável pelo aumento do desemprego, que forçou muitas famílias a ocuparem terrenos urbanos e rurais.
“A crise da moradia é estrutural e de massa, precisa de um intensivo de políticas públicas federais, estaduais e municipais para atender esse clamor social de casa e pedaço de terra”, afirma ele.
No início deste ano, a cidade foi marcada por uma série de reintegrações de posse, muitas vezes violentas. Em maio, cerca de 250 famílias foram despejadas na Cidade Industrial de Curitiba. No mesmo mês, oito famílias no bairro Novo Mundo também foram despejadas, com forte presença policial.
Comunidade Tiradentes II negocia auxílio-moradia
Em abril deste ano, a comunidade Tiradentes II, localizada na Cidade Industrial de Curitiba, negociou com a Cohab um auxílio-moradia para as 67 famílias, garantindo o benefício até que sejam atendidas pelos programas federais de habitação.
“Foi uma novidade para nós. Estou há 12 anos no movimento popular e foi a primeira vez que vi isso acontecendo”, diz Chrysantho Sholl Figueiredo, coordenador do Movimento Popular por Moradia (MPM).
A comunidade e o MPM veem a proposta como uma conquista após muitas dificuldades no território, incluindo dois incêndios no aterro da Essencis e a pressão da Polícia Militar. A luta foi ferrenha para evitar que ocorresse um despejo forçado sem uma resposta do poder público.
“Temos brigado para evitar o despejo e conseguimos vitórias parciais. Tentamos negociar com a Essencis, mas a empresa voltou atrás. Começamos então a articular politicamente para garantir que as famílias não sairiam sem nada”, explica Chrysantho.
Recentemente, articulações do vereador Angelo Vanhoni (PT) com o presidente da Cohab, José Lupion Neto, buscou sensibilizar as autoridades sobre a situação das famílias. Segundo as lideranças, as negociações resultaram na proposta do auxílio-moradia, feita pela diretora de Relações Comunitárias da Cohab, Rosemeiri Morezzi.
“Tivemos conversas com advogados do movimento e levamos a diretora da Cohab e a equipe técnica ao local para apresentar a proposta aos moradores”, relata Chrysantho. Na reunião, a diretora anunciou que a Tiradentes II é tecnicamente considerada uma área de risco e, por isso, estaria incluída no programa.
“Com uma reintegração de posse iminente, aceitar o acordo foi uma forma de evitar o despejo violento. A partir desse acordo, vamos lutar pelo seu cumprimento”, afirma.
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Instabilidade do decreto
O decreto nº 2404 autoriza a concessão de auxílio-moradia emergencial para famílias de baixa renda em situação de vulnerabilidade. O benefício, de até um salário mínimo mensal, deve ser utilizado para aluguel, com duração de até 12 meses, prorrogável por mais 12 meses.
O decreto aplicado à Tiradentes II especifica que todas as famílias cadastradas entre 15 de janeiro e 2 de março de 2024 estão aprovadas para receber o benefício. As famílias receberão o auxílio por 12 meses, podendo ser renovado ou até que as novas habitações estejam prontas, desde que mantenham os critérios de enquadramento.
“O decreto municipal permite até um ano, prorrogável por mais um ano, ou até que se encontre uma solução definitiva de moradia. Isso cria um contexto de disputa, pois a construção das moradias pode não ocorrer em dois anos”, comenta Chrysantho.
Em tese, foi combinado com os moradores da Tiradentes II que, em dois anos, um empreendimento habitacional de centenas de moradias será construído e a comunidade será contemplada. No entanto, isso não está garantido no decreto.
“É um regulamento instável. Não sabemos se o empreendimento será construído, mas com essa proposta vamos lutar para que seja cumprida. Queremos garantir que cada família tenha a chave da sua nova casa nas mãos”, diz ele.
Comunidade Ilha rejeita proposta de auxílio-moradia
No dia 16 de outubro de 2023, a Cohab apresentou uma proposta de auxílio-moradia de R$ 500 para a comunidade Ilha, localizada no bairro Tatuquara e composta por cerca de 165 famílias. A proposta foi rejeitada por unanimidade, moradores optaram por permanecer no local até que novas habitações sejam construídas e oferecidas pelo poder público.
