Coluna

O Congresso Nacional Africano e as eleições na África do Sul

Mais de 20 milhões de sul-africanos votaram nas primeiras eleições democráticas da África do Sul, em 27 de abril de 1994 - AFP
O colonialismo de povoamento na África do Sul e a montagem do sistema de apartheid

Diversos países, desde as Américas à Ásia e passando pela África tiveram sua história profundamente marcada pelo colonialismo, no caso da África do Sul foi o colonialismo de povoamento. Este processo teve início com a chegada dos colonizadores holandeses em 1562 na atual Cidade do Cabo e o domínio da população branca se estendeu ao longo de vários anos com a hierarquia racial sendo desmantelada somente em 1994, a colonização moldou a estrutura social, econômica e política do país dando abertura para a implantação do apartheid.

A colonização da África do Sul teve um papel crucial na formação do estado moderno sul-africano. O colonialismo de povoamento não foi apenas um processo de ocupação territorial, mas também de criação de estruturas de poder que favoreciam os colonizadores europeus. A formação de um estado colonial envolveu a expropriação de terras indígenas e a implantação de um sistema de governo que marginalizasse a população nativa (BULLERJAHN, 2017).

Este processo foi intensificado com a chegada dos britânicos no início do século XIX, que estabeleceram uma administração colonial mais rígida e estruturada. A mineração de diamantes e ouro, descobertos no final do século XIX, transformou a África do Sul em uma potência econômica regional. No entanto, essa riqueza foi construída em cima da exploração brutal da força de trabalho africana, consolidando ainda mais as desigualdades sociais e econômicas.

Os colonizadores holandeses, conhecidos como bôeres, estabeleceram as primeiras colônias permanentes na região do Cabo. A convivência inicial com as populações indígenas Khoisan rapidamente deu lugar a conflitos violentos, resultando na expropriação de terras e na destruição de modos de vida tradicionais. Com a chegada dos britânicos, a colonização se expandiu ainda mais, culminando em guerras e na subsequente consolidação de um estado colonial que marginalizava a maioria africana.

Assim, ao lançar os olhos sobre a história da África do Sul é imprescindível mencionar o sistema de segregação de raças a qual o país foi submetido, conhecido como “apartheid” em africâner. Uma das heranças da colonização de povoamento, foi um sistema de segregação racial imposto pelos colonizadores britânicos ao povo sul-africano em meados do século XX por meio de leis que visavam fortalecer o domínio branco em detrimento da população não-branca, esta que correspondia a cerca de 75% da população na época, sustentado pelo mito de superioridade racial europeia.

Desde o início do seu domínio em 1910, o governo britanico representado na figura de Louis Botha iniciou os primeiros atos segregacionistas em formato de leis que paulatinamente culminaram no que seria a institucionalização de um processo de marginalização e debilitamento da população não-branca da África do Sul (CARVALHO, 2018).

Entre tantos atos é possível mencionar as leis que concentravam a maior porcentagem de terras nas mãos dos sul-africanos brancos, que impossibilitavam o acesso de pessoas não-brancas na política, as que proibiam o compartilhamento de espaços públicos entre brancos e não-brancos e a proibição do casamento interracial estabelecida por meio de uma lei de moralidade.

Apesar de haver leis seccionárias desde o início do século XX, o apartheid só vai ser institucionalizado no fim dos anos 1940, e fortalecido no final dos anos 1950 sob governança do primeiro ministro Hendrik Verwoerd entre 1958-1966.

Considerado pela história como o “arquiteto do apartheid”, Verwoerd intensificou as leis segregacionistas e principalmente as punições para quem as transgredisse, foi responsável pela sentença à prisão de Nelson Mandela, lider do Congresso Nacional Africano (CNA) em 1964, e pela criação de reservas territoriais para os bantus, os bantustões, que forçou o deslocamento em massa da população negra.

Ações separatistas estas que foram justificadas por princípios de ordem moral e até mesmo religiosa, vide o contraste da situação do país com o restante do “mundo civilizado”. Logo, é visível como o colonialismo de povoamento na África do Sul teve efeitos duradouros e profundos na configuração do país.

Desde a destruição das sociedades indígenas e a imposição de uma hierarquia racial, até a formação de um estado moderno construído sobre a exploração econômica e social, o legado do colonialismo ainda é perceptível nas estruturas sociais e econômicas contemporâneas.

