Mulheres e meninas vítimas de violência sexual estão enfrentando dificuldades no acesso ao aborto legal em São Paulo. Desde dezembro de 2023, a Prefeitura proibiu o procedimento de assistolia fetal em gestações acima de 22 semanas no Hospital Municipal Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte da capital. O local era referência no tratamento desses casos. O procedimento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto legal em gestações avançadas. No Brasil o aborto legal é garantido quando há risco à vida materna, em casos de estupro e de gestação de feto anencéfalo.
Na esteira do fechamento do serviço no Hospital Municipal Vila Nova Cachoeirinha, o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu uma portaria no dia 4 de abril limitando o procedimento para gestações acima de 22 semanas. A resolução permitia que fossem abertos procedimentos administrativos e disciplinares contra médicos, o que provocou, segundo ativistas, uma perseguição por parte do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) contra duas profissionais que executavam o procedimento.
A medida que restringia o acesso ao direito ao aborto seguro foi suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes em maio. Ainda assim, o cenário de dificuldades enfrentado por quem precisa realizar o aborto se mantém em São Paulo. Quatro hospitais municipais que deveriam atender essas gestantes não estão realizando o procedimento, de acordo com mapeamento da Defensoria Pública do estado de São Paulo. "Em regra, o Mário Degni, o Tatuapé, o Campo Limpo e o Tide Setúbal deveriam atender os casos de gestação avançada. O Tatuapé já adianto pra vocês que nem a equipe completa tem. Então hoje ele já não é um hospital que vai atender. Pelo nosso mapeamento nenhum deles está atendendo", afirmou a defensora pública Paula Sant’Anna.
A lacuna deixada pelo fechamento do serviço no Hospital Vila Nova Cachoeirinha dificultou a busca pelo procedimento para pelo menos duas mulheres. Segundo Sant’Anna, uma mulher vinda do interior de SP teve o procedimento negado no Hospital da Mulher, gerido pelo governo estadual, ainda antes da resolução do CFM que impedia o procedimento.
"O Hospital da Mulher tem um protocolo interno que só faz interrupção até 20 semanas. Não é legal, mas eles funcionam assim. O hospital deveria encaminhar essa mulher via Cross [sistema informatizado] para um outro serviço. Essa mulher saiu sozinha do hospital rondando o centro de São Paulo até achar uma Defensoria e depois de não sei quantas horas ela chegou até o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres."
A defensora contou que a mulher chegou à Defensoria com 24 semanas de gestação e foi encaminhada para o Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha [Campo Limpo], onde novamente não conseguiu realizar o procedimento. "Essa mulher recebeu uma negativa e logo em seguida veio a resolução do Conselho Federal de Medicina."
Após a resolução, outra mulher teve o procedimento impedido também no Hospital da Mulher, depois de ter buscado o serviço do Hospital Vila Nova Cachoeirinha. "A moça foi bater no Cachoeirinha porque todo mundo sabe que o Cachoeirinha era referência, ela recebe o quê? Uma lista de hospitais, não tem encaminhamento. No Hospital da Mulher foi marcada uma ultra sonografia, eles reagendaram essa moça para a semana seguinte quando ela completou 22 semanas", disse a defensora.
De acordo com Heloana Aparecida, diretora do Sindicato das Médicas e Médicos de São Paulo (Simesp), a Prefeitura de São Paulo não respondeu às questões feitas pelo sindicato sobre o destino das mulheres que seriam atendidas no Hospital Cachoeirinha. "Logo que foi fechado o serviço a gente cobrou a Prefeitura de São Paulo, tivemos respostas bastante evasivas num ofício que a gente fez, perguntamos para onde as mulheres que eram atendidas no Cachoeirinha estavam indo e eles não souberam informar."
Para além das dificuldades encontradas pelas usuárias do serviço, prontuários de pacientes do Hospital Vila Nova Cachoeirinha foram acessados pelo Cremesp. Além disso, o secretário municipal da Saúde, Luiz Carlos Zamarco, chegou a admitir que os dados tinham sido copiados, em janeiro deste ano.
A vereadora Silvia Ferraro, da Bancada Feminista do Psol, afirma que a situação simboliza uma violação ao direito ao sigilo médico. "Tanto a posição do Conselho Federal de Medicina, quanto a posição do Cremesp são inconstitucionais e não levam em consideração o Código Penal Brasileiro, que diz que para fazer o procedimento do aborto em caso de violência sexual não existe limite gestacional. Também não leva em conta o sigilo médico. É uma série de violações que esses órgãos que representam os médicos no Brasil e de São Paulo estão cometendo."
Segundo Luiza Cadioli, médica de família e comunidade, milhares de meninas são mães todos os anos. "São 17 mil meninas menores de 14 anos mães todos os anos no Brasil e pouquíssimas delas acessam o serviço de aborto legal. Fora a quantidade de gestações decorrentes de estupro e de fetos anencéfalos que nascem todos os anos, que é em torno de 300 a 400, ou seja, se eles estão nascendo as mulheres não estão conseguindo fazer o aborto."
Em nota, o Cremesp afirmou que, como autarquia federal, tem a prerrogativa de fiscalizar o exercício ético da medicina em qualquer instituição hospitalar no Estado de São Paulo. O órgão afirmou ainda que "jamais permitiria a utilização do seu poder-dever fiscalizador para perseguir médicos, tampouco para reprimir ideologias de qualquer espectro político".
A reportagem buscou a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) que disse que não acessou nenhum prontuário de paciente e negou que os hospitais Tatuapé, Campo Limpo, Tide Setúbal e Mário Degni não estejam realizando os procedimentos do programa Aborto Legal. O Hospital Municipal Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, diz a pasta, segue em funcionamento, realizando outros serviços e procedimentos. O CFM e não respondeu às questões enviadas.
Em nota a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo disse que "segue todas as previsões legais para interrupção de gravidez, visando garantir a segurança, o acolhimento e o atendimento humanizado às mulheres vítimas de estupro, além das demais situações previstas em lei. No estado de São Paulo são 12 serviços de saúde habilitados para a interrupção da gestação". A pasta ainda afirmou que "em casos de gestações acima de 22 semanas, o Hospital da Mulher segue protocolo e referencia as grávidas via Cross (Central de Regulação da Oferta de Serviços de Saúde) para local com maternidade e serviço de UTI neonatal, em garantia ao atendimento necessário."
Edição: Thalita Pires