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'Racismo e escravidão fazem parte da rotina do Brasil', diz Renato Barbieri

Diretor lançou neste ano o documentário 'Servidão', que retrata casos de trabalho escravo na Amazônia brasileira

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O documentarista Renato Barbieri, convidado desta semana no BDF Entrevista, lança "Servidão" sobre o trabalho escravo contemporâneo. - Reprodução/ Brasil de Fato
De 1995 até 2023, o grupo móvel libertou mais de 65.000 pessoas, indenizou por questões trabalhistas

O Brasil tem batido seguidos recordes de denúncias de trabalho escravo contemporâneo. O maior número registrado foi no ano de 2023, quando o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania recebeu 3.422 denúncias, 61% a mais do que o número registrado no ano anterior (2.119). Os casos, recebidos pelo Disque 100 do Ministério, correspondem a 19% de todas as denúncias recebidas pelo órgão no último ano.

Casos como esse estão retratados em Servidão, documentário do diretor Renato Barbieri, lançado em 2024. "O filme trata de uma mentalidade escravagista, uma mentalidade secular, de cinco séculos. [E trata também] de como a escravidão clássica é um processo de continuidade com a escravidão contemporânea", explica o diretor.

O filme de Barbieri foca seus olhares para casos de trabalho escravo na região amazônica. Durante anos, o diretor e sua equipe acompanharam os grupos móveis do Ministério do Trabalho, em parceria com a Polícia Federal, entre outros entes, no resgate dos trabalhadores vítimas da escravidão contemporânea.

O documentário também traz depoimentos de agentes públicos e de responsáveis por registrar essas ações, como o fotógrafo João Ripper. "A gente nunca teve um dia como nação livre até hoje", explica Barbieri, convidado desta semana do BdF Entrevista

"A escravidão faz parte da rotina do Brasil e o filme denuncia isso, investiga essa mentalidade escravagista, as práticas que estão aí, a desigualdade, a oligarquia, a concentração de renda e outras questões que ajudam a manter a mentalidade escravagista no Brasil, que se você for ver bem, estão no nosso currículo escolar, como o racismo, por exemplo", completa o diretor.

Barbieri revela que Servidão surgiu a partir de suas pesquisas para a produção do filme ficcional Pureza, lançado em 2019, e que tem em seu elenco a atriz Dira Paes no papel da personagem real Pureza Loyola, uma das responsáveis por forçar o governo brasileiro a reconhecer a existência do trabalho escravo no Brasil. 

Loyola travou uma importante e solitária batalha entre os anos de 1993 e 1995, ao enfrentar uma série de riscos no interior do país atrás de seu filho, vítima do trabalho escravo contemporâneo. Foi em 1995, após relatórios de movimentos populares como a Comissão Pastoral da Terra e da luta da própria Pureza Loyola, que o governo brasileiro reconheceu a ocorrência desse crime.

"No início eram quatro grupos móveis, depois foi para oito e hoje reduziu. De alguns anos para cá essa política sofreu reveses, houve retrocessos", conta Barbieri. 

"Hoje nós temos quatro estruturas de grupo móvel, que é uma estrutura cara, porque é de inteligência, a logística é complexa, tem apoio da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, do Ministério Público do Trabalho, da Defensoria Pública da União. De 1995 até 2023, o grupo móvel libertou mais de 65 mil pessoas, indenizou essas pessoas por questões trabalhistas, criou Carteira de Trabalho", completa Barbieri.

Confira a íntegra da entrevista no vídeo acima. Abaixo, leia alguns trechos da conversa:

Brasil de Fato: Renato, você lançou recentemente o documentário Servidão, que faz uma reflexão sobre o período da escravidão e como essa chaga ainda segue vigente no Brasil. Tem muita gente importante no teu filme dando depoimento, relatos de ações de auditores fiscais. Você também teve a oportunidade de ir a campo, acompanhar essas ações. O que você viu de perto dessa realidade brasileira tão triste? 

