Solidariedade. Exprimi-la na forma de palavras não é de se menosprezar, ainda mais quando há não muito tempo, diante de milhares de lutos asfixiados, fomos escarrados por um funesto "E daí?". Todavia, diante dos eventos que ainda assolam o Rio Grande do Sul, apenas enunciar solidariedade pelas vítimas é insuficiente como ação concreta para o horizonte de permanente instabilidade climática e social que se anuncia. As imagens diárias de montanhas de doações compostas por roupas e acessórios inutilizáveis, seja pelo seu tempo de uso ou condição higiênica, são um exemplo de como um ato expresso de solidariedade pode ser lido como um truque sutil que arrefece nosso senso de responsabilidade ao mesmo tempo em que declara menosprezo ao próximo.
Entre palavras e ações, há descontinuidades, por mais que a palavra abra novas perspectivas de ação. Nesse sentido, a expressão de solidariedade parece manter uma íntima relação com a ideia de "tragédia". Solidarizamo-nos, pois vemos nossos semelhantes atingidos por uma força descomunal e indiferente, como é comum à natureza. Como nos indignarmos diante do fortuito, do trágico? Cabe lembrar que a palavra "tragédia" refere-se ao gênero de histórias conhecido por abordar aquilo que é inescapável na condição humana. O personagem trágico é aquele que, mesmo sendo advertido sobre seu destino e tomando escolhas que o evitem, vai ao encontro fatídico deste. Ao chamarmos as devolutivas da natureza de "tragédias" estamos não só lamentando as calamidades que nos atingem, como também afirmando que nelas não há nenhum rastro de intervenção humana que as justifique.
A essa altura, entretanto, não faltam levantamentos que apontam que não só o governo estadual do Rio Grande do Sul, como também a União, estavam informados sobre os riscos climáticos anunciados para esta e outras regiões do país. A soma de uma crônica lógica política de curtíssimo prazo e a distribuição da maior parte do investimento público em emendas parlamentares que ficam à mercê de personalismos regionais, atomiza qualquer ação coordenada por parte do Estado num tema que, por natureza, demanda reformas estruturais.
Quando o problema é algo tão inapreensível como a atmosfera que nos envolve, como pensar em responsabilização? A mudança climática é um fenômeno multicausal, transnacional, e no qual a intervenção humana e a pura contingência natural são de difícil distinção ao senso comum. Exercer o pensamento para além das inúmeras oposições que se alojam na cisão humano/natureza parece ainda ser um desafio intransponível à cognição social. A impotência diante da crise também faz par com as análises que correlacionam o impacto humano no clima ao sistema de produção que nos últimos anos radicalizou-se ao extremo, atrelando a impossibilidade de qualquer solução à questão climática ao já instaurado desamparo de um horizonte de superação social – como diria o subtítulo do Realismo Capitalista (2009), de Mark Fisher: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
Em minha experiência de escuta às pessoas atingidas pelos deslizamentos na Vila Sahy, no município de São Sebastião (SP), em 2023, deparei-me com uma expressão difundida pela comunidade: "tragédia-crime". Essa noção emprestou uma conotação política ao evento natural que atingiu a comunidade, escancarando sua histórica precariedade de segurança habitacional. Ao adicionar o termo "crime", não só a solidariedade, como também a indignação foram afetos passíveis de serem articulados para a organização coletiva de ações de cuidado e luta pela reivindicação de habitações que respeitem os termos em que essas pessoas querem viver. Segundo lideranças comunitárias, entretanto, ao invés de escutarem essas necessidades, forças do poder público municipal e estadual jogam nas sombras, fazendo com que moradores da mesma comunidade desmobilizem a luta coletiva por habitação em troca de clientelismos eleitorais.
Cedo ou tarde, uma lição se imporá: quando o assunto é mudança climática, não há lado político ganhador; há apenas política, por mais que ela seja a arte de lidar com os diferentes lados. As maneiras pelas quais podemos mitigar o que já está em curso são passíveis de intenso debate; negar a realidade da crise não é mais. Sobre isso, a psicanálise me parece poder contribuir com algumas lições que emergem de sua experiência. A primeira diz respeito a algo que escutamos cotidianamente e que eu poderia chamar de uma "afeição pelo impossível". Refiro-me a uma tendência muito comum a nós, definida pelo estabelecimento de metas e ideais complexos que, quando assim percebidos, nos lançam à impotência e justificam nossa paralisia.
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A magnitude e o caráter difuso da mudança climática não podem ser pretextos para a negligência: diante do impossível não há de se recuar ou negá-lo, mas sim afirmá-lo profundamente. Só a legitimação do impossível abre espaço para ações não premeditadas, novas perspectivas de abordar e solucionar problemas.
Uma segunda lição que a psicanálise nos traz refere-se à função pedagógica do luto. A influência da razão é risível diante das convicções do afeto. Durante anos não nos faltaram alarmes vindos da ciência sobre o que nos ocorreria. Mas a experiência nos mostra que um aprendizado permanente e profundo só pode se dar no interior de uma elaboração afetiva, o que é uma definição que cabe ao luto – essa experiência capaz de nos levar a avaliar as razões pelas quais vivemos, os laços que nos unem aos outros e o que se pode levar após aprendermos a perdê-los. Há pouco tempo, deparei-me com a precisa e valiosa frase de um paciente: "aprender a ganhar é muito fácil; o difícil é aprender a perder".
Grande parcela da população brasileira, ano após ano, tem sido obrigada a aprender dolorosamente a perder e a reconstruir, com um intervalo entre esses dois momentos praticamente inexistente. Não é a esse contingente que me refiro; o que é necessário perder são as premissas de uma cultura que até aqui sustentou modelos de convivência e produção que levaram a uma relação destrutiva com o mundo e com o próximo.
Segundo pesquisa Quaest de 9 de maio, 64% dos entrevistados acreditam que as enchentes do Rio Grande do Sul são consequência das mudanças climáticas, e 68% dizem que o governo do estado tem responsabilidade nesse evento. É uma mudança expressiva da opinião pública e que precisa ser convertida em articulação e pressão política por ações de Estado consistentes. No luto, o tempo é soberano, e será no decorrer deste que se verá se aprendemos a perder ou se continuaremos a precificar a tragédia.
*Bruno Tarpani é psicanalista, mestre em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, especialista em saúde coletiva pelo Instituto de Saúde (SES-SP) e fotógrafo.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas