Coluna

Da tortura à microdose: Antônio Peticov e seu DNA na história do LSD no Brasil

Imagem de perfil do Colunistaesd
O artista plástico paulista Antonio Peticov - Reprodução
É incrível que a minha prisão foi decretada por uma pessoa que tinha interesse no tráfico do ácido

*Por Caroline Apple

Foi em um pau de arara que aos 23 anos o artista plástico paulista Antonio Peticov foi parar depois de entrar para a história dos psicodélicos no Brasil ao ser uma das primeiras pessoas a serem presas e acusadas por tráfico de drogas por portar LSD. Em janeiro de 1970, um pouco mais de um ano após o AI-5, no seu apê na Terra da Garoa, choveu investigadores de polícia, entre eles Angelino Moliterno, mais conhecido como Russinho, que integrava os chamados “Esquadrões da Morte”. Lá, os policiais encontraram cápsulas laranjas com uma substância que já era um ícone entre os adeptos da contracultura, principalmente nos EUA: o ácido lisérgico.

Mas essa história é fácil de encontrar na internet. Peticov já teve sua trajetória contada em livros, entrevistas e matérias por nomes como do seu xará Antônio Abujamra. Coleciona parcerias, exibições e trabalhos artísticos exponenciais, mas diz reconhecer que é um tanto “carta fora do baralho” na cena das artes no Brasil por ter se exilado muito jovem e desenvolvido seu trabalho no exterior. Mas seu nome é bem famoso nas rodas de intelectuais, artistas em geral e psiconautas de vários calibres sociais.

Hoje, aos 78 anos, o artista vive sua lisergia de forma mais ponderada – microdosada, na verdade. Porém, uma ou duas vezes por ano, se permite a realizar viagens internas mais longas que o ajudam a colocar mais uma pecinha no quebra-cabeça da sua existência, compondo um mosaico que vai revelando, aos poucos, quem ele realmente é. Será que isso tem a ver com ele ser o maior colecionador de quebra-cabeças do Brasil? Talvez não. Vou colocar essa viagem na minha mente criativa e “lisergiana”.

A Psicodelia Brasileira trocou uma ideia com esse ícone responsável por ajudar a abrir as portas da percepção de diversas pessoas, entre elas artistas nacionais importantes, a partir da sua autoincumbência de divulgar a possibilidade da realização da “viagem mais importante que uma pessoa pode ter em sua vida, que é a viagem ao seu interior”.

Psicodelia Brasileira: Como é para você ver o renascimento psicodélico no Brasil, no qual pesquisadores, comunicadores, artistas e tantos outros personagens falam de forma positiva abertamente sobre essas substâncias, uma vez que você chegou a ser preso e torturado durante a ditadura por conta de um psicodélico?

Antônio Peticov: Eu não consigo comparar. Estamos falando de 1970, tempos de alta repressão. É incrível que a minha prisão foi decretada por uma pessoa que tinha interesse no tráfico do ácido, achando que era o novo produto de venda, de business. Eram as mesmas pessoas que cuidavam do tráfico de cocaína. Corrupção total. Eu sempre achei que essa invenção do Hoffmann, o ácido, foi a invenção mais importante do século 20, porque deu a possibilidade para as pessoas terem no bolso, na carteira, na gaveta, um bilhete da passagem para a viagem mais importante da sua vida. Antigamente, o acesso ao ácido lisérgico era difícil e perigoso, mesmo sendo uma substância usada há milênios. Mas eu fico muito feliz com o que está acontecendo agora. Eu estive na Suíça no aniversário de 100 anos do Hoffmann. Foi uma festa de três dias inacreditáveis. Ele usava um andador por causa das pernas cansadas, mas tinha um discurso com uma lucidez e uma beleza ímpar. Hoje em dia eu fico muito feliz em ver esse renascimento espontâneo em vários lugares do mundo. Antes não tinha como se informar. Você não imagina o quanto eu queria saber, curioso, e não tinha como. Hoje tem informação em tudo quanto é lugar: no jornal, na revista, na TV, na internet, no cinema. Então está mais fácil a pessoa saber que existe essa possibilidade e como acessar. Estou aqui falando com uma moça [colunista] que eu nunca vi antes, que tem esse interesse e com um veículo na mão.


The Shaman's Vision, do artista plástico paulista Antonio Peticov / Reprodução

Como você vê a proibição da maconha e dos psicodélicos no Brasil?

