A violência política ocorrida no âmbito dos mandatos dos parlamentares federais chegou a 133 casos no período entre janeiro de 2019 e maio deste ano. A estatística é do Observatório da Violência Política e Eleitoral (OVPE), vinculado ao Grupo de Investigação Eleitoral (Giel) da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Desse total, 31 envolveram senadores e 102 foram direcionadas a deputados federais, segmento que esta semana esteve no foco do noticiário por conta de pelo menos quatro novas ocorrências na Câmara.
“A violência política sempre existiu no Brasil, que é um país estruturalmente violento em diversos aspectos. Mas há questões conjunturais, ambientais, que podem estar relacionadas a essa velocidade dos casos hoje. Tivemos quatro episódios aí num tempo muito curto. É tudo muito intenso e rápido. Estamos vivendo um contexto de polarização, a palavra da moda na Ciência Política, e ela é importante para pensar [o tema] porque, com essa polarização, a gente acaba tendo disputas políticas mais acirradas”, comenta o cientista político Pedro Bahia, do Giel, ao mencionar os embates de narrativas e a projeção desse antagonismo para a opinião pública em geral.
Ele acrescenta a influência das redes sociais na intensificação dessas disputas. “É algo que começa com os embates ideológicos, de narrativas nas redes, e depois escala para coisas mais perigosas.” Um exemplo que atraiu os holofotes e chocou quem transitava pelos corredores da Câmara dos Deputados na última quarta (5) foi a briga pública entre André Janones (Avante-MG) e Nikolas Ferreira (PL-MG), que por pouco não chegou às vias da violência física.
Bastante atuantes nas plataformas digitais, os dois se digladiam com frequência no território digital e viveram um novo embate presencial na Casa, desta vez no Conselho de Ética. A briga surge também no contexto pré-eleitoral: ambos se tornaram vocalizadores emblemáticos dos seus respectivos campos políticos, sendo Nikolas ligado à extrema direita e Janones hoje vinculado à base do governo Lula no Congresso, embora sem um alinhamento histórico ao segmento da esquerda.
Em uma ancoragem mais ampla, dados sistematizados pelo observatório da Unirio apontam para a ocorrência de 148 casos de violência política em 2019; 531 no ano seguinte; 311 em 2021; 567 em 2022; e 371 no ano passado. Este ano, até o final de maio, já foram registradas 166. Com isso, o montante desde 1º de janeiro de 2019 até aqui é de 2.094 casos. Os números alcançam casos ocorridos em todo o país, com personagens políticos das três esferas de governo e atuação legislativa. Pedro Bahia chama a atenção para o registro de um maior número de episódios em anos eleitorais, como se pode observar em 2020 e 2022, sendo este último o ano em que a eleição presidencial opôs o então presidente Jair Bolsonaro (PL) e Lula (PT).
“Anos eleitorais têm mais casos porque, quando se tem eleições, os candidatos estão muito mais expostos à opinião pública, estão fazendo comícios, a imprensa está mais mobilizada pras questões políticas, os debates acontecem mais entre pessoas, lideranças, partidos. Há, infelizmente, uma expectativa agora de que tenhamos números maiores de violência política adiante, por conta do pleito deste ano.” Ele ressalta o peso das ocorrências locais. Considerando o período entre 2019 e 2024, os vereadores estiveram envolvidos em 772 das 2.094 ocorrências. Já olhando para os dados deste ano, às vésperas do pleito municipal, 62 dos 166 incidentes tiveram relação com o segmento. Desses, seis casos foram de homicídios de lideranças ou familiares.
“A gente tende a falar muito sobre a Câmara dos Deputados pelo fato de ela ter maior evidência, mas o padrão principal de violência política no Brasil está justamente no nível local. Primeiro, porque a gente tem mais de 5 mil municípios, então, há uma oferta de milhares de cargos de vereadores no país inteiro a cada eleição, o que faz com que, diante de um número maior [de parlamentares] municipais, eles acabem concentrando as ocorrências. Mas tem também uma outra questão: é mais fácil se chegar num vereador e agredi-lo do que se chegar a um senador da República. Além disso, um parlamentar federal sofre mais com agressões verbais, ameaças, mas, no caso dos vereadores, ocorrem mais casos de violência física e assassinatos”, destrincha o pesquisador.
