Centro-direita e centro-esquerda podem criar coalizão para evitar ruptura do bloco europeu
A onda de extrema direita que tomou o Parlamento Europeu após as eleições do último fim de semana (8 e 9 de junho) é um reflexo de uma "crise existencial" que assombra o continente desde a derrocada financeira de 2008, que atingiu todo o sistema econômico global. É o que explica o jornalista Jamil Chade, correspondente brasileiro em Genebra, na Suíça.
"Nesse contexto de crise existencial, de perda de produtividade, de perda, inclusive, de protagonismo no mundo, o que vem acontecendo é que justamente vendedores de ilusão, charlatões, mentirosos vendem projetos que basicamente não trazem soluções, vendem ilusões", completa o jornalista.
A União Europeia, criada no pós-Segunda Guerra Mundial – primeiro como bloco econômico, em 1957, e depois como plataforma social e política – serviu como ferramenta para estabilizar os 27 países integrantes. A ideia de bem estar social e livre circulação trouxe um ambiente de unidade, que tem sido, aos poucos, fragmentado.
"Você vê um desmoronamento daquele estado de bem estar social, uma grande desilusão em relação aos partidos tradicionais. Essa desilusão, claro, é canalizada pela extrema direita, insisto, com falsas promessas, com receitas que obviamente não fazem qualquer tipo de sentido, mas que diante dessa crise, que é uma crise realmente muito profunda, acaba convencendo uma parcela importante da população europeia a seguir a esse caminho", aponta Chade.
No pleito, foram eleitos, por exemplo, partidos políticos com tendências nazistas, como o Alternativa para a Alemanha, e outros com inclinações anti-imigração e discursos xenófobos, como Reagrupamento Nacional, da francesa Marine le Pen. Figuras extremistas desses partidos têm sido colocadas em segundo plano, em uma espécie de suavização do discurso radical. A real intenção desses partidos, no entanto, "fica evidenciada ao ler seus programas políticos", conta Chade.
"Os partidos de extrema direita notaram que se eles moderarem o tom, não o programa, parece que eles entram na normalidade do jogo democrático e, portanto, eles podem ser aceitos por todos", completa.
O jornalista Jamil Chade é o convidado desta semana do BdF Entrevista e explica que "por muito tempo, os democratas diziam que iriam criar um cordão sanitário" para evitar que forças ultraconservadoras pudessem abalar a estabilidade do bloco. "Mas como é que você cria um cordão sanitário com 20% do parlamento? É muito complicado", aponta.
Grande parte desses partidos também se coloca de forma contrária à união de países europeus em bloco. Segundo Chade, em um primeiro momento, não há riscos para a dissolução da União Europeia. "Há uma aliança de centro-direita com a centro-esquerda, e isso criaria então, uma coalizão, ou pelo menos um consenso de um bloco grande dentro do parlamento, afirmando que não há espaço para pensar uma ruptura ou desmonte".
A tendência, explica o jornalista, é que políticas progressistas passem a ser questionadas dentro do Parlamento, e que para a própria sobrevivência da União Europeia, parlamentares façam "concessões" aos políticos de extrema direita.
"Não vai começar pelo desmonte, ele começaria pela concessão da área de imigração, concessão da área de segurança, concessão da área soberana, enfim. Tem vários canais que você pode ver uma crescente concessão à extrema direita".
Na entrevista, Chade também fala sobre os riscos da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, da ascensão do Brics, os conflitos na Palestina e entre Rússia e Ucrânia e também aponta os caminhos para sobrevivência da Organização das Nações Unidas (ONU).
Confira alguns trechos da entrevista abaixo. No vídeo acima, você pode conferir a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Como não podia ser diferente, a gente precisa começar esse papo falando sobre as eleições do Parlamento Europeu, que aconteceram no último fim de semana, 8 e 9 de junho. Elas tiveram repercussões importantes e o primeiro fato é que a direita e a extrema direita avançaram de maneira importante em vários países europeus, certo?
Jamil Chade: Exatamente, meu caro. E, de fato, essa é uma eleição que muitos, inclusive, chamaram de "Momento Trump" da Europa. Por quê? Porque, claro, houve essa vitória da direita, vamos dizer assim, tradicional – eu diria até moderada, em comparação ao que nós vemos em outras formações. Mas, acima de tudo, o que aconteceu foi um avanço inédito da extrema direita em vários países da Europa ao mesmo tempo.
Só pra gente colocar no contexto, na França, não é só que a extrema direita venceu. Ela venceu com uma margem absurdamente enorme em comparação ao segundo colocado, que era justamente a direita do partido de Emmanuel Macron. Só pra gente colocar em números, a extrema direita francesa vai mandar para o parlamento europeu cerca de 30 deputados. Macron vai mandar 13, ou seja, é menos da metade.
Na Alemanha, a Alternativa para a Alemanha, que é o partido de extrema direita, herdeiros de neonazistas, com uma relação muito complicada, inclusive sendo acompanhado de muito perto pela própria inteligência alemã, esse partido chega em segundo nas eleições alemãs, superando inclusive o partido de Olaf Scholz, o chanceler alemão.
Em outros lugares da Europa, coisas muito similares aconteceram. Na Itália, o partido da Giorgia Meloni, que é de extrema direita, também vencendo. Na Holanda, em segundo lugar, na Áustria, pela primeira vez, um partido de extrema direita vencendo. Ou seja, há uma óbvia tendência à extrema direita em toda a Europa. Isso, claro, é muito preocupante, porque obviamente a gente sabe o que significa isso tudo.
Mas, acima de tudo, é um grande desafio. Por quê? Porque a Europa vive uma crise existencial. Não há nenhuma dúvida sobre isso. Agora, nesse contexto de crise existencial, de perda de produtividade, de perda inclusive de protagonismo no mundo, o que vem acontecendo é que justamente vendedores de ilusão, charlatões, mentirosos – pra gente colocar numa palavra muito clara aqui – vendem projetos que basicamente não trazem soluções: vendem ilusões. Vendem ideias de que existe uma solução fácil e que basta colocá-los no poder. E é desta forma que esses partidos chegam com muita força agora no poder.
Há uma crise também nessa ideia de bem estar social da Europa. Eu estava vendo recentemente que a Suécia teve uma onda de criminalidade gigantesca. Talvez isso mexa com o ideário dos eleitores aí europeus, não é?
Certamente, a gente não tem como entender a eleição de 2024 sem olhar lá para trás, para 2008. Por que 2008? A crise financeira internacional que acontece principalmente na Europa, com a Europa dizendo o seguinte: "olha, pra gente socorrer os bancos, nós vamos desmontar o estado de bem estar social”. E aí há um desmonte, não só das aposentadorias, mas de toda a rede que existia durante todo o século 20.
Então você vê um desmoronamento daquele estado de bem estar social, uma grande desilusão em relação aos partidos tradicionais. Essa desilusão, claro, é canalizada pela extrema direita, insisto, com falsas promessas, com receitas que obviamente não fazem qualquer tipo de sentido, mas que diante dessa crise, que é uma crise realmente muito profunda, acaba convencendo uma parcela importante da população europeia a seguir a esse caminho.
É um caminho extremamente perigoso, um caminho que, obviamente, revela muita xenofobia. Muitos desses partidos trazem programas extremamente xenófobos, extremamente anti-imigração. Isso tudo, claro, fica evidenciado ao ler os programas políticos desses partidos.
Às vezes, e é isso que tem acontecido aqui na Europa com bastante frequência, os partidos de extrema direita notaram que se eles moderam o tom, não o programa, parece que eles entram da normalidade do jogo democrático e, portanto, eles podem ser aceitos por todos.
Mas o que ninguém – ou pouca gente – vai ver é justamente o programa. E o programa não mudou. O programa continua anti-imigração e é claro que há um grande ponto de interrogação sobre como serão os próximos cinco anos da Europa.
Como você estava falando, a França talvez represente o caos que se instalou na Europa. Depois da derrota para a extrema direita de Marine le Pen, Macron dissolveu o parlamento. Quais as consequências dessa derrota para Macron?
Antes de mais nada, a França é, como você falou, talvez o epicentro hoje do caos europeu, porque obviamente você tem uma extrema direita que, ao longo de muitos anos, foi crescendo. Ela não tinha um projeto imediato, era um projeto de longo prazo, e esse projeto de longo prazo começa a dar resultados hoje.
E um grande artífice, ajudando basicamente a extrema direita, é o próprio presidente da França, que não é de extrema direita, mas obviamente criou uma insatisfação popular tão grande e uma desilusão tão grande em relação ao seu governo que, claro, abriu um espaço muito perigoso para a extrema direita.
E o que ele faz, que é um ato de um risco gigantesco, mas sempre para se manter no poder? Esse é sempre o objetivo. Não é lidar com as questões existenciais da França, é obviamente o seu partido ter algum tipo de prevalência. Ele convoca eleições para a Assembleia Nacional, o parlamento francês, para gerar uma espécie de choque, para você usar o momento de susto – porque é isso que a Europa vive hoje, o susto diante do resultado da extrema direita – para dizer: "olha, está na hora de vocês comparecerem às urnas para salvar o sistema".
Porque, claro, se você tem uma participação, por exemplo na França, que se eu não me engano foi de 45%, 48%, a esperança é de que em uma eleição nacional, esse número vai subir para 80%. E aí, os que não votaram, não votariam pela extrema direita e ele, então, se resguardaria e mostraria para a extrema direita: "olha, vocês não são tão poderosos assim".
Agora, claro, isso pode ser um tiro no pé. Ele pode, eventualmente, fazer tudo isso e, de repente, o resultado eleitoral não só mostrar que a extrema direita é forte, como literalmente abrir as portas do poder para a extrema direita. Então, ele corre o risco. Vamos ver o que vai acontecer nas próximas semanas, mas ele corre o risco de, numa tentativa de se salvar, literalmente abrir as portas do poder da França para a extrema direita.
Jamil, um outro país que você citou no começo da nossa conversa foi a Alemanha. Por lá houve uma guinada à extrema direita importante. O Alternativa para Alemanha que tem, como você falou, ligações nítidas com o nazismo, fizeram a sua melhor marca eleitoral, em segundo lugar, atrás apenas da União Democrata Cristã, de direita mais moderada, digamos assim. Como devem reagir Olaf Scholz e o Partido Social Democrata Alemão?
Essa é uma história também extremamente impressionante, porque no começo desse partido, ele dava claros sinais de que tinha uma ligação com o neonazismo. Integrantes que faziam todas essas, vamos dizer assim, teatralizações muito parecidas. Mas o que acontece é que o partido, pouco a pouco, ou vai expurgando essas pessoas ou vai transformando essas pessoas, talvez, em nomes um pouco mais marginais e colocando na frente, pessoas com um discurso um pouco mais moderado. Insisto, é só o discurso, justamente para mostrar que "não, nós não temos nenhuma relação com o passado complicado da Alemanha".
Mas só para vocês imaginarem, uma das deputadas desse partido [Beatrix Von Storch] chegou a ir ao Brasil e se encontrou com Eduardo Bolsonaro, com Damares Alves. Ela é a neta de um ministro do Hitler, então vamos deixar muito claro quem é quem aqui, porque não é porque estamos no século 21 que essas ideias não sobrevivem, que não têm herdeiros.
Elas não só têm herdeiros intelectuais, como nesse caso a herdeira é de família, de fato, no caso do ministro das finanças que ficou com Hitler durante 12 anos. Ou seja, não é aquele ministro que passou, que só ocupou a cadeira…não, foram 12 anos como ministro das finanças do regime nazista. Gente, não tem o que dizer, você não fica 12 anos como ministro da fazenda dizendo "eu só concordo com uma parte da ideologia".
Esse partido também vem surfando justamente nessa desilusão. Agora, os dados também são muito reveladores. Eles foram os grandes vencedores no leste da Alemanha, na Alemanha Oriental, nas cinco províncias, se a gente quiser colocar assim, que faziam parte da Alemanha Oriental. Eles ganham lá em primeiro lugar em todos esses estados. Não ganham na Alemanha ocidental, em Berlim, etc, mas diante da média, eles acabam ficando em segundo lugar.
Para o partido de Olaf Scholz, é uma enorme derrota, obviamente. É um reconhecimento de que, claro, existe uma busca, como foi colocado ontem, para se reencontrar. O que quer dizer exatamente isso? Provavelmente é reassumir o seu caráter de esquerda e reassumir um papel progressista desse partido, sem concessões. Essa é uma das principais críticas ao governo de Olaf Scholz, que a esquerda, ou pelo menos uma parte da esquerda do seu partido, acabou optando por negociar, optando por governar, e deixando de lado alguns princípios.
E aí paga um preço muito alto quando o eleitorado se dá conta que não há esse compromisso. No caso da Alemanha é muito grave porque esse partido [Alternativa para Alemanha], pra você ter uma ideia, ele é acompanhado pelo sistema de inteligência da Alemanha por muitas suspeitas em relação às intenções desse partido, inclusive as intenções antidemocráticas.