Toda a proibição foi de uma incoerência e de uma hipocrisia enorme. O ser humano tem essa tendência de escorregar para trás toda hora. E esse é o caso do Brasil, por exemplo, que acontece em Brasília, os nossos governantes, como eles brincam com a vida das pessoas. A universidade com maior êxito no país é o cárcere, é a cadeia. O cara entra e lá ele tem acesso aos melhores mestres e sai empregado. Mandar a meninada para lá porque está fumando um baseado é um crime. Isso sim é um crime. Então, esse renascimento é maravilhoso, porque vem de pontos magníficos como Ailton Krenak, Sidarta Ribeiro, o Eduardo Schenberg, do Instituto Phaneiros. Gente séria, que está mostrando a seriedade e a importância do retorno das pesquisas. Uma das maiores infâmias da proibição é a impossibilidade de ter um controle de qualidade daquilo que se adquire. Eu sempre tive a sorte de ter acesso ao ácido lisérgico puro, mas é assustador o que se encontra por aí. Isso vale para todas as substâncias, como o MDMA, por exemplo.

Leia também: Sidarta Ribeiro: 'Brasil é um dos epicentros da revolução psicodélica pautada pela ancestralidade'

Qual a sua relação hoje com os psicodélicos?

Uma coisa que está sendo muito praticada hoje e eu acho extremamente saudável é a microdosagem. Temos no Brasil sites abençoados onde podemos comprar cogumelos. É uma ferramenta maravilhosa que nossa mãe Gaia, essa deusa incrível, nos dá em abundância para usarmos, gozarmos e crescermos. Eu ainda uso psicodélicos, acho muito saudável. Eu vou fazer 78 anos. Enquanto meus amigos acham que estão velhos eu digo que agora estamos no ponto para fazer um bom uso dos psicodélicos. A microdose é uma ferramenta de uma utilidade ímpar. Porque você não está fazendo uma viagem. Eu coloco uma gota em uma garrafa de água e um gole logo cedo é o suficiente para me deixar alerta o dia inteiro e fazer me lembrar quem eu sou e o que estou fazendo aqui nessa bola azul maravilhosa. Eu gosto de DMT também, mas puro. Sei que pode parecer um pouco infame o que eu vou dizer, mas não sou indígena.  Eu adoro andar de bicicleta, mas, para ir para Nova Iorque, eu prefiro ir de avião. Eu já fiz muitas cerimônias de ayahuasca, mas prefiro usar o DMT puro, porque é contato imediato, vou direto na sede, sem muita firula no meio. Nunca fiquei muito confortável com psicodélicos naturais, porque eu acho que eles cobram um pedágio físico que eu não estou afim de pagar. O que eu quero é ‘chegar lá’. Quero contato. Quero transcendência. Mas isso não significa que eu faço as coisas de maneira leviana. Eu estou na Itália agora e tem coisas que eu vou comprar para curtir depois da viagem. Então, o que eu trago das minhas experiências com os psicodélicos é consumido de maneira lenta. Não é à toda que se chama viagem. É como abrir um armário, mas não estou apenas olhando o armário, estou pegando coisas de lá também e trazendo para casa. 

Quais os cuidados que você acredita serem necessários na hora de começar a usar um psicodélico?

Quando eu saí do Brasil, no início de 1971, eu li o livro The Politics of Ecstasy, do Timothy Leary, onde ele deixava claro que só existem dois tipos de indivíduos: os iniciados e os não iniciados. Outra coisa importante que eu aprendi é que é errado e imprudente jogar ácido lisérgico na caixa d’água da cidade, porque a iniciação é algo que precisa ser voluntária, você que deve escolher. Tem uma passagem da Bíblia muito bonita de Jesus dizendo que ele está na porta batendo e se abrir ele vai entrar e ceiar. E essa é uma porta que só tem fechadura por dentro, você não pode abrir do lado de fora. Ou você abre, você aceita, e quer a iniciação ou não. Não pode forçar. Só o ato de querer a iniciação já é parte dela própria. 


Caindo Tudo - Desenhos da Alice, obra do artista plástico paulista Antonio Peticov / Reprodução

 

*Caroline Apple é jornalista há quase 20 anos com passagem por alguns dos principais veículos do Brasil, abordando, principalmente, temas relacionados aos Direitos Humanos, como a causa indígena. É uma das primeiras jornalistas no país a se especializar na cobertura de cannabis para fins medicinais. Daimista, ayahuasqueira e psiconauta, Carol é influenciadora digital sobre temas relacionados à espiritualidade e ao autoconhecimento com ênfase no uso da ayahuasca em contexto urbano.

**Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Chagas