Renato Barbieri: Pois é, é muito triste e muito urgente. Eu estava no processo de produção do filme Pureza, que é um filme que trata do trabalho escravo contemporâneo, que abrange um período da jornada histórica da dona Pureza Loyola, de 1993 a 1995. É um filme de ficção, mas eu sou documentarista já há muito tempo e fui entrevistando pessoas com quem ela esteve, os lugares onde ela esteve, visitando locações. E fui vendo que eu tinha um material muito rico de pesquisa, que ia muito além dos três anos da jornada da dona Pureza. 

E teve uma coisa que me chamou muita atenção nos abolicionistas, que é um termo que a gente associa a Joaquim Nabuco, os abolicionistas lá do período da escravidão clássica, que são esses abnegados, essas figuras, homens e mulheres que dedicaram suas vidas à abolição atual. E me chamou muita atenção o brilho nos olhos daquelas pessoas, eles falavam uma palavra viva.

E aí eu comecei a desenhar o projeto do documentário, para que essas pessoas estivessem no filme, que era o Servidão. Eu não imaginava que a pesquisa e as filmagens do Servidão, que ocorreram antes do Pureza, pudessem dar tanto subsídio para o roteiro do Pureza. Então, são duas obras que se complementam. 

E eu estive em campo, fui em ações do Grupo Móvel, promovida por uma interinstitucionalidade, mas que quem está à frente é o Ministério do Trabalho e os auditores fiscais do trabalho. Fomos lá para a Amazônia profunda mesmo, lugares que eu nem saberia ir sozinho hoje, de tão inacessíveis que são, e flagramos situações. 

O filme trata de uma mentalidade escravagista, uma mentalidade de cinco séculos. [E trata também] de como a escravidão clássica é um processo de continuidade com a escravidão contemporânea. Eu costumo dizer que a nossa história, a história do Brasil, não tem nenhuma ruptura, é uma história de continuidade. E o filme trata disso também.

Ou seja, a gente nunca teve um dia como nação livre até hoje. A escravidão faz parte da rotina do Brasil e o filme denuncia isso, investiga essa mentalidade escravagista, as práticas que estão aí, a desigualdade, a oligarquia, a concentração de renda e outras questões que ajudam a manter a mentalidade escravagista no Brasil, que se você for ver bem, estão no nosso currículo escolar, como o racismo, por exemplo. 

O racismo tem um vínculo com a escravidão, com a mentalidade escravagista, está no mesmo pacote da exploração de todas formas, da humilhação, da desvalorização das pessoas, dessa insignificância, do quanto a gente escuta de como esses trabalhadores são humilhados, como as empregadas domésticas, que é uma escravidão é permitida, silenciada e licenciada de certa maneira... 

E tá na nossa arquitetura o quarto da empregada… 

Está na arquitetura o quartinho, que é uma arquitetura diferente de outros países. Você não vai encontrar esse quartinho em outros países como você encontra no Brasil. Então, é uma coisa muito brasileira. A escravidão acompanhou a vida inteira desse país, desde que era a colônia até depois de se tornar independente de Portugal, onde começou o neocolonialismo. E a gente vive o neocolonialismo. 

No começo do teu filme você fala sobre Cais do Valongo, no Rio de Janeiro e ele serve como esse ponto de partida da tua reflexão sobre a memória. O Brasil tem essa teimosia estranha de não lidar com as suas feridas, com as suas chagas, a ditadura, a escravidão. E é isso que atravanca a nossa democracia, não é? 

É verdade, com certeza. A ditadura e a mentalidade escravagista têm o mesmo radical, a mesma origem. E, eu acho que também tem a ver com o sistema de ensino, por exemplo. A gente é ensinado a ser racista. O racismo não é uma opção no Brasil, como você opta por torcer pelo Grêmio ou pelo Internacional. A opção é ser antirracista, porque o que é dado é o racismo.