O surgimento e importância histórica do Congresso Nacional Africano

Paralelamente ao desenvolvimento do sistema de segregação que viria a compor o apartheid como um todo, deu-se também a criação do Congresso Nacional Nativo da África do Sul, mais precisamente em 8 de Maio de 1912, encabeçado pelo advogado Pixley Seme e apenas 2 anos após a formação da União Sul-Africana, constituída em 1910 pelas lideranças brancas do país e que optaram por excluir os povos nativos do acordo com o Reino Unido (BOOYSEN, 2011).

Já em 1913 o CNNAS foi posto à prova com o Ato de Terras promulgado pelo Parlamento Sul-Africano. Foi decidido que a população nativa estava proibida de adquirir terras ou trabalhar em fazendas através de arrendamentos, além do que, estaria restrita a ocupar uma porção que equivaleria ao montante de 7,5% do território nacional.

Como resposta, o Congresso Africano organizou uma comitiva que se dirigiu ao Reino Unido buscando discutir a situação, contudo sem êxito algum, muito por conta do racismo difundido na sociedade inglesa e pela Primeira Guerra Mundial que viria  a ocorrer logo em seguida. Ainda que sem atingir o objetivo principal, a organização ganha experiência de mobilização (GOMES, 2013).

Ao longo da década de 20 o movimento passa a contar com uma ala mais propensa aos ideais comunistas que pairavam no contexto internacional e em 1923 é renomeado para Congresso Nacional Africano, mesmo ano em que passa a vigorar o Ato de Áreas Urbanas, segregando os distritos financeiros em detrimento dos nativos.

A aproximação de muitos integrantes aos preceitos sindicalistas das organizações International Socialist League (ISL) e Industrial Workers of Africa (IWA) passou a criar tensões internas e foi responsável por diversas tentativas de implementar greves gerais nos setores industrial e minerador (WALT, 2012).

As décadas de 30 e 40, foram marcadas pelo recrudescimento de leis segregacionistas. A população nativa teve a sua representação no parlamento abolida e esses postos acabam ocupados por três homens brancos, casamentos inter-raciais foram proibidos por lei e, com a vitória eleitoral do Partido Nacionalista em 1948, o apartheid torna-se um sistema social mantido e condicionado pelo Estado.

Diante disso, o CNA lança em 1944 a Liga da Juventude do Congresso Nacional Africano, sob o comando de Nelson Mandela, com vistas a aplicar a desobediência civil contra os agentes repressores do Estado sul-africano.   

Ao longo dos anos 50, o CNA demanda a busca de representatividade política dentro do contexto de jugo político e social ao qual a grande maioria da população estava submetida. A publicação da Carta da Liberdade em 1955 delineava que a democracia deveria ser o caminho ideal, e portanto com possibilidade de sufrágio via eleições sem que ocorressem delimitações raciais ou étnicas (SUTTNER, 2015).

Tão dramática quanto canônica para a luta de libertação nacional, a década de 60 foi marcada por três eventos de suma importância. Primeiramente pelo Massacre de Sharpeville, quando forças policiais abriram fogo contra manifestantes e vitimaram dezenas dentre os presentes.

Um ano depois, era fundado o braço militar do CNA, denominado Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação), incumbido de ações armadas contra o Estado sul-africano em resposta aos inúmeros desmandos e abusos cometidos pelas autoridades. Por fim, Mandela e outros líderes da organização seriam presos e condenados por sabotagem e conspiração (LANDAU, 2022).

Não apenas o CNA, mas diversos atores sociais como estudantes, sindicatos, exilados e outros acabaram por se rebelar contra o Estado sul-africano. Em 1976, durante um grande protesto de estudantes no distrito de Soweto, a polícia abriu fogo contra a multidão, vitimando dezenas de jovens e tornando-se este um marco na mobilização estudantil contra o regime ao redor do país.

A transição Neocolonial e a África do Sul pós apartheid

Em meio às muitas divergências que marcavam o fim do apartheid, havia um único ponto em comum entre os organismos internacionais e a elite e grupos populares locais, que era a necessidade de mudança de regime.

Os grupos populares e internacionais estavam descontentes com a legislação segregacionista e a elite estava descontente com a crescente pressão financeira resultante do boicote internacional e da elevação das despesas públicas relacionadas à contenção de dissidências internas, conflitos com países vizinhos, contrários ao regime, modelo de bem estar destinados à população branca e crise do modelo desenvolvimentista.

A ascensão da ANC ao poder marca uma nova fase na política, na economia, nas relações diplomáticas e na concepção de direitos do estado sul-africano marcado pela tentativa de conciliação entre uma politica de universalização do acesso aos serviços públicos, visando reverter as disparidades criadas durante o apartheid, com a manutenção das garantias dadas durante o acordo, por meio da promoção do desenvolvimento e da capacitação.

Com relação ao governo Nelson Mandela, pode-se destacar a expansão da parceria do país com organismos internacionais e com seus vizinhos, a implementação da Comissão da Verdade e Reconciliação (TRC), e a implementação do Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (RDP), bem como o desenvolvimento de uma nova política macroeconômica do período.

No campo diplomático o país seguiu uma politica de não alinhamento mais ativa, de modo que o continente sediou importantes conferências internacionais como a 3ª Conferência da ONU contra o Racismo, a Discriminação e a Intolerância, bem como a cúpula da terra (Rio+10); em âmbito regional  o país contribuiu para a integração econômica da região por meio da transformação, em 1992, da coordenação para o desenvolvimento da África austral (SADCC) em Comunidade para o desenvolvimento da África Austral (SADC), com atribuições mais concretas e com a aprovação de uma área de livre comércio para ser aberta na próxima década, além da transformação da OUA em união Africana, que, com a ajuda da Libia, ampliou seus objetivos e criou condições para uma cooperação mais íntima entre os países do continente para uma verdadeira integração.

O TRC tinha como o objetivo investigar abusos ocorridos durante o apartheid, candidaturas a anistia, formular propostas de assistência e reabilitação das vítimas. Já o RDP tinha como objetivo o desenvolvimento econômico por meio da capacitação de recursos humanos e a promoção de políticas públicas para as áreas relacionadas ao trabalho, habilitação, saneamento básico, acesso a água.

Porém, o sucesso parcial devido à inexperiência dos gestores do governo, além da dificuldade de conciliar o programa com uma política fiscal e monetária mais restritiva, resultou tanto na falha parcial do RDP quanto ao baixo crescimento da economia no período.   

No governo Thabo Mbeki, podemos destacar as estratégias de desenvolvimento do GEAR (crescimento, emprego e redistribuição), voltado a promover redistribuição e desenvolvimento por meio da expansão da atividade manufatureira e criação de vagas no setor com base no investimento privado para aumentar a competitividade da economia e suprir a demanda de serviços à população mais pobre e o programa de capacitação Black Economic Empowerment (BEE), que contribuiu para a formação de uma classe capitalista e média negra, tendo como premissa básica estabelecer um numero crescente de empresas e negócios na mão de negros (Ibidem, p.74-75).

Porém, a efetividade desses programas foi limitada pela ausência de recursos, devido à política macroeconômica muito restritiva que atraiu principalmente investimento na forma de capital especulativo, pela incerteza referente ao custo e sua compensação de se expandir os serviços para as áreas pobres, além da dificuldade de acesso dessa população aos serviços devido ao valor insuficiente dos subsídios.

Assim, o crescimento da economia em torno de 1% foi insuficiente para combater o desemprego e as desigualdades sociais. Somado a isso, o governo Mbeki começou a enfrentar grande oposição devido à maior centralização do poder durante seu governo, o menor diálogo com grupos mais à esquerda e a negligência do governo durante o crescimento de casos de HIV/AIDS. O governo Zuma, por sua vez, buscou conciliar a agenda de crescimento econômico com a ampliação de benefícios públicos.

Apesar das conquistas da população no que tange o acesso ao voto, liberdades individuais e maior acesso a serviços públicos com o advento do regime democrático, ainda há a permanência da desigualdade social e da pobreza que ainda acomete a população negra, devido à qualidade e quantidade de vagas oferecidas pelos serviços públicos e benefícios sociais, que mantém as deficiências nas áreas de saneamento básico, moradia, educação e saúde – onde o gasto é de 9% do PIB, mas 60% sendo oriundo do setor privado que atende apenas 20% da população.