Recortes
Em um recorte mais orientado para a Câmara dos Deputados, os dados do OVPE mostram que PT, PSOL e PL ocupam as primeiras posições no ranking dos 102 casos de violência política desde 2019: eles concentram respectivamente 19, 13 e 10 incidentes. Os números do observatório computam as ocorrências a partir da perspectiva das vítimas, não exatamente dos agentes da violência.
“Estamos falando aí de partidos que estão em evidência, inclusive nas redes sociais. O PSOL, por exemplo, tem poucas cadeiras, mas grande poder de debate público – a deputada Erika Hilton é um exemplo de quem tem certo reconhecimento nas redes. E perceba que o PT não é o maior partido da Câmara, mas é o primeiro mais atingido. A Câmara tem um perfil conservador, há uma maioria de centro-direita e direita, mas os dois partidos mais afetados pela violência política são de esquerda, que têm uma pauta diferente da maioria”, observa Pedro Bahia.
Gênero
Já no nível de uma segmentação de gênero, os homens concentram a maior parte das ocorrências na Câmara, com 74 dos 102 casos registrados entre 2019 e maio deste ano, sendo todos eles de homens brancos. “Isso ocorre porque estamos falando de um grupo que está sobrerrepresentado no parlamento, enquanto mulheres negras, trans e outros grupos estão em um número bem menor”, lembra Bahia. A Câmara atual tem apenas 17,7% de representatividade feminina entre as suas 513 cadeiras. A média global, segundo dados da União Interparlamentar (UIP), que reúne 193 países, é de 26,4%.
“A violência política de modo geral tem sempre o objetivo de minar o adversário por alguma questão política, ideológica, conflito partidário, etc., mas, quando ela é direcionada à mulher, pode incluir esses aspectos, mas geralmente tem também o objetivo de invalidá-la naquela posição ou tirá-la do campo político. Então, vão ser sempre acusações em relação à capacidade delas de atuarem na política, à identidade de gênero delas. O silenciamento também é muito comum”, afirma a pesquisadora Beatriz Carvalho, aluna do doutorado em Ciência Política da Rutgers University, nos Estados Unidos.
Na última quinta (6), a deputada Erika Hilton (PSOL-SP) protagonizou um novo embate com parlamentares da direita: depois de discutir com a bolsonarista Júlia Zanatta (PL-SC) e chamá-la de "ridícula" e "ultrapassada”, a parlamentar foi alvo de um novo ataque transfóbico por parte de Nikolas Ferreira, que respondeu com a frase "pelo menos ela é ela". O deputado tem histórico de ataques à população LGBTQIA+ e foi condenado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) no final do ano passado por transfobia contra a também deputada federal Duda Salabert (PDT-MG).
Dados compilados pelo OVPE em 2022 e 2023 mostram que, de 280 ocorrências envolvendo mulheres na política, 165 atingiram lideranças do campo da esquerda, 91 de direita e 23 de centro, com mais uma vítima de perfil ideológico ignorado. “De modo geral, as de esquerda são mais comprometidas com pautas da agenda feminista e acabam sendo alvo maior de ataques”, comenta Beatriz Carvalho. Por outro lado, os estudiosos perceberam que, de 546 casos envolvendo homens no mesmo período, 310 eram figuras de direita, enquanto 159 se situam à esquerda do espectro político e 71 ao centro, contando ainda com seis casos de pessoas com tendência ideológica não identificada.
“As mulheres também estão mais suscetíveis à violência psicológica – que pode se dar por meio de ameaças, falas mais agressivas, principalmente durante os debates em plenário – e também a abordagens de cunho sexual. Outros tipos de violência, como a objetificação, a gente vê que também são prevalentes entre mulheres”, aponta Beatriz. Para se modificar essa equação nos rumos da redução ou mesmo da erradicação da violência política de gênero, a pesquisadora vê como fundamental não só o combate à cultura da violência contra a mulher, mas também a ampliação da representatividade feminina na política.
“Esse aumento é algo que tem sido muito discutido e almejado, mas é importante mencionar que apenas a eleição de mulheres em si não é uma garantia de que esses direitos serão assegurados e de que as queixas do segmento serão ouvidas. É necessário que as mulheres eleitas estejam comprometidas com agendas voltadas aos direitos das mulheres, assim como também seria importante que os homens se engajassem e estivessem atentos a esses direitos”, conclui a pesquisadora.
Edição: Rodrigo Gomes