Existe um processo correndo contra alguns integrantes desse partido que se aliaram a grupos de extrema direita para tentar, imagine só, promover um golpe na Alemanha. Você tem ideia? Existe isso também... E, para completar, esse também é um aspecto com muita informação desencontrada, que é o fato de que alguns desses deputados da extrema direita alemã estão envolvidos em casos de corrupção.
Por outro lado, Jamil, ainda há uma manutenção de uma maioria de centro e centro-esquerda no parlamento. Uma das bandeiras desses partidos de extrema direita é a dissolução da União Europeia. Com essa eleição, há um risco de dissolução do bloco?
Imediata, não. Porque como você colocou há, eventualmente, uma aliança de centro direita com a centro esquerda, e isso criaria então, uma coalizão, ou pelo menos um consenso de um bloco grande dentro do parlamento, afirmando que não há espaço para pensar uma ruptura ou desmonte.
Mas vamos pensar: como ignorar 140 deputados de extrema direita? Como fazer isso na prática? Porque você de esquerda, ou você da direita tradicional, moderada, vai precisar, para passar o seu projeto de lei, eventualmente conversar com aqueles que agora estão presentes no parlamento europeu.
E aí a grande preocupação é que haja concessões. Então, não vai começar pelo desmonte, ele começaria pela concessão da área de imigração, concessão da área de segurança, concessão da área soberana, enfim. Tem vários canais que você pode ver uma crescente concessão à extrema direita. E vendo o que a gente já viu na Europa nos últimos anos, o que tem acontecido? "Ah, não, a gente vai convencer a extrema direita a ficar moderada".
Não é isso que tem acontecido. E nós temos visto que a direita tradicional passou a ficar muito próxima em termos políticos da extrema direita, para não perder o eleitor. Ela passou a falar de imigração como ela nunca tinha falado antes. Inclusive, é curioso porque a extrema direita aparece para dizer o seguinte: "pessoal conservador da Europa: essa direita não representa vocês, essa direita é quase esquerda, essa direita não serve. Nós somos a verdadeira direita".
E o que faz a direita tradicional? Tenta se aproximar da extrema direita. "Nós não podemos perder esse eleitor. Vamos trazê-lo de volta incorporando alguns elementos dessa extrema direita". O que nós temos visto é uma contaminação cada vez maior das agendas políticas pela extrema direita. O que vai acontecer? É muito difícil saber. Mas o que a gente sabe é que o parlamento europeu vai ter essa composição pelos próximos cinco anos. Não é uma coisa temporária que daqui três meses vai mudar.
Por muito tempo, os democratas diziam que iriam criar um cordão sanitário que a as forças liberais, as forças de esquerda, as forças conservadoras democráticas, iriam se reunir sempre para criar um cordão sanitário, mas como é que você cria um cordão sanitário com 20% do parlamento? É muito complicado.
Você falou logo no começo da conversa sobre um "Momento Donald Trump" para ilustrar esse avanço da extrema direita na Europa, e no meio de tudo isso, a gente tem o Donald Trump concorrendo nos Estados Unidos, com chance real de vencer as eleições. Essa seria uma tempestade perfeita para a extrema direita global?
É, talvez, uma constelação perfeita para que isso tudo aconteça de uma forma muito dramática. Vamos só imaginar…nós temos na Argentina, que não é uma economia desprezível, apesar de todos os seus problemas, faz parte do G20. Você tem na Europa uma situação de um terremoto político, e eventualmente, em novembro, nós vamos ter nos Estados Unidos um governo de Donald Trump.
Inclusive, eu estive em uma das reuniões da extrema direita europeia e eu ouvi deles que, de fato, que o plano é que eles esperam que em 2025 haja uma espécie de arco da extrema direita no Atlântico Norte, ou seja, as duas potências do ocidente, Europa e Estados Unidos controlados, ou pelo menos com muita força, da extrema direita.
Isso teria um impacto global, sem dúvida nenhuma. Se você tem Europa e Estados Unidos do lado, ou pelo menos influenciados pela extrema direita, você tem uma repercussão, sem dúvida nenhuma, em todos os campos da política internacional: guerras, na questão da sobrevivência da ONU, na questão das crises humanitárias, na questão migratória, enfim. Seria um impacto profundo da política internacional.
Edição: Thalita Pires