O desemprego é a maior causa de insatisfação devido à baixa oferta e à qualidade dos empregos, de modo que a taxa de desemprego gira em torno de 20% a 40%, que acomete principalmente a população negra devido à baixa qualificação, já que mesmo o ato de igualdade de empregabilidade, instituído em 1998, não mudou essa desigualdade, o que impede a superação da pobreza e, dessa forma, a garantia de direitos humanos na prática. Além disso, existe a manutenção de uma atitude hostil do estado com relação às greves e ao controle sindical, de modo que o Congresso Sul-Africano de Sindicatos (Cosatu) é vinculado ao ANC. Desse modo podemos depreender que no estado democrático pós apartheid:

O direito à liberdade de mercado foi colocado em primeiro plano, o que afetou drasticamente uma série de direitos humanos fundamentais, já que, conforme apontamos no decorrer do texto, as políticas econômicas neoliberais são incompatíveis com percepções mais amplas acerca dos direitos humanos.

A questão agrária e as eleições de 2024

Na África do Sul, a questão agrária tem sido um tema complexo desde meados do século XVII, quando teve início um longo processo de tomada de terras dos agricultores negros por parte dos colonos brancos. A desigualdade na distribuição de terras se deu de forma extremamente exacerbada e, durante o apartheid, 80% das terras pertenciam a brancos enquanto os negros detinham direito sobre apenas 20% do território, nos chamados “bantustões”.

Isto evidencia não apenas a forte segregação racial do regime, como também um contínuo processo de acumulação primitiva. Todavia, a passagem a um governo de maioria negra, em 1994, não solucionou o problema da desigualdade racial no acesso à terra uma vez que os brancos ainda detêm cerca de 72% das terras, mesmo correspondendo a menos de 10% da população total no país.

Deste modo, há na África do Sul uma demanda por uma distribuição mais justa das terras. O assunto emergiu como tema importante das últimas eleições, tanto em 2019 como agora em 2024. O partido Congresso Nacional Africano (CNA), que liderou o processo de libertação nacional contra o apartheid e governa o país desde 1994, vem adotando, no que se refere à reforma agrária, o princípio do acordo de vontades entre comprador e vendedor.

Deste modo, o Estado adquire para a reforma apenas as propriedades que os latifundiários desejam alienar, resultando, na melhor das hipóteses, em um progresso excessivamente lento. Para piorar, está em curso um processo de evicção de arrendatários e meeiros negros por fazendeiros brancos, os quais, incutiram nas autoridades públicas e membros do CNA uma ideologia racista segundo a qual os negros não são capazes de produzir, e que por isso é melhor manter as fazendas nas mãos dos brancos. Nas presentes eleições, o CNA praticamente não mencionou em seu programa a questão fundiária, no que é para Ngubane (2024) a posição menos radical do partido acerca do tema.

A política do CNA vem, assim, sendo criticada por ambos os lados. Da direita, a Aliança Democrática (DA, na sigla em inglês) defende a intangibilidade e imutabilidade do direito à propriedade – ainda que a aquisição desta seja violenta e colonial – linha defendida, com ainda maior radicalidade, pelo Fronte Liberdade Mais (VF+, na sigla em Afrikaans), de extrema direita. Ambos identificam-se, e são em sua maioria compostos, pela minoria branca sul-africana e pela elite agrária e dos negócios.

Pela esquerda, o partido Lutadores pela Liberdade Econômica (EFF), um racha do CNA, defenderia, em tese, uma expropriação radical das terras dos agricultores brancos. Contudo, em movimento contraditório, o partido recentemente votou contra a expropriação de terras sem compensação. Ainda no campo da esquerda, mas com outra orientação, o partido Mkhonto Wesizwe (MK) – outro racha do CNA, liderado pelo ex-presidente Jacob Zuma – defende o retorno das terras aos líderes tradicionais.

A vista disso, percebe-se que atualmente a reforma agrária é debatida tendo em vista diferentes abordagens políticas e interesses econômicos onde a demanda por terras representa um desafio crucial para a justiça social e econômica no país. Os resultados das eleições de 2024 constituem a pior performance do CNA desde a democratização, em 1994, e o partido perdeu a maioria absoluta do Parlamento, obtendo cerca de 40% dos votos.

Atrás, vêm o DA, com 22%, o MK, com 14% e o EEF, com 9% (Brasil de Fato, 2024). Desde modo, o CNA terá de formar uma aliança ou um governo de minoria, razão pela qual os entendimentos em torno da questão agrária serão um ponto crucial nas negociações para a política sul-africana no novo governo.

*Por Eloisa Ferreira Goes, Luccas Gissoni, Isabella Werneck Zanon, Paulo Vitor Nascimento dos Santos, João Henrique Pio Elias e Carlos Eduardo Ramos Sanches

Edição: Leandro Melito