Escalada da guerra

Ocidente muda política e dá luz verde para Ucrânia usar suas armas para atacar Rússia

Rússia diz que pode reagir na mesma moeda e alerta para 'consequências fatais' do novo passo do Ocidente

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, é recebido pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em Kiev, em 29 de abril de 2024 - Secretaria de imprensa da presidência ucraniana / AFP

Vários países do Ocidente autorizaram a Ucrânia a usar suas armas para atingir alvos em território russo. Desde o início da guerra em 2022, aliados ocidentais de Kiev estipularam que as armas enviadas por eles à Ucrânia poderiam ser usadas apenas para fins defensivos, não para atacar a Rússia.

Tal medida seria evitada porque uma ofensiva direta contra território russo com armas fornecidas pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) poderia agravar drasticamente a guerra. Agora, o Ocidente altera o curso desta política e o conflito pode entrar em uma perigosa escalada.

Pelo menos 13 países ocidentais autorizaram a Ucrânia a usar as suas armas contra alvos militares russos. Durante a última semana Alemanha, França, Reino Unido e Holanda deram luz verde para Kiev utilizar suas armas, alegando que tais ataques devem “respeitar o direito internacional”. Há também o caso de países como a Bélgica, que declarou que seus caças F-16 podem ser utilizados pela Ucrânia apenas em territórios ucranianos ocupados pela Rússia após o início da guerra.

Já os EUA, apesar de autorizar ataques com suas armas, mantêm a restrição de não permitir ataques com mísseis de longo alcance contra alvos na Rússia. No dia 31 de maio, o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, confirmou que o presidente Joe Biden deu permissão à Ucrânia para usar armas norte-americanas contra alvos militares em território russo.

No entanto, nesta quinta-feira (6), em uma entrevista à ABC News, Biden fez a ressalva de que os Estados Unidos não permitem o uso de armas estadunidenses para ataques contra Moscou ou ao Kremlin.

“Está autorizado o uso perto da fronteira quando elas (armas russas) são usadas através da fronteira para atacar alvos específicos na Ucrânia”, disse Biden. “Não permitimos ataques a 320 quilômetros de profundidade na Rússia e não permitimos ataques a Moscou, ao Kremlin”, completou.

Ao mesmo tempo, a posição do bloco europeu tem resistências por parte de países como Hungria e Itália, que se opõem à medida. Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político Vladimir Dzharalla afirma que os “países europeus fazem fortes declarações e até ameaças diretas (contra a Rússia), mas, ao mesmo tempo, a impressão é de que eles não percebem as consequências destas ameaças”.

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Segundo o analista, “aparentemente as partes europeias subestimam as consequências destes passos”. “As autoridades russas falam abertamente que o desenvolvimento dessa linha de atuação do Ocidente levará a um conflito direto”, acrescenta.

A Rússia reagiu à movimentação do Ocidente. O vice-chanceler russo, Serguei Ryabkov,, declarou que a autorização para que a Ucrânia use armas ocidentais em território russo poderia levar a consequências fatais.

Já o presidente russo, Vladimir Putin, disse na última quarta-feira (5) que se os países ocidentais fornecerem à Ucrânia armas que ataquem alvos em território russo, então a Rússia poderá considerar isso uma “resposta assimétrica” e fornecer armas semelhantes aos Estados de onde poderão ser realizados ataques contra “alvos sensíveis dos países que fazem isso em relação à Rússia”.

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, também se pronunciou e afirmou que o fornecimento de armas do Ocidente que podem ser usadas contra a Rússia “não ficarão sem consequências”.

A mudança de política sobre o fornecimento de armas à Ucrânia por parte do Ocidente foi reconhecida pelo secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, que reforçou a retórica

“Acredito que chegou o momento de considerar algumas destas restrições [ao uso de armas] para permitir que os ucranianos se defendam realmente. Precisamos lembrar o que é isto, esta é uma guerra de agressão lançada por escolha de Moscou contra a Ucrânia. A Rússia invadiu outro país, invadiu a Ucrânia e a Ucrânia tem, de acordo com o direito internacional, o direito de se defender. Está consagrado na Carta da ONU e o direito à autodefesa inclui também o ataque a alvos militares, alvos militares legítimos fora da Ucrânia”, afirmou.

Reação ao êxito militar russo

A mudança de política do Ocidente sobre o uso de armas pela Ucrânia está diretamente relacionada com a atual fase da guerra. A Rússia vem conquistando êxito em sua ofensiva contra a Ucrânia, intensificando ataques na região de Kharkov, a segunda maior cidade da Ucrânia, que fica a apenas 30 km da fronteira com a Rússia. Moscou alega que essa ofensiva em torno de Kharkov visa estabelecer uma zona de segurança para proteger o território russo dos ataques ucranianos.

O cientista político Vladimir Dzharalla observa que o objetivo principal da ofensiva sobre Kharkov está ligado à necessidade de Moscou estabelecer um cordão de segurança, uma zona tampão, para proteger o território russo de ataques ucranianos. Nos últimos meses, Kiev vinha intensificando os ataques na região russa de Belgorod, cidade fronteiriça à Ucrânia.

“Acho que praticamente todo mundo está de acordo com a tese de que a escalada do conflito está ligada com os êxitos militares da Rússia. O êxito desta operação acabou sendo inesperadamente muito alto. Como resultado, quase toda a linha de frente da Ucrânia começou a se desmantelar”, afirma Vladimir Dzharalla.

Anteriormente, em 17 de maio, durante a sua vista à China, o presidente russo, Vladimir Putin, declarou que hoje não há planos para capturar Kharkov hoje. De acordo com ele a ofensiva na direção de Kharkov está ligada à criação de uma zona sanitária em resposta ao bombardeio das regiões fronteiriças russas.

No caminho da escalada

Entre os especialistas militares, parece haver um consenso de que a autorização para que a Ucrânia utilize armas ocidentais contra a Rússia não significa uma mudança de paradigma no campo de batalha, considerando o tipo de armas e a escala dos ataques que está em discussão. No entanto, podemos estar observando uma séria mudança de política que pode levar a cenários imprevisíveis.

De acordo com o especialista militar Valery Shiraev, citado pela agência RTVI, “embora as mudanças em si sejam estrategicamente insignificantes, elas levarão a uma nova escalada”. “De acordo com a lógica das operações militares, o que é permitido num lugar irá gradualmente se espalhar para outras seções da linha de frente e para outras direções”, observa.

“Ataques com armas modernas sérias, como mísseis de cruzeiro, contra alvos russos nas profundezas do território não estão distantes. Primeiramente, os militares usam suas armas a uma distância de 15 km, depois atacam acidentalmente a uma distância de 40 km. Depois de dois meses, esses 40 km já se tornam a norma. Aí a arma começa a ser usada a 100 km e 300 km. Assim, com muita calma, a distância supostamente proibida se ampliará”, argumenta o analista, destacando que “o mesmo se aplica à escolha de alvos”.

Esta visão é compartilhada pelo cientista político Vladimir Dzharalla, que afirma que do ponto de vista militar, a permissão para uso de armas ocidentais contra a Rússia hoje “não muda nada de forma decisiva no campo de batalha”. “Mas, por outro lado, infelizmente todos os especialistas no campo das Relações Internacionais apontam que isso representa uma clássica situação de escalada”, afirma.

“Mesmo que tudo ocorra na esfera informacional e seja uma espécie de golpe simbólico, mas a discussão [sobre estes possíveis ataques] e as declarações feitas pelos líderes de Estado, começa a desencadear essa espiral de confrontação”, completa o analista.

Edição: Rodrigo Durão Coelho