Como a gente aprende na escola a ser racista? É, por exemplo, não ensinando a história do negro, a história da África no Brasil, ou a história indígena no Brasil. O ensino da história indígena no Brasil termina com a primeira missa. Depois da primeira missa, acabou. Não, eles estão resistindo até hoje, são 500 anos de resistência. 

Em 1995, o Brasil reconhece pela primeira vez que há trabalho escravo, no governo do Fernando Henrique Cardoso? O que mudou de 1995 para cá? 

Olha, muita coisa. Algumas coisas melhoraram, outras pioraram. Foi muito importante o reconhecimento de que existe escravidão no Brasil porque, até então, o Estado brasileiro quando tinha denúncia de escravidão, a resposta era a seguinte: "não, a escravidão acabou em 1888". 

E acho que o teu filme deixa isso muito evidente que a CPT (Comissão Pastoral da Terra), entre outras organizações, os sindicatos rurais, as ligas camponesas, já denunciavam isso há muito tempo. 

Já denunciava isso há muito tempo. E o Estado brasileiro, no tempo do governo Fernando Henrique Cardoso, sofreu muita pressão porque esses movimentos sociais e agentes do Estado, abolicionistas, começaram a criar muito material e provas suficientes para reconhecer que existe trabalho escravo no Brasil desde sempre. 

E aí o Estado brasileiro reconheceu como política de Estado. E quando você reconhece, você tem que criar as políticas públicas. Tem esse problema, temos que atacar. O problema é não reconhecer. Em 1995 foi criado o grupo móvel e a dona Pureza tem um papel importante, porque ela trouxe muitas provas. Justamente a jornada heroica dela termina em 1995, ela ajudou a criar esse dossiê.

De lá para cá, o grupo móvel…no início eram quatro grupos móveis, depois foi para oito. Hoje reduziu, de alguns anos para cá essa política sofreu reveses, houve retrocessos. Hoje nós temos quatro estruturas de grupo móvel, que é uma estrutura cara, porque é de inteligência, a logística é complexa, tem apoio da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, do Ministério Público do Trabalho, da Defensoria Pública da União. 

De 1995 até 2023, o grupo móvel libertou mais de 65 mil pessoas, indenizou essas pessoas por questões trabalhistas, criou Carteira de Trabalho… 

As fotos do João Ripper com os trabalhadores segurando a Carteira de Trabalho são ótimas…

Aquilo é uma delícia, o valor da cidadania. Agora, o capitalismo continua sempre em crise, no sentido de que os recursos estão se tornando cada vez mais limitados e uma competição muito grande. Então, você gerar vantagem econômica, de lucro em cima do trabalho escravo, é uma das escolhas que eles têm, que o capitalismo faz para aumentar seu lucro. Porque a matéria prima tem um custo difícil de você conseguir diminuir. Já o trabalho você pode chegar ao ponto de não pagar nada, que é o trabalho escravo. 

Então, está aumentando a escravidão no mundo hoje, a escravidão é um fenômeno mundial. Quando eu terminei o filme, eram 40,3 milhões de pessoas escravizadas no mundo, essa era a estimativa que essas organizações internacionais, a OIT [Organização Internacional do Trabalho], a Walk Free, fazem com base em dados muito concretos. Fazem uma estimativa, porque é um crime, então ninguém está fazendo o crime de uma maneira aparente, filmando o crime. É uma estimativa, mas muito criteriosa e muito conservadora, para não evitar a especulação de que está exagerando e tal. 

No ano passado, essa estimativa estava em 50 milhões, ou seja, cresceu mais de 20%, então está piorando o problema. E no Brasil também, era uma expectativa de 369 mil, imagina, centenas de milhares de brasileiros, e hoje essa expectativa esta em 1 milhão de brasileiros e brasileiras, nesse momento, em situação de escravidão. 

Edição: Thalita Pires