Estive várias vezes no interior do Rio Grande do Sul antes da catástrofe climática deste ano. Em Encantado, uma cidade pequena, vi famílias inteiras se banharem e pescarem num rio Taquari limpo e tranquilo. "Que privilégio!", eu pensava.
De volta à região em maio deste ano para cobrir as cheias extremas, passei pelos mesmos lugares, mas não os reconheci. As margens do rio, que eram verdes, com pássaros e vegetação de encosta, viraram uma paisagem tão impossível que só posso descrever como marciana.
O rio Taquari agora corre dentro de barrancos profundos e íngremes, que formam um declive agressivo de 90 graus. No lugar do verde, seu curso é ladeado por faixas largas de uma lama de tom avermelhado. Sem pássaros, sem árvores, sem pescadores, sem vida.
Um cenário que supera os piores pesadelos dos indígenas do Vale do Javari, no Amazonas.
Como correspondente na Amazônia, visitei há um ano a terra indígena onde Bruno Pereira e Dom Phillips foram mortos em 2022. Lá encontrei os Matis, um povo indígena que também sente os efeitos das mudanças climáticas.
Um ancião me disse que o "sol estava esquentando" e esturricava a roça de macaxeira. E que já não era mais possível confiar nas estações de chuva e de seca – as únicas disponíveis na linha do Equador. Os frutos já não maduravam na época certa e o rio, quente de sol, direcionava os peixes por caminhos estranhos.
Na Amazônia ou no Rio Grande do Sul, "o rio só quer passar".
Usamos essa frase, de um gaúcho atingido, para batizar o documentário feito pelo Brasil de Fato sobre o impacto das cheias que está disponível no nosso YouTube. Para fazer o filme, eu e o repórter cinematográfico Vitor Shimomura percorremos as áreas mais devastadas no Rio Grande do Sul no mês passado. Encontramos o pior de um clima extremo, mas também o melhor que as pessoas têm a oferecer.
Todos os atingidos com quem conversamos demonstraram consciência ambiental, ao contrário da maioria dos parlamentares em Brasília. Atribuíram o drama pelo qual passavam à construção e ao plantio em encostas de rios, ao desmatamento na Amazônia e à fragilização da legislação ambiental – marcas registradas dos defensores do Estado mínimo.
Cercado por escombros, uma vítima nos disse: "Enquanto tiver progresso, haverá enchentes". E aí tomo a liberdade de substituir a palavra "progresso" por "capitalismo". Um capitalismo que vê a possibilidade de lucro máximo com a tragédia, desde que o Estado seja mínimo.
Mínimo para quem?
O Estado é mínimo para os moradores do Lami, na periferia de Porto Alegre (RS). Eles montaram uma barraca improvisada para abrigar quem teve a casa submersa, mas não queria ir para abrigos. A solidariedade é evidente, com vizinhos ajudando uns aos outros a sobreviver e reconstruir. Enquanto alguns refletiram sobre o abandono dos bairros pobres pelas autoridades, outros continuam a cozinhar e distribuir alimentos de forma voluntária, mesmo enfrentando suas próprias perdas.
Se o Estado é mínimo, resta a solidariedade popular.
No Restaurante Popular de Canoas, vimos 300 marmitas produzidas pelo MST se esgotarem rapidamente num ponto de distribuição da prefeitura. Voluntários de assentamentos sem-terra, que também foram afetados pelas enchentes, trabalhavam incansavelmente para alimentar os atingidos.
As cozinhas solidárias do MST, juntamente com outros movimentos sociais, desempenham um papel crucial na resposta humanitária. Elas já produziram mais de 50 mil refeições saudáveis e sustentáveis para milhares de pessoas.
A tragédia também atingiu duramente os assentamentos do MST, com perdas estimadas em milhões. Da maior produção de arroz orgânico da América Latina, que está nos assentamentos do MST, restou um cenário sombrio e enlameado.
Na periferia de Porto Alegre, encontramos o cacique Roberto Gimenes, do povo Guarani Mbya. "Nossos ancestrais dizem que vai continuar assim [com enchentes]; nem branco, nem indígena vão escapar".
Por isso, o tekoha Pindó Poty, do povo Guarani Mbya, precisa urgentemente ser demarcado como terra indígena. É o único jeito de os Guarani poderem finalmente ir morar em uma área seca, que atualmente é ocupada por fazendeiros.
Na comunidade quilombola Areal da Baronesa, em Porto Alegre, uma história comovente se repetiu ao longo de um século. Uma quilombola nos disse que a avó dela, descendente de escravizados, teve a casa inundada pelas cheias de 1941. A avó fugiu de carroça, a neta de carro. “Agora chegou a minha vez”, disse, com a resignação de quem perdeu tudo.
Quero agradecer a vocês, que acompanharam a nossa cobertura, e reforçar o compromisso do Brasil de Fato de reportar essas e outras mudanças climáticas, sempre com uma visão popular.
Edição: Thalita Pires