“A Ilha é uma das comunidades mais empobrecidas e carentes, fica em um território muito afastado, um lugar vulnerável, inclusive sob o ponto de vista da assessoria jurídica e técnica”, afirma Bárbara Esteche, advogada popular da Frente de Organização dos Trabalhadores (FORT).
A advogada afirma que a Cohab tem realizado contatos diretos e irregulares com os moradores, oferecendo acordos sem permitir que a comunidade seja acompanhada por defensores públicos ou advogados populares.
Durante a reunião de apresentação da proposta, a representante da Cohab, Rosemeire Morezzi, ameaçou retirar a advogada, alegando que a reunião deveria ser exclusiva entre a empresa e os moradores. A comunidade, no entanto, decidiu que a advogada poderia acompanhar a audiência.
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Bárbara Esteche criticou a postura da Cohab e destacou a necessidade de acompanhamento jurídico adequado para que os moradores possam negociar em igualdade de condições, especialmente dada a vulnerabilidade econômica da comunidade.
“A Cohab tem feito contatos diretos com as pessoas oferecendo acordos e isso aconteceu na Ilha. Mas isso é um problema grave, se você não estiver assessorado por um advogado não terá condições de negociar. Imagina fazer isso com pessoas de tamanha vulnerabilidade econômica?”, diz Bárbara.
Em outras comunidades, como a Britanite e a Fortaleza, o auxílio-moradia também está entre as possíveis ofertas. No futuro, Guaporé 2, Vila União, entre outras, estão ainda com situação indefinida. “Na Fortaleza, a comissão pediu para que apenas as lideranças da comunidade participassem da reunião. Os moradores estão sendo orientados a não chamarem advogados, mas eles têm direito a estarem acompanhados desse apoio jurídico”, afirma Bárbara.
Para João Victor Rozatti, coordenador do Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas (Nufurb), o benefício oferecido pela companhia nem de longe é um plano de alocação. “Me parece uma medida paliativa muito melhor daquilo que eles ofertam, porque eles não oferecem nada, mas ainda sim extremamente ineficiente para a resolução definitiva do problema”.
Por que as propostas de auxílio surgem agora?
Nos últimos meses, tem se tornado evidente um avanço de medidas consideradas antipopulares por parte do governo do Paraná. Segundo Bárbara Esteche, em ano eleitoral, o governo está interessado em agradar tanto os proprietários dos terrenos ocupados, muitas vezes financiadores das campanhas, quanto as comunidades periféricas, por isso concentram ações de reintegração nesses primeiros meses do ano.
“Agora é o último momento que eles têm para essas ações. Eles precisam agradar os proprietários e até o início das eleições eles conseguem agradar as populações que foram atingidas”, diz a advogada popular.
Chrysantho Sholl Figueiredo, coordenador do MPM, concorda que a motivação da Cohab esteja alinhada a interesses políticos. Ele questiona por que a Cohab só oferece auxílio-moradia em anos eleitorais e sugere que se trata de uma estratégia para evitar a perda de votos.
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"Se a Cohab tem a capacidade de conceder auxílio-moradia em situações de despejo iminente, por que não implementa essa medida de forma contínua ao longo dos quatro anos?", indaga. Figueiredo aponta que a concessão de auxílios emergenciais parece mais uma medida paliativa do que uma solução estruturada para o problema habitacional.
Ele também critica a administração pública por agir apenas quando a pressão política é maior. "Nossa comunicação tem sido efetiva em destacar casos como o da Tiradentes II, e acredito que a imagem negativa de um despejo violento em um ano eleitoral pode representar uma perda significativa de votos para os políticos. Por isso, eles oferecem essas soluções temporárias, mas não se comprometem com medidas definitivas de habitação", afirma Figueiredo.
A redação do Brasil de Fato Paraná tentou contato com a assessoria de imprensa da Cohab, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Pedro Carrano